quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Sobre o livro «As Aventuras de Tom Sawyer» de Mark Twain, Colecção 11 x 17 / 100 | 001, Bertrand 2011. Tradução de Luísa Derouet e Eugénio Baptista de Casto.


















Umberto Eco afirma que, ao contrário dos factos da Físico-Química ou da História que são válidos até ser provado o seu contrário, ninguém poderá jamais duvidar de que o Capuchinho é Vermelho ou que Tom Sawyer é um indesmentível miúdo traquinas que vive entre arreliar a tia Polly, que tem uma predilecção muito especial por este sobrinho, e levar o seu amigo Huckleberry Finn a enveredar pelo mundo livresco de piratas galantes e ladrões eticamente irrepreensíveis.

A ficção é inquestionável e podemos sempre tomar as personagens das aventuras de Tom Sawyer como a realidade que une dois pontos da nossa vida. Um trajecto que começa com a primeira leitura da “Biblioteca dos Rapazes” da Portugália Editora, acompanhada entusiasticamente com bolachas Maria, leitura ávida a desejar ler a página derradeira para conhecer o fim das aventuras mas já temendo a nostalgia triste de fecharmos um livro já lido. E continua, cinquenta anos depois, com uma terna memória (e um entusiasmo semelhante ao primeiro) ao descobrir as artimanhas do travesso miúdo mas, agora, lendo as entrelinhas que o autor coloca na comunidade do Missouri, a pequena povoação sulista de St. Petersburg, aldeia a desejar ser urbana mas plantada na margem do rio Mississipi. A igreja, o reverendo Sprengue e os prémios-bulas religiosas; os saraus da escola e as classes regidas pelo professor Dobbins, que ansiara ser médico; a gruta do monte Cardiff e a ilha dos piratas nessa vontade das crianças de fugir dos adultos para tentarem deles se aproximar. Também o inevitável e desgostoso gosto de morrer para assistir às penas e às lágrimas que os outros, finalmente, derramarão sobre a sua tristeza solitária. E essa deliciosa e infantil libido que fará Thomas Sawyer rejeitar Amy Lawrence e aproximar-se de Becky Thatcher, a filha do juiz.

Concordemos com Umberto Eco, tudo em Tom Sawyer é real, criativo, verdadeiro. Universal e eterno.


jef, setembro 2021

Sobre o filme «Rifkin's Festival» de Woody Allen, 2020.
























Woody Allen faz neste filme uma espécie de brincadeira sobre o eterno código humorístico “Woody Allen”. E é essa espécie de desmontagem que tem muita graça. Ou seja: Woody Allen faz uma pouco credível comédia à Woody Allen.

A figura de Mort Rifkin (Wallace Shawn) pouco tem da aparência de Woody Allen apesar de fazer de um frustrado escritor e professor de cinema que chega a San Sebastián porque a sua mulher, uma belíssima Sue (Gina Gershon), vai ao festival como produtora de um famoso cineasta francês Philippe (Louis Garrel) que é jovem, belo, rico e marinheiro. Como é óbvio ela tem um affair apaixonado por este. Mas jamais a bela Sue estaria casada com a fraca figura de Mort Rifkin, nem o jovem cineasta resolveria com o seu próximo filme a crise israel-palestiniana, nem é assim tão galã, nem toca assim tão bem congas no clube nocturno.

Assim como a belíssima e talentosa cardiologista consultada, Jo Rojas (Elena Anaya), estaria casada com o temperamental, gordo e excêntrico pintor Paco (Sergi López) e ficando, assim, afectivamente ao hipocondríaco Mort Rifkin.

Contudo, tudo surge justificado pelo mundo dos sonhos a preto e branco que mostram ao professor o enquadramento psicanalítico da sua infância e crescimento, de tamanha rejeição. Orson Welles, Federico Fellini, Luis Buñuel, Ingmar Bergman, François Truffaut, Jean-Luc Godard explicam cabalmente

E tudo tão bem filmado, com aquela luz (Vittorio Storaro), aquele guarda-roupa, com aquela banda sonora (Stephane Wrembel) e a eterna forma-de-letra nos genéricos…

Como podemos nós perder um filme do Woody Allen?

jef, setembro 2021

«Rifkin's Festival» de Woody Allen. Com Wally Shawn, Gina Gershon, Louis Garrel, Elena Anaya, Sergi López, Christoph Waltz, Michael Garvey, Damian Chapa, Bobby Slayton, Richard Kind, Nathalie Poza, Cameron Hunter, Stephanie Figueira, Luz Cipriota, Godeliv Van den Brandt, Itziar Castro, Isabel García Lorca, Yuri D. Brown, Carmen Salta, Enrique Arce. Argumento: Woody Allen. Fotografia: Vittorio Storaro. Música: Stephane Wrembel. Itália / Espanha / EUA, 2020, Cores 92 min.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Sobre o filme «Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental» de Radu Jude, 2021


 



















A geração dos cineastas romenos Cristian Mungiu, Cristi Puiu ou Corneliu Porumboiu ofereceu ao mundo o dogma (e o espanto) de um novíssimo cinema realista europeu. «A Morte do Senhor Lazarescu» (Cristi Puiu, 2005), «12:08 a Este de Bucareste» (Corneliu Porumboiu, 2006) e «4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias» (Cristian Mungiu, 2007), mudaram o modo de olhamos a vida real através do cinema, revolucionaram o realismo e conquistaram a memória na cinematografia mundial.

E se «4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias» foi ganhar a Palma de Ouro em Cannes, este «Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental» conquistou o Urso de Ouro em Berlim.

Radu Jude nasceu em 1977 e traz uma nova objectiva estética ao realismo romeno da geração dos seus conterrâneos. Repetindo-me, digo que ele transporta uma nova objectiva e um novo realismo, trocando os parâmetros narrativos ao modo tradicional de descrever um caso tão simples, quando Emilia (Katia Pascariu), excelente e reconhecida professora de literatura, vê, por um acaso digital pouco claro, ser divulgado no éter dos satélites um inocente vídeo caseiro onde ela brincava sexualmente com o seu marido, Eugen (Stefan Steel).

E é este o primeiro filme que vejo filmado durante a pandemia, onde praticamente todos os actores, e em particular a soberba actriz Katia Pascariu, têm de se exprimir através das máscaras. Um primeiro sinal genial do filme com o qual Ingmar Bergman se deliciaria. Por trás da máscara está a pessoa, por traz da pessoa, a persona, por traz desta a arte de interpretar o cinema.

O segundo sinal a não esquecer é que o realizador mostra, numa primeira parte e de modo algo abstracto, a cidade de Bucareste percorrida pela ansiedade da professora acossada. Pelo meio das ruas, das paredes, dos prédios em ruínas, dos cartazes rasgados, dos anúncios comerciais, a viva mexe, remexe, numa espécie de expositor terno e ao mesmo tempo despudorado, quase pornográfico, mostrando e suspendendo as entranhas de uma cidade pelas quais uma alma deseja reorganizar a hermenêutica da sua vida. Wim Wenders ou Jean-Luc Godard não o teriam feito melhor.

Depois, a segunda parte, traz a liberdade desabrida de uma caderneta de cromos de “anedotas, signos e prodígios” sobre a vida de uma Roménia dilaceradamente divertida entre as guerras, o nazismo, o comunismo, Ceausescu e os ciganos. Causa ou consequência, não sabemos, mas é impossível esquecer o filme «A Autobiografia de Nicolae Ceausescu» de Andrei Ujica (2010).

Conclui-se com uma cena de burlesco real onde a expulsão da professora é ponderada, discutida e votada em plenário por toda a sociedade escolar, por toda a sociedade romena, por toda a preconceituosa inteligência europeia, por uma espécie de concílio global sobre a ablação do princípio universal da liberdade individual.

Um filme, ele próprio, de uma liberdade imensa que ficará guardado na colecção muito especial de filmes neo-neo-neo-realistas!


jef, setembro 2021

«Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental» (Babardeala cu bucluc sau porno balamuc) de Radu Jude. Com Katia Pascariu, Claudia Ieremia, Olimpia Malai, Nicodim Ungureanu, Alexandru Potocean, Andi Vasluianu, Oana Maria Zaharia, Gabriel Spahiu, Florin Petrescu, Stefan Steel. Argumento: Michelangelo Antonioni, Elio Bartolini, Ennio De Concini. Produção: Ada Solomon, Paul Thiltges, Adrien Chef. Fotografia: Marius Panduru. Música: Jura Ferina, Pavao Miholjevic. Roménia / Luxemburgo / República Checa, 2021, Cores, 106 min.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Sobre o filme «A Noite» de Michelangelo Antonioni, 1961

 



















A luz, o amor, a sociedade. O fim dos objectos.

É difícil escrever alguma coisa sobre um filme onde o uso exemplar da forma está definitivamente comprometido com a profunda descrença no futuro. Nesse ponto, na mestria dramática dos objectos, personagens, planos e falas, esta obra afirma-se como uma admirável ironia futurista. Um paradoxo.

Porque é um filme emblemático, simbólico, eterno. A arquitectura do cimento e do vidro representa o fim da sedução e do compromisso a partir da composição dos planos. Planos onde as personagens se cruzam apenas pelo olhar. Beijos distantes. A luz diagonal que faz inclinar o pescoço ou elevar a nuca. No início, o afundar vertical do vidro. No final, a horizontalidade dos corpos, desencontrados, entre as árvores. «Não te amo mais e tu também já não me amas».

A arquitectura, o design e as árvores. O fim de «A Aventura» (1960), «O Eclipse» (1962). As trilogias de Antonioni sobre o futuro. Sobre a nova sociedade.

A tristeza como sinal da falência e da mudança. O fim de uma certa burguesia. A festa como conclusão desse futuro e o recomeço do passado. A descontente apresentação do novo livro de Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni), a deriva de Lidia (Jeanne Moreau) pelos espaços da nostalgia. Na simbologia, este filme utiliza toda a técnica da sugestão do neo-realismo.

A taça de champanhe à cabeceira do amigo moribundo, a dança acrobática e «alcoólica» dos negros no bar, a festa dos Gherardini que é iniciada em torno de um cavalo e do seu cavaleiro. «Mas estão todos mortos, aqui?» Miles Davis pelo chão ou o realismo de «Os Sonâmbulos» de Hermann Broch, esquecido nos degraus de umas escadas.

O empresário Gherardini apresenta a firma como obra de arte ao escritor, desejando contratá-lo para que lhe dirigia a comunicação. Pontano diz que apenas tem memória, já não tem ideias. A Democracia como potencial económico e a marquesa Gentili, perita em orfãozinhos.

Os aviões e helicópteros que vão cruzando o céu de um sábado quente e dolente. A aparição deslumbrante, mas derradeira, de Valentina Gherardini (Monica Vitti). A primeira contraluz de domingo.

E o som como a ironia mais triste do que não foi agarrado no passado e que talvez já não será tocado no futuro.

Por que me lembro agora tanto de Jacques Tati e de Yasujiro Ozu?

Nada mais decadentemente contemporâneo.

É muito difícil escrever sobre «A Noite» porque a paixão revelada sobre a arquitectura e a forma é, afinal, a absoluta afirmação de que o futuro trará a essência da razão e do milagre.

jef, janeiro 2017

«A Noite» (La Notte) de Michelangelo Antonioni. Com Marcello Mastroianni, Jeanne Moreau, Monica Vitti, Bernhard Wicki, Maria Pia Luzo, Rossy Mazzacurati, Guido A. Marsan, Gitt Magrini, Vincenzo Corbella, Giorgio Negro, Roberta Speroni, Ugo Fortunati, Vittorio Bertolini, Valentino Bompiani, Salvatore Quasimodo, Giansiro Ferrata, Roberto Danesi, Ottiero Ottieri. Argumento: Michelangelo Antonioni, Ennio Flaiano e Tonino Guerra. Produção: Dino De Laurentiis. Música: Giorgio Gaslini e Quarteto Giorgio Gaslini. Fotografia: Gianni Di Venanzo. Itália, 1961, P/B, 122 min.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Sobre o filme «O Grito» de Michelangelo Antonioni, 1957































Antonioni possui uma especial intuição poética para exprimir o abandono, de transmitir a melancolia da ausência através de imagens quantas vezes de puro abstracionismo simbólico. Talvez seja aí que ele se una (ou rejeite e se afaste) da simbologia neo-realista.

«O Grito» tem no centro a perda constante e sucessiva. Aldo (Steve Cochran), homem forte e deliberadamente resistente, tal como os outros heróis operários da revolução iminente, é quem suporta todas as vicissitudes dessa privação, da sucessão de abandonos, das cidades por construir que são devoradas pelo capitalismo industrial, das mulheres que procuram em Aldo o ser que ele não consegue ser, até para Rosina (Mirna Girardi), a sua pequena filha, que ele transporta sozinho mais como fardo de uma vida sem sentido do que por afecto involuntário e maternal. A mãe, Irma (Alida Valli), reconstruir-lhe-á, mais tarde, a vida numa cidade à beira da especulação. E Aldo a ela voltará para se concluir, se imolar. No fundo para se evitar.

Mas os maiores símbolos dessa sociedade em fim de ciclo é o permanente caminho sacrificado das personagens entre a lama, a chuva, a poeira e a solidão.

É impossível não recordar «Obsessão» de Luchino Visconti (1943), «A Estrada» de Federico Fellini (1954) ou «Ladrões de Bicicletas» de Vittorio De Sica (1948). Apenas em «O Grito», todo o abandono social reflecte-se no interior de um homem, apenas nele, na sua via sacra ao som dos passos sobre o saibro ou sobre a lama, ou no olhar visto através de uma janela que é o apelo final, belíssima e abstracta conclusão, para a ascensão final e a queda inevitável, ao som de um grito tão pungente que fere o silêncio que perseguiu todo o filme.

 

jef, setembro 2021

«O Grito» (Il Grido) de Michelangelo Antonioni. Com Steve Cochran, Alida Valli, Dorian Gray, Jacqueline Jones, Gabriella Pallotta, Pina Boldrini, Guerrino Campanilli, Mirna Girardi, Lilia Landi, Gaetano Matteucci, Betsy Blair. Argumento: Michelangelo Antonioni, Elio Bartolini, Ennio De Concini. Produção: Franco Cancellieri, Ralph Pinto. Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Giovanni Fusco. Itália / EUA, 1957, P/B, 126 min.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Sobre o filme «Escândalo de Amor» de Michelangelo Antonioni, 1950



































Este filme podia ser uma ópera silenciosa, tal a carga cénica que é colocada em cada plano, rodeada da música de Giovanni Fusco, envolvida pela fotografia de Enzo Serafin, pelos longos planos em ponto de fuga e linhas convergentes de escadas de elevador, estradas, linhas de eléctrico; planos onde Lucia Bosè (Paola Molon Fontana) se move alongadamente como um belíssimo espectro estilizado, envolto pelos magníficos vestidos desenhados por Ferdinando Sarmi.

São longos planos quase lentos que colocam Paola Fontana entre dois mundos obstinados e cruéis. Inconciliáveis. O mundo milionário do industrial milanês e seu marido, Enrico Fontana (Ferdinando Sarmi), e o do mal agasalhado e empobrecido, agora reencontrado amor de juventude, Guido (Massimo Girotti). Por isso, esta ópera policial poderia ser um contraponto e uma libertação relativamente ao neo-realismo de Vittorio De Sica, usando os mesmos códigos à boníssima maneira de Antonioni: personagens silenciosos, em evasão de si próprias, do seu passado e do seu destino; personagens desaparecidas e falsamente reencontradas; mulheres que apenas têm a sua busca por método e homens enleados pelo que desejam mas recusam encontrar.

Este filme deve ser visto por diversas vezes, já que a extraordinária beleza de cada uma das cenas por vezes nos distrai das características essenciais e do ritmo da sua sequência, da densidade política de inúmeras falas.

Um assombro.

 

jef, setembro 2021

«Escândalo de Amor» (Cronaca di un Amore) de Michelangelo Antonioni. Com Lucia Bosè. Massimo Girotti, Gino Rossi, Ferdinando Sarmi, Marika Rowsky, Rosi Mirafiore, Rubi Dalma, Anita Farra, Carlo Gazzabini, Nardo Rimediotti Renato Burrini, Vittorio Manfrino, Vittoria Mondello. Argumento: Michelangelo Antonioni, Daniele D'Anza, Silvio Giovaninetti, Francesco Maselli, Piero Tellini. Produção: Franco Villani e Stefano Caretta. Fotografia: Enzo Serafin. Música: Giovanni Fusco. Guarda-roupa: Ferdinando Sarmi. Itália, 1950, P/B, 98 min.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Sobre o filme «Falling – Um Homem só» de Viggo Mortensen, 2020.
































Quando entra David Cronenberg em cena, a representar Dr. Klausner, urologista que vem testar o estado de saúde a Willis (um fabuloso e omnipresente Lance Henriksen!) fico mais atento.

No final, o realizador Viggo Mortensen (o actor de «O Senhor dos Anéis») faz um agradecimento especial a Agnès Varda que o terá aconselhado a deixar o espectador descobrir a história que quer ser contada.

Ainda na ficha final é referido ser o próprio realizador o compositor (e o pianista) da bela banda sonora (à laia de Clint Eastwood).

Diz que o director da fotografia é Marcel Zyskind que transforma o filme numa poética quase bucólica visão de uma América passada e triste, agressiva e retrógrada, entre a cubana Baía dos Porcos e a sombra sangrenta do Vietname.

É dessa América a preto e branco que John (Viggo Mortensen) vai resgatar o velho ressabiado pai para que não fique sozinho na quinta, trazendo-o para Los Angeles onde ele vive com o marido Eric (Terry Chen), de origem oriental, e a filha adoptiva de ambos, Mónica (Gabby Velis), de origem mexicana. Quando Willis chega a casa do filho aponta para o postal de Barak Obama “Yes, We Can!”, pregado na porta do frigorífico, e pergunta: «Tu também votaste naquele preto?».

E o mote está dado para um filme que confronta uma América exclusiva, a preto e branco, com uma América inclusiva, futura e a cores. Uma história contada por sucessivos flashbacks e conflitos de gerações, onde o afecto é sublimado ou sublinhado por esse lastro de memória que o presente deseja melhorar, dourando a pílula, fazendo o silêncio de resignação ou o ódio calado de John confrontar o exasperante e odioso pai.

Um filme dramático adoçado por um inevitável humor subliminar, muito bem contado por um estreante na realização.

Viggo Mortensen, um realizador a ter muito em conta.


jef, setembro 2021

«Falling – Um Homem Só» (Falling) de Viggo Mortensen. Com Viggo Mortensen, Lance Henriksen, Sverrir Gudnason, Laura Linney, Terry Chen, Hannah Gross, Carina Battrick, Ava Kozelj, Gabby Velis, Bracken Burns, Liam Crescitelli, Luca Crescitelli, Grady McKenzie, Eienne Kellici, William Healy, David Cronenberg, Henry Mortensen. Argumento: Viggo Mortensen. Fotografia: Marcel Zyskind. Música: Viggo Mortensen. Canadá / Grã-Bretanha, 2020, Cores, 112 min.

 

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Sobre o livro «O Homem que Era Quinta-Feira» de G.K. Chesterton (1908). Colecção Ficções 11, Editorial Estampa, 1989. Tradução de Domingos Arouca.


 









Do modo anacrónico, como as coisas sempre se associam no nosso interior, G.K. Chesterton (1874 – 1936) faz parte de um certo mundo britânico a que ligo aos Monty Phyton. Um mundo desvairado mas coerente, elegante mas sempre contracorrente, aparentemente abstracto, fantasioso e delirante, irónico até mais não, sarcástico, e ao mesmo tempo muito sério, nunca se desviando um centímetro da regra narrativa de melhor prender o leitor. Do melhor e mais clássico tom linguístico. Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, Arthur Conan Doyle, Horace Walpole, Lewis Carroll, e por aí fora…

Este é um romance que poderia ser lido como um livro de aventuras para crianças que gostem de poetas, polícias e anarquistas bombistas de chapéu alto e labita. Estamos no início do século XX e aqui ninguém é quem parece. Tudo é falso. Excepto talvez o antagonismo semiótico que acontece logo no início, em Saffron Park, entre o ruivo, incendiário e anarquista palestrante, Lucian Gregory, e o poeta da ordem e da lei, Gabriel Syme. Afinal quem são os sete membros do dinamitador Conselho Central Europeu dos Anarquistas? O que é o Serviço filosófico da Scotland Yard? Por que se mascaram eles e são na realidade o que não parecem? Porque teria Syme “aqueles espasmos de grande senso, essas intuições poéticas que por vezes chegavam à exaltação profética”?

Porque lutam desesperadamente uns contra os outros se partilham todos a mesma identidade, uma amizade solidária quase saída do reino dos romances de cavalaria, dos romances de aventuras mais fabulosos?

Porque desconfiam de tudo e de todos, se tudo e todos são falsos?

«querem que vos diga qual é o segredo do mundo inteiro? É que lhe conhecemos apenas as costas, vemos tudo por trás e parece-nos brutal. Aquilo não é uma árvore, são as costas de uma árvore, aquilo não é uma nuvem, mas sim as costas de uma nuvem. Não vêem que tudo se curva e esconde a cara? Se nós pudéssemos ver de frente…»

«Um distraído é um bem-intencionado, é um indivíduo que, se reparar em nós, pede desculpa. Mas já pensaram num distraído que, se nos vir, mata? Isso é que esgota os nervos, a abstracção combinada com a crueldade».

«O trabalho do polícia filósofo é ao mesmo tempo mais audacioso e mais subtil que o do polícia vulgar. Este vai aos tascos prender ladrões, nós vamos aos chás de artistas descobrir pessimistas. O detective vulgar descobre, por uma agenda ou por um diário, que se cometeu um crime. Nós, num livro de sonetos, descobrimos que se vai cometer um crime.»

E está tudo dito!

(Só é pena a edição estar semeada de tantos erros, de revisão e dos outros…)

 

jef, setembro 2021