Longe vai o tempo da angústia trazida por um lugar desconhecido num futuro desconhecido de «A Mosca» (1986). Longe também, os labirintos psicossomáticos da libido e o belo metal dos apetrechos ginecológicos de «Irmãos inseparáveis / Dead Rigers» (1988) ou desse cordão umbilical futurista, tão cativante como medonho, de «eXistenZ» (1999).
Cronenberg afasta-se, uma vez mais, da natureza humana e dos seus delicados predicados viciantes e encosta-se à caricatura de si próprio, copiando-se, contudo, errando-se emocionalmente. Muito, muito longe vai esse libidinoso apuro estético de «Crash» (1996).
Talvez a música do mestre
Howard Shore seja o melhor do filme ou mesmo os belos e sobreviventes olhares
angustiados de Viggo Mortensen (Saul Tenser) ou Léa Seydoux (Caprice). Porém
nem esses conseguem libertar-se de um ambiente pseudo-degradado-futurista-muito-sépia
(a tentar piscar o olho a «Blade Runner - Perigo Iminente» de Ridley Scott,
1982), ou dos cenários plastificados de uma Atenas em ruínas, ou da risível cadeira
eléctrica de alimentação. Os corpos retalhados e os novos órgãos que brotam
como tubérculos vegetativos do interior dos novos humanos “sem dor-nem sexo” não
chegam a elucidar o espectador dos propósitos estéticos do realizador. Sugere um
filme de animação pré-bélica nipónica ou de ficção científica série Z (grande é
ainda «Plan 9 from Outer Space» de Ed Wood, 1957) em que a “boa moral” quase é
vencida na guerra entre os gangs que se digladiam – as conservatórias do
registo de novos órgãos; os promotores de prémios de beleza interior; os comedores
de plástico ou os artistas-performers que exibem nos seus espetáculos o expoente
futuro da medicina legal e das artes forenses.
David Cronenberg brinca com David Cronenberg mas o humor sai-lhe furado.
A sua fantasia já deixou de ser verossímil.
A sua ficção deixou de ser real.
jef, dezembro 2022
«Crimes do Futuro» (Crimes
of the Future) de David Cronenberg. Com Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen
Stewart, Lihi Kornowski, Scott Speedman, Don McKellar, Nadia Litz, Tanaya
Beatty, Mihalis Valasoglou, Welket Bungué, Tassos Karahalios. Argumento: David
Cronenberg. Produção: Robert Lantos, Panos Papahadzis, Steve
Solomos. Fotografia: Douglas Koch. Música: Howard Shore. Guarda-roupa: Mayou
Trikerioti. Canadá / Grécia, 2022, Cores, 107 min.
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