quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Os Fabelmans» de Steven Spielberg, 2022


























Afinal, Hollywood existe!

Para nosso consolo, a grande produção americana ainda nos dá, através da arte comocional cinematográfica de Steven Spielberg, uma bela tarde de cinema. Grande ecrã, planos deslumbrantes, actores luminosos. O cinema como pano de fundo. E Michelle Williams!

A infância e a juventude de Spielberg é interseccionada, colorida, dissecada com brilho, tragédia e humor. A América recente, a boa e a má, também lá está, confiante, retrógrada, futurista, deslumbrada.

Uma dádiva à imprescindibilidade fantasiosa do cinema, a juntar a «Rosa Púrpura do Cairo» (Woody Allen, 1985) ou «Cinema Paraíso» (Giuseppe Tornatore, 1988).

Para gaudio dos serões familiares, as filmagens caseiras em Super-8. A verdade desvendada e calada. O fim abrupto de uma infância, o principio iniciático e doloroso da vida adulta.

As filmagens de uma ida à praia da turma de finalistas e a revelação de como o bisturi transformador (ou o adulterador) do cinema pode alterar o cadáver da realidade (passada e futura).

Um final deslumbrante, de um humor inesquecível, com David Lynch, transformado num dos maiores cineastas do mundo (também dos mais ostensivamente crus, para não dizer brutos), John Ford, a explicar ao jovem Sammy Fabelman (Gabriel LaBelle) qual a posição aceitável para colocar o horizonte dentro de um plano de filmagem.

Repito, que bela tarde natalícia de cinema!


jef, junho 2022

«Os Fabelmans» (The Fabelmans) de Steven Spielberg. Com Michelle Williams, Paul Dano, Seth Rogen, Judd Hirsch, Gabriel LaBelle, Mateo Zoryan, Keeley Karsten, Alina Brace, Julia Butters, Birdie Borria, Sophia Kopera, Jeannie Berlin, Robin Bartlett, Sam Rechner, Oakes Fegley, Chloe East, Isabelle Kusman, Chandler Lovelle, Gustavo Escobar, Kalama Epstein, David Lynch. Argumento: Steven Spielberg, Tony Kushner. Produção: Steven Spielberg, Tony Kushner, Kristie Macosko Krieger. Guarda-roupa: Mark Bridges. Fotografia: Janusz Kaminski. Música: John Williams. EUA, 2022, Cores, 151 min.

               


quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Crimes do Futuro» de David Cronenberg, 2022



















Longe vai o tempo da angústia trazida por um lugar desconhecido num futuro desconhecido de «A Mosca» (1986). Longe também, os labirintos psicossomáticos da libido e o belo metal dos apetrechos ginecológicos de «Irmãos inseparáveis / Dead Rigers» (1988) ou desse cordão umbilical futurista, tão cativante como medonho, de «eXistenZ» (1999). 

Cronenberg afasta-se, uma vez mais, da natureza humana e dos seus delicados predicados viciantes e encosta-se à caricatura de si próprio, copiando-se, contudo, errando-se emocionalmente. Muito, muito longe vai esse libidinoso apuro estético de «Crash» (1996).

Talvez a música do mestre Howard Shore seja o melhor do filme ou mesmo os belos e sobreviventes olhares angustiados de Viggo Mortensen (Saul Tenser) ou Léa Seydoux (Caprice). Porém nem esses conseguem libertar-se de um ambiente pseudo-degradado-futurista-muito-sépia (a tentar piscar o olho a «Blade Runner - Perigo Iminente» de Ridley Scott, 1982), ou dos cenários plastificados de uma Atenas em ruínas, ou da risível cadeira eléctrica de alimentação. Os corpos retalhados e os novos órgãos que brotam como tubérculos vegetativos do interior dos novos humanos “sem dor-nem sexo” não chegam a elucidar o espectador dos propósitos estéticos do realizador. Sugere um filme de animação pré-bélica nipónica ou de ficção científica série Z (grande é ainda «Plan 9 from Outer Space» de Ed Wood, 1957) em que a “boa moral” quase é vencida na guerra entre os gangs que se digladiam – as conservatórias do registo de novos órgãos; os promotores de prémios de beleza interior; os comedores de plástico ou os artistas-performers que exibem nos seus espetáculos o expoente futuro da medicina legal e das artes forenses.

David Cronenberg brinca com David Cronenberg mas o humor sai-lhe furado. 

A sua fantasia já deixou de ser verossímil. 

A sua ficção deixou de ser real.


jef, dezembro 2022

«Crimes do Futuro» (Crimes of the Future) de David Cronenberg. Com Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Lihi Kornowski, Scott Speedman, Don McKellar, Nadia Litz, Tanaya Beatty, Mihalis Valasoglou, Welket Bungué, Tassos Karahalios. Argumento: David Cronenberg. Produção: Robert Lantos, Panos Papahadzis, Steve Solomos. Fotografia: Douglas Koch. Música: Howard Shore. Guarda-roupa: Mayou Trikerioti. Canadá / Grécia, 2022, Cores, 107 min.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Poeta» de Darezhan Omirbayev, 2021



















Nem sempre a poesia cinematográfica chega para construir um bom filme. Um filme que teria tudo para granjear o afecto do espectador. Um tranquilo périplo pela cultura distante do Cazaquistão e a reflexão sequente sobre a perda de influência das línguas periféricas face à aculturação e hegemonia centralizadora do inglês mal-falado, das novas “falas” digitais.

Didar (Yerdos Kanaev) é um poeta mal reconhecido a olhar com distância a importância da sua própria tarefa, o esforço tenaz que o faz escrever madrugada dentro enquanto a família dorme. Um colega apresenta-lhe um industrial rico cazaque que lhe dará bom dinheiro se ele fizer o elogio da fama e da fortuna da sua família. Entretanto, Didar embrenha-se na história trágica de um poeta nacional, Makhambet Otemisulyque, que, no século XIX, é assassinado por não acatar as ordens do poder vigente. O espectador vai encontrar a duplicidade das personagens / actores no caminho paralelo dos dois escritores e na silenciosa percepção de como é difícil, mesmo intransigente, a conciliação da liberdade do artista com os ditames do poder.

Tudo no filme ditaria o êxito cinematográfico para esta tão boa intenção. Contudo, ficamos apenas à beira de um sopro, de uma chama, entre a insonsa etnografia e o voyeurismo geográfico.

E nem sempre de boas intenções o melhor cinema é feito.

 

jef, dezembro 2022

«Poeta» (Akyn / Poet) de Darezhan Omirbayev. Com Yerdos Kanaev, Aida Abdurakhman, Darezhan Omirbayev, Klara Kabylgazina, Gulmira Khasanova, Serik Salkinbayev, Bolat Shanin. Argumento: Darezhan Omirbayev. Produção: Yuliya Kim, Yerzhan Akhmetov. Fotografia: Boris Troshev. Cazaquistão, 2021, Cores, 105 min.

 

Sobre o 19.º Auto de Natal «Nascemos Quantas Vezes? – E Maria levantou-se e partiu apressadamente. Lc 1, 39» promovido pela Irmandade da Misericórdia de São Roque, Dezembro 2022. Igreja de São Roque, Lisboa.

 



















Após dois anos de gravação em vídeo e transmissão digital, o Auto de Natal, na sua 19.ª edição, volta ao público “real” na belíssima Igreja do Largo Trindade Coelho, promovido pela Irmandade da Misericórdia de São Roque, com o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Este ano, fugindo à tradição do auto dramático que, textualmente, representa o nascimento de Cristo, Jacinto Lucas Pires, o autor do texto, reúne testemunhos e depoimentos em vários bairros lisboetas, de utentes das unidades e equipamentos associados à Santa Casa.

Escreve António Balcão Reis, Vice-Provedor: “E quantas vezes será necessário nascer de novo, nascemos quantas vezes? Todas as que seja necessário. Assim haja coragem e força para renascer. Quantas e quantas famílias têm de nascer várias vezes para sobreviver, para ultrapassar os obstáculos, as contrariedades e até os maus tratos físicos e morais que a vida lhes levanta? Resistem, aquecidas pelos seus ideais, conseguem sobreviver e, mais do que isso, resistir, renascer e ser felizes.”

Este ano, o encenador Marcos Barbosa propõe um acto dramático sobre o movimento que as palavras orientam. Uma espécie de círculo mutante realizado por centenas de actores e dançarinos na nave central da igreja. Quase todos de branco. Canta-se: “Ser mãe é não dormir à noite”. Este ano, pode ter-se perdido um pouco a génese cristã da representação original mas ganhou-se o princípio vital da sobrevivência e da interajuda. Afinal, pelo que Lucas narra, Maria também saiu a correr para ir ter com a prima Isabel que, já de idade avançada, engravidara e precisava de apoio.

Ajudar é um bom princípio, sem dúvida!

O Auto de Natal na igreja de São Roque. A ver entre amigos e com muita festa (e bifanas, também!) Isto é o que na cultura ocidental se chama Natal, quer se seja cristão, agnóstico ou ateu.

Abraços, beijos e festas felizes. Divirtam-se!

 

jef, dezembro 2022

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Roleta Chinesa» de Rainer Werner Fassbinder, 1976


















Existe neste filme um complexo social de risco que me lembrou, de certo modo, o «Shining», apesar deste ter sido realizado por Stanley Kubrick quatro anos mais tarde. E não é apenas pela longa e tensa, mesmo angustiante, sequência do jogo proposto pela pequena deficiente Angela (Andrea Schober) para todo o conjunto da sua família alargada e que ela mesmo maquinou para fazer reunir naquele fim-de-semana, naquele palacete isolado, entre as estantes de vidro que lhes escondem ou multiplicam os perfis. Todos se sentem inquietos pelo silêncio e pela quietude ameaçadora. O casal, pais de Angela, Ariane (Margit Carstensen) e Gerhard (Alexander Allerson), a quem ela acusa pelas suas infidelidades do mal físico que padece; os respectivos amantes Kolbe (Ulli Lommel) e Irene (Anna Karina); a ama Menina Traunitz (Macha Méril), a governanta Frau Kast (Brigitte Mira) e o fillho desta, Gabriel (Volker Spengler), o pretenso poeta. Ninguém quer jogar pois temem e desejam ameaçar o próximo até ao não-retorno, até a arma ser apontada a quem tudo provocou, inimputável, e ser disparada contra quem não devia ser acusada.

Antes, Angela abre os quartos dos pais onde os amantes repousam inertes, como se tivessem sido fulminados pelos bons dias da criança.

Depois, tão inadvertida como inexplicavelmente, uma procissão passa à porta da mansão e ouvem-se as sacras palavras do casamento “Aceitam contrair matrimónio, serem fiéis e amarem-se…” O filme assim termina.

Quanto do poder social e político reside nos interstícios do desejo de manipulação, da força do masoquismo, da pulsão ou repressão sexuais?

Tudo permanecerá em aberto…


jef, dezembro 2022

«Roleta Chinesa» (Chinesisches Roulette) de Rainer Werner Fassbinder. Com Anna Karina, Margit Carstensen, Brigitte Mira, Ulli Lommel, Alexander Allerson, Volker Spengler, Andrea Schober, Macha Méril. Argumento: Rainer Werner Fassbinder. Produção: Michael Fengler, Barbet Schroeder. Fotografia: Michael Ballhaus. Música: Peer Raben. RFA, 1976, Cores, 86 min.

 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Lobo e Cão» de Cláudia Varejão, 2022








































Não sei porquê saí do cinema a lembrar o «Sonho Azul» da grande Né Ladeiras (1982). Talvez por ser essa cor aquela que enquadra todas as outras, todas as figuras, todas as personagens, todas as expressões fotografadas por Rui Xavier. Talvez à conta da terna sensação de tranquilidade que a actriz Ana Cabral dirige até ao espectador, enchendo o espectro luminoso do ecrã. (Uma soberba actriz surgiu em São Miguel!)

Contudo, não se espere assistir a longas tiradas paisagísticas dignas do arquipélago atlântico. Não, os grandes planos paradisíacos não fazem parte deste filme. São preferidos os planos que assistem ao pormenor das rugas, dos sorrisos, dos trabalhos, dos murmúrios das gentes micaelenses regressados de um dia-a-dia que será menos confinado e insular do que se pensa. Um mundo aberto ao mundo e ao desejo que é despertado num corpo jovem, mesmo que não seja aquele estatisticamente comum. Um mundo novo e adolescente ainda assim enraizado em tradições, em rezas, na religião. Um universo que poderia, hipoteticamente, ser tratado por documentário, reportagem, auto-ficção. Lembrei-me por isso também de «Meu Querido Mês de Agosto» (Miguel Gomes, 2008) ou «A Metamorfose dos Pássaros» (Catarina Vasconcelos, 2020).

Uma vocação estética abstracta que faz truncar o quotidiano ilhéu com o de uma de comunidade politeísta discretamente exuberante e colorida, hipster, queer, e que se apresenta, no final, numa espécie cerimónia burlesca de despedida ao som da «Cold Song» de Henry Purcell.

Todos podem encontrar defeitos neste estranho filme mas quem não ficará tocado pela amabilidade das suas criaturas? Quem não recordará a suave fotogenia de Ana Cabral?


jef, dezembro 2022

«Lobo e Cão» de Cláudia Varejão. Com Ana Cabral, Ruben Pimenta, Cristiana Branquinho, Marlene Cordeiro, João Tavares, Nuno Ferreira, Mário Jorge Oliveira, Luísa Alves, Maria Furtado, Mia Amaral, Nuno Branco, Leandro Cosme, Valdemar Creador, Tomás Furtado de Melo, Emanuel Macedo. Argumento: Cláudia Varejão e Leda Cartum. Produção: João Matos e Jérôme Blesson. Fotografia: Rui Xavier. Música: Xinobi, Henry Purcell et al.. Guarda-roupa: Nádia Santos Henriques. Portugal, França, 2022, Cores, 111 min.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Cesária Évora» de Ana Sofia Fonseca, 2022

 

 

O que espanta no novo mundo das produções e exibições cinematográficas, , após pandemias, confinamentos, visionamentos digitais domésticos e em telemóvel (paz à alma de Hollywood como nós a conhecíamos), netflíxicas, é o facto (ou talvez tendência) da conquista desse espaço pelos espectadores cativados pela diversidade do cinema exibido pelas (poucas) distribuidoras ditas ou tidas por independentes.

Hoje em dia, felizmente, vamos ao cinema (muitas vezes a horas trágicas) para ver filmes que se libertaram das classificações inscritas nos cardápios cinéfilos. Nessas listas, «Cesária Évora» de Ana Sofia Fonseca seria colocado na página dos “documentários”.

Hoje, sem preocupação pela etiqueta, o cinema enche-se para ver um belo filme sobre uma mulheraça que viveu no interior da sua liberdade, cresceu musicalmente-mundialmente impondo a sua postura, tão diletante como vaidosa, bamboleando sobre os seus pés descalços à conta de dolorosos cravos. Bebeu para afastar a solidão depressiva, talvez como cantasse para sobreviver a si própria. Morreu porque quis morrer quando quis morrer, agora que se discute o direito vital-mortal da eutanásia. Entristecia e sorria, alternadamente. Não ligou ao dinheiro porque este lhe trouxe uma casa construída e cheia de gente. Impôs o seu nome como sinónimo complexo do país Cabo Verde. É obra.

Uma obra transmitida pela rigorosa contenção da realizadora, pela montagem ágil, simultaneamente sóbria e exuberante. Por esse vai e vem cronológico de imagens e sons. Por esse respeito efectuoso pela diva africana.

Não é de todo fácil transmitir a vida e a obra de uma mulher assim, com tanta alegria, generosidade e respeito, sem nunca tender para a fácil lamechice da “honrada pobreza”. Antes, “Orgulho, Liberdade e Independência “ é o lema demonstrado por Ana Sofia Fonseca para reconhecer Cesária Évora. Talvez a realizadora tenha inventado uma nova categoria cinematográfica.


jef, novembro 2022

«Cesária Évora» de Ana Sofia Fonseca. Com Cesária Évora, Janete Évora, José da Silva, Bouziane Daoudi, Filipe Araújo, Mara Costa, Ana Sofia Fonseca, Ricardo Freitas, Hélder Lopes, Joana Lourenço, David Medina, Miroca Paris, Agostinho Ribeiro, Rosa Teixeira da Silva. Produção: Ana Sofia Fonseca e Irina Calado. Argumento: Ana Sofia Fonseca. Fotografia: Vasco Viana. Portugal, 2022, Cores, 94 min.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Sobre o filme «Os Irmãos de Leila» de Saeed Roustayi, 2022


 
























Ainda não esquecemos «A Lei de Teerão» (2019), essa ópera dramática entre a acção trágica e confinada e a violência acelerada de um mundo quase burlesco, e Saeed Roustayi apresenta-nos novo filme de acção. Desta vez, uma saga familiar onde todos são pobres, quase todos desempregados ou com pendor para a burla ou para o disparate. Aqui, ninguém é feio, ninguém é porco, ninguém é mau (como diria Ettore Scola, em 1976). Todos discutem e todos se amam. Ninguém se incompatibiliza guerreando-se. Lutam pela sobrevivência familiar, pela sua moral, pela sua probidade.

Um filme onde não existem actores secundários. A história começa com a luta operária contra o encerramento da fábrica de produtos metalo-mecânicos onde Alireza (Navid Mohammadzadeh) trabalha e de onde foge sem indeminização nem honra, talvez por cobardia. Porém, quando chega a casa o caso passa para a irmã Leila (Taraneh Alidoosti), das poucas empregadas da família, que tenta gerir o caos familiar e procura uma solução financeira para ocupar os irmãos de comportamento quase infantil. Até que a atenção se vira para o pai (Saeed Poursamimi) que tenta a todo o custo ainda conquistar a sua dignidade de mais velho tornando-se patriarca do gigantesco clã. Só que esse passo é dado apenas a poder de ouro contado.

Aqui olhamos toda a técnica do cinema clássico de acção ou realista americano ou europeu mas onde Saeed Roustayi acrescenta uma velocidade cinematográfica e um fôlego social muito particulares.

De novo, em «Os Irmãos de Leila» é preponderante a sequência dos planos acompanhando os meandros de argumento que são alicerces para um jogo muito fino a ser entregue a actores fundamentais.


jef, novembro 2022

«Os Irmãos de Leila» (Leila's Brothers) de Saeed Roustayi. Com Taraneh Alidoosti, Saeed Poursamimi, Navid Mohammadzadeh, Payman Maadi, Farhad Aslani, Mohammad Ali Almohammadi, Navereh Farahani, Mehdi Hoseininia, Mohammad Javad Babapour, Nayereh Farahani, Mehdi Hosseinina, Hossein Norouzi. Argumento: Saeed Roustaee. Produção: Saeed Roustaee e Javad Nozurbegi. Fotografia: Hooman Behmanesh. Música: Ramin Kousha. Irão, 2022, Cores, 165 min.

 

domingo, 4 de dezembro de 2022

Sobre o filme «O Trio em Mi Bemol» de Rita Azevedo Gomes, 2022




















Rita Azevedo Gomes apresenta-nos a mais serena, profunda e perfeita reflexão sobre a imperfeição dos dias, sobre a terna imperfeição do amor comum. Uma visão carinhosa e complacente dos males que nos ocorrem, que nos podem acorrer.

E o mais estranho é que o filme não tem qualquer truque, apenas o desejo de filmar em conjunto numa altura em que a máscara era exigível e o confinamento nos tirava a alegria de ir ao cinema e sugeria (em sonhos) à realizadora que não mais iria poder filmar.

O realizador Jorge (o próprio realizador espanhol Ado Arrieta), alegremente, quase em jeito pueril, passa o tempo a dizer que têm de refazer as cenas, de voltar a filmar e, no fim, diz mesmo entre sorrisos que todos devem regressar ao princípio. Adélia (Rita Durão) representa ou faz dela própria em momentos alternados onde o seu francês é emendado em cena pelo actor-não-actor Pierre Léon (Paul). Há muito que Adélia e Paul se divorciaram mas ela visita-o regularmente e conta-lhe longamente os seus encontros e desencontros amorosos. Ele escuta-a com benevolência, também inveja, e recorda-lhe que, de momento, se encontra sozinho. Sem dúvida parece entenderem-se numa parcela ínfima (mas de crucial importância para a humanidade) que é a comunhão no seio de uma partitura musical, um trecho musical que possui o imponderável poder de elevar o ser humano ao mais alto estrato do firmamento emocional…

É evidente que Mozart (e a sua inestimável arte de sacar tardiamente a mais maravilhosa veia nostálgica do clarinete: o concerto KV 622, os quintetos KV 581 ou o KV 452) é cúmplice principal. Aqui, o Trio para piano, clarinete e viola “Kegelstatt” KV498!

Também a casa vazia, as janelas, as portas, os muros, as esquinas e o jardim da casa de Moledo arquitectada por Siza Vieira são igualmente personagens principais.

E essa visão tão modernamente romântica, tão dramaticamente directa que Eric Rohmer tem de conversar sobre tudo e sobre nada em longas homilias pagãs, amorosas, litúrgicas e letárgicas numa época em que ainda não havia telemóveis mas que também ninguém sonhava com a chegada de uma pandemia que viraria o mundo do avesso.

Acima de tudo, essa maravilhosa timidez cinematográfica de Rita Azevedo Gomes que subtrai tudo que que não é essencial para nos colocar à frente da estrutura mais singela do desejo amoroso, da mais íntima volição musical.

Um filme difícil de esquecer!


jef, junho 2022

«O Trio em Mi Bemol» de Rita Azevedo Gomes. Com Rita Durão, Pierre Léon, Ado Arrieta, Olivia Cábez, Mauro Soares, Mário Veloso. Argumento: Rita Azevedo Gomes e Renaud Legrand, a partir da peça de teatro de Éric Rohmer. Produção: Rita Azevedo Gomes e Gonzalo García-Pelayo. Fotografia: Jorge Quintela. Som: Olivier Blanc, António Porém Pires, Tiago Matos. Portugal/ Espanha, 2022, Cores, 127 min.

domingo, 27 de novembro de 2022

Sobre o livro «Uma Abelha na Chuva» de Carlos de Oliveira (1953), Livraria Sá da Costa, 1996.



 








D. Cláudia observa, superior, as caras dos convivas fúnebres transfiguradas pelas chamas da lareira.

“No entanto, pensando melhor, tais juízos partiam de argumentos alicerçados no real: manias, doenças, tiques psicológicos e morais, etc. Não eram construções à toa. De maneira nenhuma. Podiam bem deduzir o seguinte sem se atraiçoar: vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros; todos eles fabricam fel; abelhas cegas, obcecadas.”

D. Cláudia, a de alma transparente, faz de compère ou de coro grego ou de alter-ego do escritor que, resumindo, dá por finda a ronda por estes seres falhados, ressabiados, rancorosos, empanturrados de inveja e remorsos, com um longo passado cinzento mas sem qualquer futuro.

Álvaro Silvestre vive afundado em brandy e na tentativa de redimir os pecados constantes, de se denunciar, de fugir da mulher, D.Maria dos Prazeres, da sua instigação. Tenta entrar no quarto mas a porta encontra-se fechada à chave.

De Montouro a Corgos chove continuamente e a tempestade não dá tréguas sobre o mar longínquo como um túmulo nem sobre a oficina de olaria do mestre António.

“O desespero sem remédio que espreitava dentro dele irrompeu de novo. Pela madrugada irreal. Compreendeu que nada podia sufocá-lo. Duma maneira ou doutra, na indiferença da mulher ou na conversa do palheiro, fosse no que fosse, ouvi-lo-ia sempre. Agora mesmo uma voz errando no silêncio lhe insinuava: as aves largam para o espaço mas serão destruídas; há laranjas sãs pelas ramagens mas hão-de apodrecer; as vindimadeiras cantam, o gado pasta, os homens cavam, mas tudo, tudo é estrume da terra. No silêncio deserto a voz obsidiante persistia: quando quiseres matar a sede, lavar o sarro desta noite, das conversas tidas, das conversas ouvidas, a água secará de vez.”

Na minha leitura baralhada, caótica, feita de vagar e de comparações torpes, surge-me este livro escrito em XXXV estâncias (que devem ser lidas entre pausas como nos livros de poemas). Asseguro-me que bem compreendo como as personagens nos aparecem nítidas e interiores, ora penumbrosas ora diáfanas, como as de José Cardoso Pires, e as descrições narrativas tão feéricas e incontornáveis como as de Eça de Queirós.

 

jef, novembro 2022

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Sobre o disco «ForeverAndEverNoMore» de Brian Eno, Opal, 2022





















Sim, na realidade é o mesmo Brian Eno dos Roxy Music (“Roxy Music”, 1972; “For Your Pleasure”, 1973).

O mesmo de “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” (1974), “Another Green Day” (1975), “Before and After Science” (1977); “Fourth World Vol. 1 Possible Musics” (com Jon Hassell) (1980).

Aquele do “Remain In Light” dos Talking Heads (1980) e do “My Life In A Bush of Ghosts” (com David Byrne) (1981).

Sim, tal e qual, o de “Another Day On Earth” (2005) ou do sêxtuplo álbum “Music For Installations” (2018).

Brian Eno tem 74 anos e diz ter agora a voz mais grave e que deseja adaptá-la às sonoridades paisagísticas abstractamente urbanas que cria e nas quais vem sempre mergulhando. Não fica parado. Nunca. Segue em frente e coloca a tal voz mais grave ao serviço das personagens humanas (ou sombras humanas) que vai colocando, aqui e ali, nestas dez faixas. A poesia é humana, por definição romântica. E este disco é romântico e poético. A meio caminho aquático do que aí vem. Igualmente a meio caminho do álbum pop de 2005 e daqueles ambientais de 2018. Porém mais cinematográfico, plástico, sincrético. Mais unificador ou ecuménico, outros diriam. Tanto faz.

«ForeverAndEverNoMore» lembra-me esse fio de ariadne que, sem termos bem noção da sua direcção, nos agarra na memória musical tão antiga e a projecta no futuro, talvez incerto ou angustiado, talvez sereno e complacente.

A música que ouvimos tanto nos forma como nos integra. Há muito que Brian Eno me confirmou tal axioma através da sua teoria dos sons.


jef, novembro 2022