quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Sobre o filme «O Raio Verde» de Éric Rohmer, 1986












Esta comédia (ou provérbio) retira de Rimbaud o apelo ‘aos tempos em que os corações se incendeiam’. Invoca a novela de Júlio Verne onde os desejos de encantamento ficam suspensos na refracção da luz branca ao pôr-do-sol.

Delphine é Marie Rivière e Marie Rivière ajuda Éric Rohmer no guião, fazendo com que a câmara a siga nesse desespero de solidão que surge invariavelmente no despovoamento da cidade que foge para o calor do Verão (e o imaginado princípio alegre das férias se desmorona). Quando Delphine perde a companhia para a planeada viagem ao Mediterrâneo cai em si. Verifica que está só. Ou que talvez prefira ficar só do que mal acompanhada pois o que ela procura é muito mais íntimo do que apenas uma ida à praia, um refresco e um namorado de veraneio. Delphine sente que a idade adulta está a chegar. Ou já chegou e ninguém à sua volta entende o direito que sente à própria solidão, à espera, à sua escolha. Ela precisa de mais, de muito mais, certamente uma coisa em grande, qualquer coisa definitiva. Qualquer coisa que só a refracção e o espectro da luz solar no ocaso lhe pode devolver através da cor que a persegue e lhe estimula a vocação de futuro. O verde.

Éric Rohmer sabe mesmo contar histórias que nem histórias parecem ser. O realizador reconhece o étimo da narrativa e a íntima fracção que define, de modo radical, o coração humano.

jef, outubro 2021

«O Raio Verde» (Le Rayon Vert) de Éric Rohmer. Com Marie Rivière, María Luisa García, Béatrice Romand, Vincent Gauthier. Amira Chemakhi, Sylvie Richez, Basile Gervaise, Eric Hamm, Rosette. Argumento: Éric Rohmer e Marie Rivière. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Sophie Maintigneux. Música: Jean-Louis Valéro. França, 1986, Cores, 99 min.

 


terça-feira, 26 de outubro de 2021

Sobre o filme "A Metamorfose dos Pássaros" de Catarina Vasconcelos, 2020






















Este filme é um estranho objecto familiar.

O seu maior encanto vem do secreto escutar da palavra que narra a história sem que o discurso directo ou indirecto a interrompam ou destruam a suavidade poética com que ela evoca os vocábulos «mãe», «morte» e «mar». Toda a intimidade da família está aqui romanceada e fixada sem que seja maculada com mórbido voyeurismo. Coisa difícil que só a natureza-morta permite concretizar. Lembra um certo estado muito próximo do nocturno escutar infantil das histórias para adormecer, puxando os sonhos (e também os pesadelos). É o poder máximo da oralidade da literatura. Lembrei-me da paisagem nostalgicamente final de Daniel Blaufuks, de «Mãe e Filho» de Alexander Sokurov (2006), de «O Sacrifício» de Andrei Tarkovsky (1986), de «Fanny e Alexandre» de Ingmar Bergman (1982), de «As Praias de Agnès Varda» (2009). Por fim lembrei-me desse filme extraordinário que é «Shirin» de Abbas Kiarostami (2008).

Existe aqui uma técnica única onde as histórias se interceptam, cruzando as mães e as filhas, os pais e os filhos, formando um laço teórico e belo entre gerações que se trocam, unindo a família na brincadeira da memória e na tristeza do futuro. Tudo vem sublinhar (e sublimar) a morte, como é referido, que surge em crescendo para assentar cada vez mais a praça em general e suspender o voo do desejo e da esperança juvenis. Também o percurso contemporâneo e familiar da História de Portugal passa todo por ali. A beleza das imagens é surpreendente. Contudo, por vezes, tal composição pictórica torna-se demasiado figurativa, demasiado vinculada à linha narrativa.

Porém, a beleza maior e final do filme fica absolutamente cristalizada na comovente referência fonográfica que a mãe tenta gravar com as crianças para enviar ao pai, longínquo marítimo, um perdido e encontrado Ulisses. Um toque de mestre!


jef, outubro 2020

«A Metamorfose dos Pássaros» de Catarina Vasconcelos. Com Manuel RosaJoão Móra, Ana Vasconcelos, Henrique Vasconcelos, Inês Campos Catarina Vasconcelos, José Manuel Mendes, João Pedro Mamede, Cláudia Varejão, Luísa Ministro, José Maria Rosa, Ana Margarida Vasconcelos. Argumento: Catarina Vasconcelos. Fotografia: Paulo Menezes. Música: Madalena Palmeirim. Produção: Pedro Fernandes Duarte, Joana Gusmão, Catarina Vasconcelos. Portugal, 2020, Cores, 101 min.

 

domingo, 17 de outubro de 2021

Sobre o filme «A Mulher do Aviador» de Éric Rohmer, 1981
























Neste filme, Eric Rohmer transforma Paris num labirinto onde as pessoas se perdem sistematicamente na tentativa de encontrarem, mais do que o objecto da investigação, o percurso mais directo para lá chegar. No entanto, Paris é uma cidade mais sombria que luminosa, mais sonolenta que insone, mais suja que brilhante.

François (Philippe Marlaud) tenta investigar o motivo por que é abandonado por Anne (Marie Rivière) que não esquece o seu aviador Christian (Mathieu Carrière) que, naquele dia, veio anunciar que regressará à grande cidade mas com a mulher pois esta espera um filho seu. Troca por troca, François insiste, investiga, persegue e constrói uma teoria bem arquitectada que justificaria todo o abandono sentido. Para construir a teoria é ajudado pela jovem amiga Lucie (Anne-Laure Meury). Mas o percurso das cartas no interior do correio numa cidade como Paris não é linear e como “É impossível não pensar” (como é lido em epígrafe neste episódio de «Comédias e Provérbios») a realidade não acompanha tal teoria de encontros e amizade. Uma cidade é edificada mais para se trabalhar do que parase  amar.

«A Mulher do Aviador» é um dos filmes mais urbanos, ternos e melancolicamente realistas de Eric Rohmer.


jef, outubro 2021

«A Mulher do Aviador» (La Femme de l’Aviateur) de Éric Rohmer. Com Philippe Marlaud, Marie Rivière, Anne-Laure Meury, Mathieu Carrière. Philippe Caroit, Coralie Clément, María Luisa García, Haydée Caillot, Mary Stephen, Neil Chan, Argumento: Éric Rohmer. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Bernard Lutic. França, 1981, Cores, 106 min.

Sobre o livro «Segredo Ardente» de Stefan Sweig (1911). Relógio D’Água, 2014. Tradução de Gilda Lopes Encarnação.


 









Stefan Zweig é um autor anacrónico. Escreve como se ainda o fizesse no tempo em que Balzac, Flaubert, Dostoiévksi, Victor Hugo, Charles Dickens se viam a braços com a polícia dos costumes, a liberdade da arte, a instabilidade social, a liberdade de publicar e revoltar, a política nos jornais e nos bairros. No entanto, vive já no tempo de Sigmund Freud e da alma no escalpelo, dos sonhos martirizados com o bisturi, da alma da Europa em vias de assassinato pelo nazismo. Os seus livros populares foram banidos e queimados. Suicidou-se por descrença na ressurreição do mundo. E tornou-se um dos seus símbolos, fazendo tocar o romantismo ou o realismo literários pelo lado mais perturbado, dissecado, talvez psicanalisado, da arte. Os títulos das suas novelas sublinham esse maravilhoso anacronismo.

«Segredo Ardente» é exemplo cabal da minúcia de bem contar uma história simples através do seu lado mais complexo e sintomático.

«O poder do amor nunca poderá ser convenientemente avaliado se for apenas medido pelos motivos que o originaram e não pela tensão expectante que o precede, esse espaço oco e escuro de solidão e desesperança que se abre ante todos os grandes acontecimentos do coração.»

Contudo, apesar de apaixonado, esta não é a história de um amor romântico mas a da iniciação de Edgar, um rapaz de doze anos, no mundo adulto dos afectos, ou antes, no mundo dos afectos adultos. Sentirá paixão e abandono, conhecerá a traição, raiva e o ciúme, dará crédito à desculpa como testemunho de sobrevivência.

Ternamente amarga, é uma novela de leitura compulsiva, cinematográfica, onde os pormenores descritivos relatam tanto quanto a acção narrativa. É um texto que regressa de um tempo onde a aristocracia pan-europeia sonhava viver numa eterna redoma intocável para lhe propor a naturalidade do risco, a instabilidade do sossego, o acidentado percurso do coração e da sociedade.

Sim, uma novela anacrónica mas indispensável.


jef, outubro 2021

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Sobre o livro «Cair Para Dentro» de Valério Romão, Abysmo 2018. Capa de Alex Gozblau.


 









O livro parece conter tudo. Especialmente esses fenómenos que permanentemente nos acontecem (e nos formam) e também o caminho estranho que eles levam até chegarem a nós e depois à sua interpretação, bem à nossa maneira.

Ao longo das primeiras páginas a imagem de uma senhora vai-se desvanecendo e outra, a de uma jovem, não chega a confirmar-se. Posso entender que é Virgínia, viúva sem o ser, matematicamente austera, expulsando os afectos (pois nunca trazem qualquer vantagem), dona de uma casa sem recheio, autarca, amante e mãe de uma Eugénia que não chega a ter tempo de crescer (pois deve fugir da mãe que lhe recusa a filosófica poesia que ela toma como principal fenómeno, embora escondido).

Uma das grandes vantagens da leitura lúdica é de coleccionarmos imagens e sentidos literários que vão fazendo parte de nós (e nos suscitam a análise dos ditos fenómenos). Ou talvez seja mais simples. Por empirismo, silogismo, mnemónica, ou simples prazer de relacionar livros que nos são importantes, vamos criando um mundo imaginário. Forte e Verdadeiro.

Valério Romão lança-nos nesse mundo real mas onde as imagens e sentidos fragmentados no espaço surgem de uma linha temporal sistematicamente truncada. Confundem-se inicialmente as gerações, os temores, os rancores, as abstracções que a doença neurológica e a insuficiência social e afectiva lançam sobre a interpretação dos fenómenos. Interpretação que, ela própria, é um objecto. Lembro-me de «Tanta Gente, Mariana» de Maria Judite de Carvalho e de Milene em «O Vento Assobiando nas Gruas» Lídia Jorge. Lembro-me ainda de personagens feéricas mas amordaçadas de Branquinho da Fonseca, da narrativa contínua, sem arestas onde as personagens possam descansar, de William Faulkner a António Lobo Antunes; e os diálogos em discurso indirecto-directo por entre as finas estrias de uma realidade indomada e adversa. Esses diálogos leves e duros que buscamos em Saramago. (Consegui juntar aqui os dois autores!)


«e só não compreendo a razão pela qual a lembrança chega sempre a destempo, sempre em atraso, como se conversa e recordação estivessem de mal e não se pudessem encontrar ao mesmo tempo no mesmo local, e ainda bem que ela já está a fazer outra coisa, a cozinhar, a passar a ferro, a mudar a areia da gata, porque assim não me vê sofrer este sentimento dos pobres, esta agonia de ainda ter tudo cá dentro menos a forma adequada de lhe aceder.»

O que verdadeiramente é apenas de Valério Romão é esse azimute emocional (e literário) que faz aprisionar o leitor dentro da história de uma família sem bainhas paliativas ou âncoras antissísmicas mas que, mesmo assim, vai deixando sobre o texto a poeira do princípio maior da benevolência e da resistência projectadas num futuro em que se poderá (ainda, talvez) confiar. Esse princípio devolve ao livro «Cair Para Dentro» uma raiz profundamente política.


jef, outubro 2021