quarta-feira, 27 de maio de 2015

Rosa















Coloca um botão de rosa sobre o seu vestido e depois desabotoa-o.

Coloca com a exactidão de um metrónomo o botão de rosa sobre o vestido. Com suavidade, muita suavidade. Não pela seda frágil das pétalas oclusas mas para proteger dos espinhos a seda azul.

Este gesto deve ser executado, ainda, com o rigor cúmplice desse metrónomo que rege a partitura deslizando sobre os compassos inaudíveis da pauta.

Nada se ouve por ser exactamente, suavemente, construído. Como o botão de rosa deixado sobre o azul.

Estando o botão colocado sobre o vestido, conclui-se o primeiro acto.

São dois objectos que se tocam na fragilidade, digamos, musical. Só na aparência, dado a música opor-se à ideia do ser frágil e a seda, das pétalas ou do vestido, demonstrarem o estatuto da perenidade poética.

Agora desabotoa-o. Já o tinha dito?

Um botão de rosa, que só parece frágil, aguarda o momento em que vai ser levantado, segurado com displicência milimétrica. A aristocracia efémera de quem sabe ser imprescindível.

É ao gesto de erguer com lentidão distraída uma flor que eu chamo desabotoar. O acto segundo fica encerrado.

A partir daí a flor em botão está prestes a ser esquecida. Acto terceiro e final.

Ela é, por um instante, encostada ao corpo do vestido, acariciada pela mão já em demanda de outras sedas. Logo a flor resvala segura e a falsa fragilidade revela-se.

A mão ferida revolta-se, esmaga as pétalas oclusas. A seda das pétalas é libertada. O espinho detém a lentidão musical, a suavidade perde-se. Tal como a exactidão.

Também o azul da seda fica manchado pela rapidez menos suave do sangue. Distraidamente rasgado pelo espinho.

Distraído, por estar lançado no chão, fica o vestido sobre o botão da flor que já não se reconhece. Esquecido.

Distraído, por trazer na leve memória a partitura musical que acaba de ser lida em silêncio. Digamos, aristocraticamente esquecido.

Desabotoado.

jef, maio 2015

domingo, 24 de maio de 2015

O comboio do triunfo


 

 
 
 
 
 
 
 
A palma da mão aberta sobre o Mundo que confunde a cauda com a língua. Um Comboio interminavelmente lento delicia-se a esmagar, perna por perna, braço por braço, Quem já não se levanta. O Maquinista sequioso agita o boné ao vento nefasto e reclama todos os Meios para que se chegue ao Fim da linha. E triunfa. Lá, na estação última, está o Chefe da Banda, galante e oleoso, para outorgar-lhe a medalha de Morte. Assim, satisfeitos, chegam para o Festim a ser servido na Cantina dos ferroviários defuntos. Martini break. Hors-d’oeuvre gourmet. Bebem e comem até se sentirem a chafurdar nas palavras da Conveniência. Deitam-se depois a dormir a sesta mas não sabem para que lado o devem fazer, como a serpente que confunde, por Sistema, a cauda com a língua. Recusam mostrar as palmas das mãos ao Mundo e não sonham que têm plantas nos pés.
Jef, maio 2015

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Sobre a leitura de «A Noiva do Tradutor» de João Reis, Companhia das Ilhas, 2015















«As pessoas neutras são as mais perigosas»,
reflecte o Tradutor à mesa do café, pela página 44, olhando para Hermengarda, a poetiza que fala mesmo quando nada tem para dizer e que se maquilha em excesso. O Tradutor não se sente bem. Viu partir um navio em direcção às terras da neve, os passageiros do eléctrico enojam-no, acaba por perder o chapéu. Uma nódoa na gravata, uma laranja no bolso. Sente cheiros nauseabundos, ameaçadores, sulfúricos. A lama, ou melhor, o lodo impede-o de avançar, ou melhor, o Tradutor afoga-se no lodo de uma cidade que apenas dá asilo a animais… A cidade, um jardim zoológico de parasitas, sovinas e energúmenos. A nossa cidade!

João Reis escreve uma novela sobre o mundo literário eterno: Gregor Samsa, Bartleby, Wakefield, Raskolnikov, O Homem Sem Nome de Knut Hamsun... E como João Reis escreve bem! É-me impossível não sorrir com a dicotomia entre os ácidos «diálogos» interiores e os maviosos diálogos «exteriores», unidos por um estranho impropério…

A grande literatura só pode ser infalível se alicerçada, ancorada, acarinhada, pelos seus digníssimos descendentes. Este Tradutor é um deles!

jef, maio 2015

terça-feira, 12 de maio de 2015

Sobre o filme «Força Maior» de Ruben Östlund (2014)















As mãos no fogo.
Poderemos nós confiar na luz branca da neve? Ou no «Inverno» de Vivaldi quando acompanha as explosões das avalanches controladas nos Alpes?
Este é um filme que toca a questão primordial do grau de confiança. E não é de estatística que fala! Ele fala dessa fronteira estranha, extrema e mais íntima do conhecimento do outro quando é posta em causa por uma situação limite. Ficamos a conhecer melhor o outro mas a confiança é quebrada. As verdades são confrontadas, digamos acareadas, pela gravação das imagens num telemóvel. Confrangedoras ao tornarem-se públicas. O abismo afunda-se sob a avalanche descontrolada da incredulidade, ou da declaração de um passado até ali incompreendido.
Narrado tudo num misto de drama puro e comédia suspensa. Por isso, alguns espectadores riem tanto, talvez por nervoso, talvez pelo enorme incómodo. Um suspense muito fino, uma tensão tão arguta quanto bruta a lembrar «Sonata de Outono» de Ingmar Bergman (1978) ou «Spellbound / A Casa Encantada» de Alfred Hitchcock (1945).
E a luz branca da neve, cega ou esclarece?
E por quem pomos nós as mãos no fogo?

jef, maio 2015

«Força Maior / Force Majeure» (2014) de Ruben Östlund. Com Johannes Kuhnke, Lisa Loven Kongsli, Clara Wettergren.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Sobre o filme «Ex Machina» (2015) de Alex Garland















Telhados de vidro e fractais.

Este filme é sobre «inteligência natural». Duvido, aliás, que exista «inteligência artificial», agora que já ninguém põe em causa que gatos, cães, cavalos, golfinhos, galinhas, formigas, humanos, usam, naturalmente e a seu modo, a inteligência que lhes compete. «Inteligência artificial» só para os filmes de ficção científica.

Mas poder-se-á, hoje em dia, fazer-se bons filmes de ficção científica? Sim. Este é um exemplo muito razoável. Apesar de parecer blasfémia compará-lo a «2001, Odisseia no Espaço» (Stanley Kubrick, 1968) ou «Blade Runner» (Ridley Scott, 1982), a atracção pelo mundo dos andróides anda por ali. Talvez demasiado perto… O ‘computador’ Ava adiciona a vocação para o controlo e a manipulação de HAL 9000 à sedução de Rachael, aquela que, por erro de fabrico, desconhecia a data de sua morte.

Mas na memória do filme fica a capacidade de um argumento para demonstrar que a suspeita e a mentira são a energia fatal que corrompe a confiança e o «estado de vidro» dos afectos e da própria sobrevivência. Não faltam aqui, ainda, a banda sonora particular (Geoff  Barrow e Ben Salisbury), as paisagens norueguesas, a arquitectura transparente a lembrar uma célebre casa de chá nortenha ou as habitações de montanha de um tal Frank Lloyd Wright.

E se não existe a natural inteligência de gatos, cães, cavalos, golfinhos, galinhas, formigas, humanos, também não será uma qualquer «Inteligência Ex Machina» que, no final do drama, nos virá salvar!

[E por favor, não saiam do cinema antes de terminar o genérico final – a fragilidade geométrica dos «fractais».]

jef, abril 2015

Sobre o filme «Ex Machina» de Alex Garland (2015). Com Alicia Vikander, Domhnall Gleeson, Oscar Isaac.

domingo, 3 de maio de 2015

Sobre o filme «Roma, Cidade Aberta» (1945) de Roberto Rossellini



No princípio existia a guerra.

Suspender o verbo da guerra, acção a acção, plano a plano, imagem a imagem, concedendo o tempo necessário ao espectador para compreender-não-compreender esse estado da humanidade que deu a si própria os piores pesadelos e as melhores páginas literárias. Eis o paradoxo resolvido por «Roma, Cidade Aberta».

Como se constrói um filme assim, com película 35 mm comprada na rua e sem poder revelar-se o que vai sendo filmado? Estamos em Roma! Estamos em 1945!

Quem esquecerá o olhar de Anna Magnani e, logo de seguida, a corrida e a queda de Pina? Uma das cenas que marcam a memória da história do cinema!

Quem negará a estética exacta de cada um destas cenas? De quantos planos rápidos é composta cada uma? (Quantas portas se fecham neste filme e quantas são deixadas abertas?) Um enorme filme de aventuras!

Um filme perfeito!

jef, maio 2015

«Roma, Cidade Aberta / Roma Città Aperta» (1945) de Roberto Rossellini. Aldo Fabrizi, Anna Magnani, Marcello Pagliero, Francesco Grandjacquet, Vito Annchiarico, Nando Bruno, Harry Feist, Maria Michi, Giovanna Galletti.