sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Sobre o filme «Certas Mulheres» (Certain Women) de Kelly Reichardt, 2016


 






























Faz frio em Livingston, Montana. A neve e o vento cercam o planalto de mais perto que as suas montanhas. A banda sonora (Jeff Grace) até podia ter caído nas mãos de Ry Cooder, Bruce Springsteen, Neil Young ou Eddy Vedder. As quatro mulheres que nos contam as três histórias devem um voto de silêncio ao Inverno e à solidão provocada pela incompreensão das grandes distâncias.

A advogada Laura (Laura Dern), arrastando o cão pela trela, tenta entender o patrão e o cliente Fuller (Jared Harris) que foi injustiçado por um manhoso contrato de trabalho.

Gina (Michelle Williams) fuma às escondidas quer construir uma casa para um futuro que deseja bem mais próximo enquanto luta para motivar o marido Ryan (James Le Gros) e a filha Sara (Sara Rodier).

A professora de direito escolar Elizabeth Travis (Kristen Stewart) faz duas horas ao volante para chegar, à noite, a seu segundo emprego. Uma improvável cowgirl - ou horsegirl - (Lily Gladstone) entra inadvertidamente na sala de aula e interessa-se pela matéria. Talvez mais pelo esforço exausto da professora e acompanha-a no diner antes de esta regressar novamente. Uma compreensível mas incompreendida amizade surge sem destino.

São quatro actrizes espantosas que dão corpo ao interior psicológico e terno de uma América também ela enregelada, solitária, silenciosa, ausente. As histórias vêm dos contos de Maile Meloy mas bem podiam ter saído da imaginação de Sam Shepard.


jef, abril 2020


«Certas Mulheres» (Certain Women) de Kelly Reichardt. Com Michelle Williams, Kristen Stewart, Laura Dern, Lily Gladstone, James Le Gros, Jared Harris, Joshua T. Fonokalafi, Rene Auberjonois, Sara Rodier. Argumento: Kelly Reichardt baseado em contos de Maile Meloy. Fotografia: Christopher Blauvelt. Música: Jeff Grace. EUA, 2016, Cores, 97 min.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Sobre o disco «The Ascension» de Sufjan Stevens, AKR 2020











Bem-vindos ao mundo amedrontado, angustiado, encantado de Sufjan Stevens. «The Ascension» cria um espelho de fractais electrónicos e desenhados durante 15 canções em loop e 80 minutos de sonho meio-alucinado meio-planante, distanciando-se, por exemplo, de «Carrie & Lowell» (2015) não pelo lado interior e psicológico mas pela percussão caleidoscópica que o músico assume em nome próprio. E com ele, o guitarra-baixo Casey Foubert vai certificando cada linha melódica soturna e clarividente.

Como se um certo grunge de Seattle se casasse com o fumarento trip-hop de Bristol, amparado pelo drum’n’bass de Goldie. Estranhamente convoca no mesmo momento o espírito de Beth Gibbons, Fiona Apple, Kurt Cobain, Prince e Neil Young. Numa doce confusão. Todos juntos enclausurados numa capela onde as orações esqueceram o fito de Deus. Todos dentro de um elevador sem paragem pelos andares, durante uma qualquer pandemia.

Brian Eno parece estar a programar, Beck a destabilizar, Danny Elfman a transmitir essa notálgica aura coral de filme de fantasia.

Tudo soa a antigo mas é novíssimo nesse tão difícil equilíbrio dançante entre a alegria deprimida e o eufórico confinamento, deslizando até essa longa faixa final, «America»: “Don’t look at me like I’m acting hysterical / Don’t do to me what you did to America”.

jef, novembro 2020

 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Sobre o livro «O Quarto de Giovanni» de James Baldwin. Alfaguara, 2020 (1956). Tradução de Valério Romão.


 









De modo interior, coisa profunda que a leitura provoca, relações, coincidências, sinapses no interior da memória, ao terminar «O Quarto de Giovanni» recordei-me da intranquilidade crescente que me provocou a leitura de «O Estrangeiro» de Camus. Essa inquietação que as grandes obras escritas sobre o desespero da solidão definitiva e a amargura do que fica calado provocam na alma do leitor que se deixa aprisionar pelo talento narrativo do escritor filósofo.

Somente os grandes, como James Baldwin, conseguem cativar a leitura começando a contar, assim, a história pelo fim. Desde logo, o jogo é-nos desvendado. As peças e dados já estão lançados e consumada a tragédia numa certa cidade de Paris que, ardentemente, deseja ver o Verão terminado e com ele também a paixão condenada entre o jovem americano David e o jovem italiano Giovanni. Ambos estrangeiros.

«Era uma questão de punição e sofrimento. Não sei como soube isso, mas soube-o imediatamente. Talvez porque no fundo eu queria viver. E olhei para o quarto com aquela extensão nervosa e calculista da inteligência e de todas as nossas forças que sobrevém quando avaliamos um perigo incontornável e mortal.»

Apenas a mestria consegue apresentar o facto, sem rodriguinhos e autocomiseração, indo directa ao assunto com o rigor das descrições finas, sucintas, ternamente circunstanciais, e os diálogos que nos deixam perante o desconforto do que nunca será dito e a suja amargura dos ambientes que vão toldando o ocaso do que já nos foi dado ouvir do início.

E esse facto é a tragédia da sua própria negação. A negação que é o inexorável caminho para a evidência e a evidência é um lugar anunciado e terrivelmente escuro.

Estranhas similitudes. Tal como no livro de Albert Camus, o protagonista é confrontado com ausência de si próprio através do anúncio, longínquo e frio, da morte de sua mãe num asilo, também neste livro, a falta de uma mãe parece ser o ponto de partida para o caminho de David em direcção ao coração do seu escondido e repudiado mal. Nos dois livros, a sociedade em volta, inquisitorial, papel de embrulho revelador de uma angústia avolumada e de uma culpa sem redenção, aponta o dedo e retira qualquer possibilidade de perdão. Faz largar a energia cinética da lâmina sobre a recusa de um corpo. A lâmina corre na aceleração da gravidade e da pena dessa negação.

É um romance soberbo, que se lê de um fôlego, publicado pela primeira vez em 1956 com a inclemente objectividade e a sinistra clarividência de que a homossexualidade era uma circunstância punível nos Estados Unidos e de que a pena de morte só seria interdita em França em 1981, pelo esforço de François Miterrand, entrando como emenda na constituição francesa apenas em 2007.

 

jef, novembro 2020

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Sobre o disco «Right as Rain» de Madalena Palmeirim, 2019

 

 
























O disco tem o condão de me relembrar, ao longo das 12 canções, o universo heterogéneo, embora coerente e uníssono, da música popular que povoa as prateleiras dos meus discos. América, Brasil, Cabo Verde, Portugal têm em comum belos povos que constroem belas cantigas vindas de harmonias e ritmos eternamente reconhecíveis.

Madalena Palmeirim recolhe-se não sobrepondo presunção musical às melodias ternamente visitadas, aos arranjos expostos de modo simples, aos poemas mais nostalgicamente amorosos. Por outro lado, contém essa simplicidade silenciosa e amável que une pela força as diversas latitudes do tal folk universe.

O mais curioso é, exactamente, o modo veemente como a música de Madalena Palmeirim me faz lembrar o à-vontade, a reverência iconoclasta pela música tradicional que têm Zeca Afonso ou António Variações. Também a intimidade meio country-folk meio recolhimento-de-lareira de Gillian Welch, Will Oldham ou Devendra Banhart. Ou o modo despojado mas despudorado como Marisa Monte ataca o samba ou Lucibela, a morna. Ou como Feist ou Cat Power abraçam o mundo eléctrico para reorganizar o velho poder dos blues.

Não tenho qualquer dúvida, «Right as Rain» é um disco que não vou conseguir parar de ouvir.


jef, novembro 2020

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Sobre o disco «Sunset in the Blue» de Melody Gardot, Decca / Universal 2020

















Retirando do alinhamento o óbvio e dispensável bonus track «Little Something» (embora comercialmente imprescindível com as pandemias que correm) cantado em dueto com Sting, «Sunset in the Blue» vem confirmar a minha ideia de que a bossa-nova é um caso sério inventado para cantores raros, de vozes frágeis mas possuidores de convicções fortes, eficientes em melodias de alma silenciosa propícias para a melancolia do esquecimento e para textos que, julgados à pressa, sugerem pouco dizer.

A bossa-nova parece sempre delicodoce mas pertence ao mundo profundo de um jazz estranho, mundo que é revelado apenas ao talento de músicos que compõem em modo invisível e arranjos transparentes, milimetricamente inseguros e harmoniosos, dados ao improviso. Talvez mesmo só para “desafinados”. Amália Rodrigues e Stan Getz conheciam-lhe o mistério. Melody Gardot aproxima-se-lhes em sub-reptícia e perspicácia musicais. Na melancolia também.

Aliás, esclareçamos que a cantora e compositora construiu um catálogo harmónico que só podia vir aqui desembocar. Ou seja, adaptou a bossa-nova ao seu jazz aquático e serenamente nostálgico. A produção permanece nas mãos de Larry Klein e os arranjos orquestrais nas de Vince Mendonza. As orquestras são a Royal Philharmonic Orchestra e a Global Digital Orchestra. Esta última, em «From Paris with Love», convocada à distância “via electrão”, à conta do Covid, sendo os músicos remunerados integramente. O jazz deslumbra-se na guitarra de Anthony Wilson, no saxofone de Donny McCaslin, no piano de Philippe Baden Powell na melhor faixa do álbum, «You Won’t Forget Me».

Claro que Melody Gardot inclui «Moon River». E coloca a voz de António Zambujo num registo mais grave do que o costume em «C’Est Magnifique». E compõe e canta em inglês, francês e português. «Um Beijo» ou «Ninguém, Ninguém», suavemente, quase como desculpa, numa tonalidade harmoniosa que muito deve a Pierre Aderne, esse luso-franco-brasileiro que tem um cosmos musical secreto e mágico em Lisboa, perdido lá para a Rua das Pretas.

Melody Gardot sempre tem a suave e contida particularidade de quase não fazer notar a propensão para a terna melancolia e, em «Sunset in the Blue», encontra-lhe um porto seguro na sua muito íntima e “desafinada” bossa-nova.

 

jef, novembro 2020

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Sobre o livro «A Luz da Guerra» de Michael Ondaatje. Relógio D’Água, 2018. Tradução de Margarida Periquito.

 

 

«A maior parte das grandes batalhas ocorre nos vincos dos mapas topográficos.»

Resumidamente, o comentário de Robert Bresson retirado de uma entrevista filmada e que serve de epígrafe a este livro inevitável, resume-o de modo paradigmático.

Na guerra, na grande História ou nas “pequenas histórias que guardamos precariamente mas que compõem as nossas vidas”, a maior parte das virtudes e tragédias ficam abandonadas pela leitura leviana ou nem são lidas por se esconderem nos locais mais inacessíveis da memória.

A Segunda Grande Guerra destruiu a Europa reedificando-a depois segundo um alfabeto de violência e esquecimento que perdurou até aos nossos dias e que foi mal negociado desde o armistício, em Maio de 1945. Este livro conta ainda a história pungente e secreta de Londres, sobrevivente às suas próprias custas, dessa lenta e longa agonia a que se chama o “sarar das feridas”.

Nada sobre o livro poderá ser dito sem destruir o seu extraordinário enigma literário (contado de forma única!) sobre tal dédalo de mentiras, segredos e enganos, resistência e organização subterrânea, sobrevivência, abandono, amor e luto. Sobretudo uma história de silêncios insuportavelmente ditos e insuportavelmente ouvidos.

Londres sai escalpelizada como a rã dissecada em vida que fica a pulsar entre alfinetes para que se lhe estudem, de modo radical, as veias e as artérias. Aqui ficam em vivissecção pela memória geográfica e juvenil de Nathaniel os vasos de uma cidade percorrida por afluentes, canais artificiais e eclusas de um Tamisa que sempre reconheceu as viagens clandestinas de meliantes, contrabandistas e resistentes.

Este livro, também ele construído psicanaliticamente por meandros e eclusas, tem o condão de mostrar sem piedade, mas com uma imensa ternura, a quantidade de falsos-verdadeiros órfãos deixados pela guerra atrás de uma muralha de solidão. A intimidade triste desses becos sem saída e enraizada na vitória dos aliados e no desentendimento e na ambição dos vencedores.

Acima de tudo, «A Luz da Guerra» descreve um povo combatente mas fleumático, humorístico e solidário, organizado, tradicionalista e intransigentemente jardineiro.

Um livro obrigatório.

 

jef, novembro 2020

 

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Fluxograma

 









Para mim,

as pessoas são como os animais

e os animais como as plantas

e as plantas como o húmus

e o húmus como a terra

e a terra como as rochas.


Por vezes, pergunto-me

serão as pessoas como as rochas?


jef, novembro 2020

 

Sobre o livro «A Saga de Gösta Berling» de Selma Lagerlöf, Cavalo de Ferro, 2006. Tradução de Inga e Miguel Gullander.


 









Humano e natural.

Eis a história fabulosa da Ala dos Cavalheiros de Ekeby. Um grupo de homens nem muito maus nem muito bons, ingénuos velhacos, joviais decrépitos, aventureiros comilões, românticos acirrados, dançarinos inveterados à frente dos quais está o indescritível Gösta Berling, o mais apaixonado e inconsciente de todos, aliás um pároco bêbado e, por tal, proscrito. Todos eles sabem tocar um instrumento musical, mesmo que o façam no teclado virtual. Caso contrário, não seriam cavalheiros. Todos estão prontos a brincar, a amar, mas também a lutar contra inimigos infames, entre os quais alguns dos mais ricos da região: o diabólico industrial Sintram, o inteiriçado conde Henrik Dohna, o possessivo Melchior Sinclair ou a poderosa mineira Margareta Samzelius que fizera desaparecer no ódio a doce Margareta Celsing. Tudo isto está escrito nas páginas iniciais do livro. As restantes dão corpo ao mais puro encanto geográfico da literatura de Selma Lagerlöf. Aliás, a exímia contadora de lendas e narrativas sempre assumiu a Suécia como musa suprema inspiradora para uma escrita que veio renovar o espírito naturalista do romantismo. Nela a paisagem sueca é rainha mas não apenas como elemento cénico para conjecturas mais ou menos depressivas. A grande província de Värmland verga-se ao peso orográfico das montanhas e ravinas ou ao sinuoso traçado do lago Löven, que constitui o seu coração. Mas a diferença entre estas florestas geladas ou os rápidos deste rio e uma certa literatura também geográfica, porém mais gótica e anglo-saxónica, recheada de orgues dementes e castigadores, é total. Aqui, a paisagem é o elemento central da narrativa, surgindo como força motriz das transformações culturais do homem mas, simultaneamente, identifica-se como matéria-prima pronta a ser por este modificada. A natureza é tão humana quanto as canções, os risos, as siderurgias ou a agricultura de subsistência. O urso, no seu monte Gurlita, é tão fundamental quanto o pároco e a sua prelecção. A superior candura de Selma Lagerlöf apresenta o homem na sua superior unidade, ora acusando alegremente o seu pecado, ora amnistiando-o com severidade. A cultura e a paisagem da Suécia rendem-se apaixonadamente perante a sua narrativa. Deste modo, a escritora troca a sua pátria pela síntese de um universo, íntegro e pacificado, regido pelas lendárias armas da Natureza, do Homem e de Deus. Em suma, «A Saga de Gösta Berling» é um dos mais belos livros publicados no ano de 2006 em Portugal.

 

jef, março 2007

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Sobre o filme «Pig» de Mani Haghighi, 2018





















Ora aqui está uma oportunidade perdida.

Todos sabemos a elevadíssima qualidade do cinema iraniano, tanto do ponto de vista estético-ético como do político-social. Nem será necessário recordar a absoluta obra-prima do cinema mundial que é «Close-Up» de Abas Kiarostami (1990). Por isso, aguardamos o melhor.

Agora, é uma comédia louca e colorida sobre a actividade de um assassino que tem por objectivo decapitar tudo quanto é cineasta iraniano, gravando-lhes na testa a palavra «pig». Porém, Hasan Kasmai (Hasan Majuni), amante dos AC/DC e violento jogador de ténis, realizador proscrito pelas autoridades oficiais, sem produtor e impedido de realizar as suas obras de culto, chora no colo de sua mãe e pergunta por que é que o assassino não se aproxima dele. Sim, dele, que devia ser o primeiro a ser assassinado e que, agora, apenas lhe é permitido realizar filmes publicitários sobre insecticida para baratas. Tudo parecia movimentar-se num ambiente auspicioso de louca luta social e familiar, um pouco à Woody Allen, um pouco à Pedro Almodóvar, com um cineasta deprimido e mulherengo que fala pelos cotovelos de modo lânguido, e magnificamente interpretado por Hasan Majuni, a fazer lembrar a displicência estilística de Miguel Lobo Antunes em «Technoboss» (João Nicolau, 2019) mas a movimentar-se em cenários psicanalíticos e fellinianos e a tender para a justiça sanguinária à Tarantino.

Tudo corria bem até aparecer o verdadeiro assassino com cara de suíno e versículos do Corão na voz! E é aí que a porca torce o rabo e perde o ritmo, deixando-nos abananados, vendo a charla política sem explodir em definitivo, antes esvaziando-se de sentido catártico, afinal apaziguando as hostilidades, esquecendo o ápice fulcral e castigador da sociedade moralista, coisa que é sempre a pedra de toque na melhor comédia social.

Contudo, a caracterização das personagens, os actores, as cores e o movimento de câmara são dignos de boa nota.


jef, novembro 2020

«Pig» de Mani Haghighi. Com Hasan Majuni, Leila Hatami, Leili Rashidi, Parinaz Izadyar, Saber Abar, Mahnaz Afshar, Siamak Ansari, Vishka Asayesh. Argumento: Mani Haghighi. Música: Peyman Yazdanian. Fotografia: Mahmoud Kalari. Montagem: Meysam Molaei. Direcção artística: Amir Hossein Ghodsi. Guarda-roupa: Negar Nemati. Produção: Mani Haghighi. Irão, 2018, Cores, 104 min.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Sobre o livro «Século Passado» de Jorge Silva Melo, Cotovia, 2007


 









O passado e o presente.

Aqui se conta a sentida história de um século que é, dramaticamente, passado. E se é bem verdade a afirmação de José Pacheco Pereira sobre o livro: “O dilema da minha geração é que, ao mesmo tempo que se queria saber tudo (e durante uns anos poder tudo), não se queria perder a inocência” (Ípsilon, 11 de Maio de 2007), também é certo que a nostalgia (talvez antes melancolia) que perpassa todo o «Século Passado» está cuidadosamente encenada, diria dramatizada para levar o espectador-leitor a uma percepção emotiva muito precisa. E, nisso, a mestria de Jorge Silva Melo não é de todo inocente. Não é por acaso que este conjunto de artigos, notas, apresentações críticas e crónicas de jornal não se apresentam de forma redutoramente cronológica, nem sequer afloram a obra contemporânea vivida pelo autor, nem teatros ou amigos presentes, como está ressalvado em nota final. É notório que a pretensão é a de construir a história de um mundo de sonho, de utópica ilusão, de ilusória esperança que só no passado ficcionado pela memória e pela arte dramática é possível. Assim se exploram, em capítulos expressamente não diários, esse Ser Cinema, esse Ser Teatro, esse Ser Arte, lançados num país sem liberdade mas deliciosamente espicaçado pela juvenil maquinação omnipotente, seres ancorados ainda na ferocidade da escrita e na intransigência da imagem cinematográfica. Mas também, mais tarde, esquecidos pelo mercado de uma certa “liberdade económica”. Este é um livro sobre a morte e a vida, que se deve ler como romance que é, da primeira à última página, seguindo os passos de personagens como João Bénard da Costa, João César Monteiro, Fiama Hasse Pais Brandão, Mário Dionísio, Glicínia Quartim ou Sofia Areal, deambulando numa Lisboa de praças, cafés e jardins públicos e na intimidade que estes sempre fabricam. Um espaço público e privado onde ainda encontramos Jacques Tati, John Ford, Howard Hawks ou Alfred Hitchcock em sublimes retratos de maioridade crítica. Um livro sem medo de ser emocionalmente adjectivador, mordaz e, porque não, fúnebre, que reconhece na esperança maior, por mais ilusória que seja, força digna de mover montanhas. Uma montanha mágica, futura, que até pode acontecer em Montemor-o-Velho enquanto o sol desce sobre os plácidos campos do Mondego…

E deste modo, o pano desce no fim do primeiro acto.

 

jef, setembro 2007

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Sobre o filme «Lilith e o Destino» de Robert Rossen, 1964

 

























De modo abrupto, a carreira de Robert Rossen termina com este filme maravilhoso. Tinha 56 anos. Uma espécie de elegia ou epitáfio ao amor, à pulsão sexual e à luta de classes. Como se a arquitectura de Antonioni se casasse com os olhares mudos e expressionistas de Eisenstein, e as bandas sonoras de Kubrik tivessem reflexo na composição psicanalítica de Buñuel ou na estrutura social de Nicholas Ray.

Nada aqui nos é dito directamente. Excepto talvez o «I love you», sintomático, dramático, a chama ígnea da tragédia. Ou talvez não. Também, no final, quando Vincent (Warren Beatty) se aproxima e (nos) pede ajuda.

E se nada é referido textualmente, tudo está visto nos planos agressivamente fechados sobre o modo de amar, também sobre a pele, os olhos, os lábios de Lilith, (Jean Seberg) essa vestal louca e infantil, artista plástica que desenha com folhas e terra, dócil mas furiosa por desejar distribuir a sua dádiva amorosa, quase fogo divino, por todos igualmente. Na idílica clínica psiquiátrica para ricos, no piquenique sob a chuvada, à beira do tormentoso curso de água, no centro da feira mediável e do torneio equestre tudo fica por ouvir e os sons sobrepõe-se invariavelmente aos segredos disfónicos de Lilith. Apenas as crianças a ouvem. E a surpreendente música de Kenyon Hopkins que sobrepõem, de modo esquizofrénico, as variações atónicas do jazz à música da banda, à valsa ou à melodia de embalar tocada por Lilith. O médico, director da clínica, expõe a estrutura assimétrica da teia de uma aranha apanhada pela esquizofrenia. Como se explicasse o valor estético do trabalho do aracnídeo mas também a entrega de Lilith ou a orfandade de mãe e da guerra de Vincent. Naquela clínica, ele encontra tudo o que a vida lhe recusou. Mostra mas não lho entrega. Daí o seu amor, daí a sua revolta.

Um filme de revolta analítica e da maior profundidade artística tomado pela beleza de dois grandes actores: Jean Seberg e Warren Betty.

 

jef, novembro 2020

«Lilith e o Destino» (Lilith) de Robert Rossen. Com Warren Beatty, Jean Seberg, Peter Fonda, Kim Hunter, Anne Meacham, Jessica Walter, Gene Hackman, James Patterson, Robert Reilly. Argumento: Robert Alan Aurthur e Robert Rossen, segundo o romance de J.R. Salamanca. Produção: Robert Rossen. Fotografia: Eugen Schüfftan. Decores: Gene Callahan. Guarda-roupa: Ruth Morley. Música: Kenyon Hopkins. EUA, 1964, P/B, 114 min.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Sobre o filme «Quatro Contos» de Gabriel Abrantes, 2015, 2016, 2018



















Autor do surpreendente filme de «Diamantino» (2018), Gabriel Abrantes tem uma enorme intuição para gerir a técnica cinematográfica e a tecnologia digital, libertando a sua veia refractária de olhar as histórias e analisar o mundo. Estes quatro filmes denunciam a sua índole humorística sem freio. E sabe bem ver alguém que no mundo da arte se dá ao luxo de a subverter, rindo dela, sem medo de não cumprir ritmos, rituais e praxes. Como uma criança desaustinada que sabe que tem muito jeito para o non-sense e a gestão narrativa da comédia. Um bocadinho de Edgar Pêra, um bocadinho de Manuel João Vieira, um bocadinho de Monty Python.

«Freud Und Friends» (2015) é uma viagem entre Sigmund Freud, Herner Werzog, um tamboril manipulado clinicamente e a irmã da namorada do paciente mais totó do mundo: Gabriel Abrantes. Os seus sonhos, desvendados no Centro Champalimaud para o Desconhecido, revelarão o neurológico impossível.

«Uma Breve História de Princesa X» (2016) é a história mais rápida dos quatro capítulos (e talvez a mais coerente na sua disparatada velocidade de 7 minutos). Um impossível busto da bisneta de Napoleão, Marie Bonaparte, acaba em objecto fálico de bronze luzidio e aquela em escritora de reputados manuais sobre a sexualidade feminina. 

«Os Humores Artificiais» (2016) revela, em jeito “Pixar”, a terna saga do robô Andy Coughman, programado para a “stand-up comedy”, que se apaixona irremediavelmente pela jovem índia Xingu em pleno Mato Grosso.

Em «As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra» (2018) as estátuas do Louvre rebelam-se contestando a sua caduca imobilidade, saindo para olhar a revolta nocturna da cidade de Paris. Será este o mais complexo dos filmes mas também aquele cuja irreverência fica cativa numa proposta um tanto ingénua, quase pueril, quase banal.

Gabriel Abrantes é um fenómeno na diversão cinematográfica, na manipulação da tecnologia mas também na captação de investimentos para realizar filmes impensáveis num mundo artístico tão temente às novidades falíveis como é o dos nossos dias.

 

jef, novembro 2020

Capítulo I. Lisboa. «Freud Und Friends». Com Sónia Balacó, Gabriel Abrantes, Carloto Cotta, André E. Teodósio, David Phelps, Joana de Verona. Portugal / Suiça, 2015, Cores, 23 min.

Capítulo II. Paris (e Nova Iorque). «Uma Breve História de Princesa X» (A Brief History of Princess X). Com Francisco Cipriano, Joana Barrios, Filipe Vargas. Portugal / França, 2016, Cores, 7 min.

Capítulo III. Aldeia Yawalapiti (e São Paulo). «Os Humores Artificiais». Com Margarida Lucas, Gilda Nomacce, Ivo Müller, Amanda Rodarte. Portugal / brasil, 2016, Cores, 30 min.

Capítulo IV. Paris (Encore no Louvre). «As Extraordinárias Desventuras da Menina de Pedra» (Les Extraordinaires Mesaventures de la Jeune Fille de Pierre). Com Liza Lapert, Virgil Vernier, Vimala Pons, Alexis Manenti, Annie Mercier, Caroline Reruas. Portugal / França, 2018, Cores, 20 min.

 

domingo, 1 de novembro de 2020

Sobre o livro «Viagens com o Charley» de John Steinbeck, Livros do Brasil, ? (1962), Colecção Dois Mundos n.º 92. Tradução de Sousa Victorino.











«Travels With Charley: In Search of America». Um livro muito simples sobre uma América esquecida e reencontrada através da viagem por uma grande parte dos 50 estados, ao volante do Rocinante, a caravana especialmente equipada para o efeito. Sentado a seu lado vai Charley, um velho cão d’água que sofre de alguns problemas de saúde mas também sofre de grandes inteligência e intuição perceptiva. Sem ele, a voz de Steinbeck perder-se-ia por não encontrar eco reflexivo. Lá atrás, o balde com água, roupa suja e detergente chocalha, em moderno artefacto de "higienização".

Em 1960, o escritor tinha 58 anos e a percepção de que não viveria muito mais tempo. O livro é publicado em 1962, ano em que receberá o prémio Nobel e, 58 anos depois, é indicado em Portugal como leitura recomendada no plano lectivo dos liceus. E compreende-se que assim seja, até se aplaude, pois, repito, é um livro simples sobre a vocação ecuménica da alma humana, que entusiasma, entretém, ensina e comove como raros livros de viagem farão.

Não interessa se a viagem ocorreu assim, daquele modo, ou se parte é essência da viagem ficcional da narrativa. John Steinbeck é mestre nesse estilo de “argumento” e deixa-nos na mão, para que nós a tomemos, essa lógica “cinematográfica” que mistura uma certa melancolia de um bom livro, de uma óptima viagem, que sabemos irá chegar ao fim e a aceitação nostálgica de uma paisagem natural, urbana, humanizada que actualmente parece irreconhecível mas que permanecerá sempre como sua.

A América é um lugar de cidades, estradas, florestas, desertos, diners, estações de serviço, gentes que se encontram ou se isolam sob a complacente observação do escritor, sobre o seu silêncio incisivo e determinado. Ali está para nós uma realidade que será sempre “ficcionada” por cada nova leitura, pela percepção de cada um, a começar pelas do autor. Desde que ele parte de Sag Harbor, Long Island, atrasando os seus planos por ter de salvar o seu veleiro da tempestade Donna, até aí voltar, meses depois, extenuado de guiar, perdido nas vias rápidas de Nova Jersey, mas certo que encontrará um bom chui que lhe dirá: «Não pense nisso, amigo, ainda ontem me perdi em Brooklyn.»

Metáfora ou não, também Ulisses se quis perder até chegar a Ítaca ou Marco Polo se deslumbrou com as sedas sem desejar regressar a Veneza. John Steinbeck fala de uma América perdida e reencontrada com uma audácia apaixonada de cowboy ou a firmeza introspectiva de monge: a América ali está perdida nas suas vicissitudes e eternamente reedificada a partir dos seus escombros.

Assim também nós desejamos ver os Estados Undos da América em construção, após as eleições da próxima semana. Trump não merece ser conterrâneo de Steinbeck!


jef, outubro 2020