terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «O Nosso Último Tango» de German Kral, 2015






















Como no filme «Fados» de Carlos Saura (2007), onde o fado ultrapassa o cineasta como personagem e estética, tão grande e diversa a escolha entre o material disponível, também em «O Nosso Último Tango» German Kral não teve mãos a medir. O tango, essa cultura de estética viva, um tanto acrobática, um tanto agressiva, mas colossalmente popular e visualmente atractiva, não se poderá resumir a planos sucessivos de caminhadas pelas ruas e entradas em salões que já fizeram a sua época nos anos 40-50 no século passado.
Por outro lado, a reconstituição dos tempos infantil e juvenil de María Nieves sai um pouco pífia relativamente aos magníficos grandes planos e à força da natureza que foi (e ainda é) a vontade da famosa bailarina de tango que marcou a cultura de Buenos Aires. Tão grande ela é que eclipsa (no filme) a presença do seu par e coreógrafo durante 40 anos que é Juan Copes. Erro de narrativa ou impossibilidade de investigação?
O realizador German Kral podia ter evitado um pouco mais as coreografias representativas da complicada vida do casal, entrecortadas por ensaios e entrevistas, deixando a cronologia seguir o seu próprio rumo. Nesse ponto, recordo com entusiasmo um outro musical «À Procura de Sugar Man» de Malik Bendjelloul (2012).

Mas três coisas são indiscutíveis no filme: (a) María Nieves ensina-nos a querer não desistir, ficando-me a ideia de uma espécie de Elis Regina do tango. (b) María Nieves e Juan Copes são dançarinos absolutamente excepcionais. (c) O tango é uma dança que sai dos corpos dos bailarinos como uma exsudação extraordinária.

jef, fevereiro 2018
                                                                      
«O Nosso Último Tango» (Un Tango Más) de German Kral. Com María Nieves Rego e Juan Carlos Copes Documentário, Musical. Itália / Alemanha / Argentina, 2015, Cores, 85 min.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «15:17 Destino Paris» de Clint Eastwood, 2018












Terei eu de esquecer Clint Eastwood, já que não poderei esquecer Dirty Harry?
Terá ele enlouquecido na deriva republicana e paranóica do herói americano?
O que será feito da entidade que idealizou «As Pontes de Madison County» (1995), «Mystic River» (2003), «Million Dollar Baby» (2004), «Cartas de Iwo Jima» (2006) ou «Gran Torino» (2008)? Ter-se-á alheado da figura que representa para o cinema mundial?
Claro que não está em causa o heroísmo dos jovens americanos (e do britânico Chris Norman) que conseguiram neutralizar a catástrofe que o terrorista Ayoub El Kahzzani pretendia efectuar no dia 21 de Agosto de 2015, no comboio de Amesterdão para Paris com 554 passageiros a bordo.
Sim, sublinho, eles são heróis.
Antes pelo contrário, acho que o maior problema de Clint Eastwood é exactamente colocar em ridículo os três amigos, Anthony Sadler, Alek Skarlatos e Spencer Stone, levando-os à atroz posição de representar as personagens de Anthony, Alek e Spencer. Eles próprios dentro da sua própria história. E quão maus actores são!
Pior é a reconstituição série C das suas infância e juventude, fazendo o espectador relacionar a religiosidade infantil, o gosto de brincar à guerra, a insubordinação escolar, a família monoparental, o falhanço na escolha da carreira militar, com a construção e a consciência do Ente Americano. Parece uma caricatura. Fico com pena daqueles rapazes de fundo tão bondoso.
Enfim, que fique do filme as imagens da justa condecoração e do discurso de François Holland no palácio do Eliseu.  
Anthony Sadler, Alek Skarlatos e Spencer Stone mereciam muito melhor, mereciam que lhes fossem douradas ou desculpadas as falhas, como sempre o fizeram aos heróis antigos.
E, já agora, nós também merecíamos melhor, caramba!

jef, fevereiro 2018


«15:17 Destino Paris» (The 15:17 to Paris) de Clint Eastwood. Com  Jenna Fischer, Judy Greer, Lillian Solange Beaudoin, Anthony Sadler, Alek Skarlatos e Spencer Stone, Paul-Mikel Williams, Max Ivutin, Bryce Gheisar, Cole Eichenberger e William Jennings, Ray Corasani. EUA, 2018, Cores, 94 min.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «The Florida Project» de Sean Baker, 2017.
















EUA, Florida, Orlando, Disney World, ou os seus arredores.
Arredores povoados de lojas de souvenirs, sumos de laranja e motéis para turistas disneyanos ou famílias de poucos dólares à beira de ficarem sem tecto se não pagarem a renda. Bobby (Willem Dafoe) anda numa roda-viva a cuidar de tudo e de todos, controlando, refilando, acarinhando. É um ‘cuidador’, como agora dizem os novos dicionários.

O espaço é amplo, muito amplo, muito colorido, onde as crianças vivem felizes e livres, fazendo os disparates a que têm direito em tempo de férias grandes. Um lugar onde mesmo as árvores que caem continuam a crescer e onde é permitido fazer belos safaris entre as vacas que pastam nos terrenos alagadiços que rodeiam o «Magic Castle – Inn & Suites».

Mas apesar de Bobby, do espaço e da liberdade, cada dólar conta para comprar a próxima refeição, para o divertimento, para o dia seguinte. Moonee (Brooklynn Prince), Scooty (Christopher Rivera), Jancey (Valeria Cotto), Dicky (Aiden Malik), as crianças têm disso uma consciência especial. A avó Stacy (Josie Olivo) ou a mãe Halley (Bria Vinaite), têm do dólar um entendimento diferente. Assim como Bobby que vai gerindo como pode as rendas, as malandrices dos putos, a segurança, o conforto de todos. E é reconhecido. O aplauso chega das grandes varandas-patamares quando restabelece a luz do motel. Bobby é o garante de que o mundo talvez continue a existir amanhã.

Este filme é uma parábola de um mundo terno mas em sofrimento, um mundo que sabe regular os conflitos internamente. O realizador pode ser discípulo de Ken Loach, Mike Leigh ou Stephen Frears, mas «The Florida Project» não usa o modo político como a maior parte dos filmes daqueles. Sean Baker entrega ao maravilhoso Willem Dafoe um papel dificílimo de polícia, pai, padre e silencioso profeta, não de líder ou agregador da ideia comum. 

A bela cena final representa metaforicamente a atitude do realizador ao perseguir a corrida de Moonie e Jancey, fugindo de um Magic Castle para outro Magic Castle ao som exuberante da sinfonia.

jef, fevereiro 2018


«The Florida Project» de Sean Baker. Com Willem Dafoe, Brooklynn Prince, Bria Vinaite, Valeria Cotto, Christopher Rivera, Aiden Malik, Josie Olivo. EUA, 2017, Cores, 111 min.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «2 Dias em Paris» de Julie Delpy, 2007

















Penso. Neste filme, Julie Delpy talvez tenha ido longe de mais na caricatura de franceses e americanos.

Após a chegada à Europa para uma viagem de comboio até Veneza, e numa relação algo implicativa, Marion (Julie Delpy) e Jack (Adam Golberg), ela francesa, ele americano, regressam a Paris por dois dias para buscar o gato deixado, entretanto, na casa dos pais de Marion. Mas se a viagem a Itália não correu bem, a estadia em França não correr melhor.

Penso. Afinal, a caricatura vem de dentro, vem de quem conhece os dois lados, geneticamente. Como franco-americana, Julie Delpy pode brincar não só com americanos e franceses mas, acima de tudo, com o estereótipo que usualmente se constrói em torno dos dois povos. Até deve e tem o direito a essa brincadeira. O riso é o modo de melhor e mais sábio de sermos esclarecidos sobre qualquer assunto. Diria o grande escritor Rui Cardoso Martins.

Se as situações são reais, garanto, não o são. Se o fossem não era cinema, não era teatro. Jamais, em dois dias, Marion encontraria tantos ex-namorados, e Jack não se confrontaria com tantos medos paranóicos. Nunca Paris pareceria tão coincidentemente apaixonada. Em «2 Dias em Paris», Julie Delpy diverte-nos com os clichés mas sempre dando uso ao seu coração cheio de amabilidade familiar e urbana inteligência.

Penso. O filme é bem melhor do que esperaria. A cena final invoca uma das cenas fundamentais do cinema mundial. Os derradeiros minutos de «Viagem em Itália» de Roberto Rossellini (1954). Brincar com o intocável é de mestre!

jef, fevereiro 2018
                                                                      
«2 Dias em Paris» (2 Days in Paris) de Julie Delpy. Com Adam Goldberg, Julie Delpy, Daniel Brühl, Marie Pillet, Albert Delpy, Alexia Landeau, Adan Jodorowsky, Alexandre Nahon. Alemanha / França, 2007, Cores, 89 min.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Fogo preso















Fogo preso

Ser-se do corpo como jamais seremos
Guardar-se nele o sopro constante do marinheiro
Sabendo que da maresia receberemos
O exalo que por vezes é tão breve, tão primeiro.

Seremos sempre nos olhos o seu olhar
Recebendo o quieto instante que o mar lavra
E que nos seus lábios sabemos vão guardar
A onda mais forte que é do oceano a palavra.

Deixemos à águia o roubo agrilhoado de Prometeu
Que o barro da sua pele no peito aqui moldou
Tomando por deus o corpo que o desejo concedeu
E o fogo escuro que o frémito então abreviou.

Esqueçamos por agora de Ulisses a ausência
Reclamando a sede que o mar assim negou
Recebendo-a pelo sal um beijo que na carência
Em uma praia que de tão longe nos aproximou.

jef, fevereiro de 2018


«Prometeu Agrilhoado» de Nicolas Sébastien Adam, 1762, Museu do Louvre, Paris.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «Le Havre» de Aki Kaurismäki, 2011


















Se a Bíblia admitisse o humor como fundamento da comunicação e da inteligência humanas, certamente acolheria Aki Kaurismäki como profeta da esperança e o filme «Le Havre» como a epístola de ‘O Lucro da Bondade’.

Aqui, são todos absolutamente humildes, generosos, delicados e dedicados. Todos sorriem discretamente, a começar por Laika, a cadela gentil.

Marcel Marx (André Wilms) abandona a escrita e estabelece-se como engraxador na cidade portuária de Le Havre. Conta os tostões. Tem um amigo engraxador chinês, que afinal é vietnamita, Chang (Quong-Dung Nguyen). É casado com Arlety (Kati Outinen). Antes de chegar a casa, passa pela padaria e pela mercearia, bebe um copo no bar predilecto. Por aí encontra os amigos.

Até que a sua mulher adoece gravemente e o acaso leva-o a encontrar-se com um adolescente refugiado africano, Idrissa (Blondin Miguel) que deseja reunir-se com a mãe, no Reino Unido. Então Marcel tem de desunhar-se, calmamente, sem abandonar a lisura e a boa educação, na tentativa de atingir todos os objectivos em simultâneo.

Esteticamente, todos os objectos estão sob uma luz determinada para que a cor os transforme em lugares cenográficos que demonstram ao espectador a ânsia de benquerença de Marcel e dos seus vizinhos e amigos.

Nesta pastoral sobre os benefícios lucrativos da amizade e da boa convivência até o inspector da polícia (Jean-Pierre Darroussin) tem um coração de oiro e a cerejeira ergue-se florida no quintal para receber Marcel e Arlety.

Seria bom que os grandes livros dos fundamentos da moral do homem admitissem o humor e a bondade como postulados a partir dos quais se ergueria a nova sociedade, tal como advoga Aki Kaurismäki na parábola «Le Havre». Bem, e se admitissem igualmente o cigarro como um dos grande prazeres da humanidade.

jef, fevereiro 2018
                                                              
«Le Havre» de Aki Kaurismäki. Com André Wilms, Jean-Pierre Darroussin, Blondin Miguel, Kati Outinen, Elina Salo, Jean-Pierre Léaud, Evelyne Didi, Pierre Étaix, Quoc Dung Nguyen, Little Bob, Ilkka Koivula, Laika, François Monnié. Fotografia: Timo Salminen. Alemanha / França / Finlândia, 2011, Cores, 89 min.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «Olhares, Lugares» de Agnès Varda e JR, 2017





















Existe um enorme potencial de ternura na cinematografia de Agnès Varda (e.g. «Os Respigadores e a Respigadora» 2000, «As Praias de Agnès» 2008). Esse pathos que aproxima e cativa vem de um diálogo que a realizadora tem vindo a promover entre o tempo que se esgota sobre a memória e a aproximação social com o trabalho e a humanidade que o pratica. Agnès Varda tem 89 anos, tem uma longa carreira no cinema e na fotografia, vê mal, mas não é por isso que se isola.

Pelo contrário, Agnès Varda convoca o artista plástico JR que promove arte de rua através de enormes fotografias coladas de modo efémero em paredes e em grandes planos públicos. JR tem 34 anos, usa sempre chapéu, vê sempre através de óculos escuros e conduz uma carrinha-photomaton de onde saem alguns dos retratos gigantes.

Juntando dinheiro através de donativos, a realizadora e o artista plástico resolvem praticar um acto social e expor em ponto gigante diversas histórias encantadas, íntimas, da história social de uma França que também se vai escoando, como o olhar desfocado de Agnès ou as horas da avó de JR, que fala pouco.

Este filme, para quem tiver a capacidade de o compreender e de se comover, é exactamente sobre o fim do tempo. O fim do nosso tempo. Contudo, e por paradoxo, é também sobre a alegria da criatividade libertada de escoras ou baias. Ou seja, um filme sobre o rigor da liberdade e a arte de a lançar no futuro.

jef, fevereiro 2018
                                                                 

«Olhares, Lugares» (Visages, Villages) de Agnès Varda e JR. Música de Matthieu Chedid. Documentário. França, 2017, Cores, 89 min.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «Harry, um Amigo ao seu Dispor» de Dominik Moll, 2000



















Se existe um filme que crie um desconforto continuo, crescente, um suspense confrangedor colocado no estômago do espectador, esse filme é «Harry, um Amigo ao seu Dispor».
Se existe família mergulhada no sofrimento do quotidiano, ela é a de Michel (Laurent Lucas), de Claire (Mathilde Seigner) e das suas três filhas pequeninas, Jeanne (Victoire de Koster), Sarah (Laurie Caminata) e Iris (Lorena Caminata).
Se existe amigo pronto para ajudar Michel, de memória e determinação ferozes, antigo colega de liceu, passeando por França com a sua namorada Prune (Sophie Guillemin), é ele Harry Balestero (Sergi López).
Se existe argumento hitchcockiano servido por uma cadeia de situações estratégicas, embora inverosímeis, oferecido a actores em estado de excelência, é o deste filme.

Um filme, digamos diabólico e amoral, feito à medida de um magnífico Sergi López que dá a dimensão da perversidade do personagem de modo luminoso e sub-reptício, fazendo o espectador desejar esquecer os preceitos judiciais do Ocidente para devolver àquela família o rumo da felicidade. A todo o custo. Não interessa o preço.

Existe um humor fino, delirante, simbolicamente ‘ilegal’ e ‘surrealizante’, a unir este Michel, sério pai de família, abnegado e escritor frustrado, e uma outra personagem, Michèle, criada por Isabelle Hupert para Paul Verhoeven no filme «Ela» (2016).

«Harry, um Amigo ao seu Dispor» é um policial sem polícias, que faz acreditar que as coincidências do destino são dados a jogar ao sabor da realidade intriguista.

jef, fevereiro 2018
                                                                      

«Harry, um Amigo ao seu Dispor» (Harry, un ami qui vous veut du bien) de Dominik Moll, 2000. Com Sergi López, Laurent Lucas, Mathilde Seigner, Sophie Guillemin, Liliane Rovère, Dominique Rozan, Michel Fau, Victoire de Koster, Laurie Caminata, Lorena Caminata. Música: Davi Sinclair Whytaker. França, 2000, Cores, 117 min.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «Beuys» de Andres Veiel, 2017



















O que atrai no documentário de Andres Veiel é o próprio objecto em que se centra: o artista alemão Joseph Beuys. Um ser superactivo e fremente, aguardando que o dia que chegará venha resgatar a liberdade do artista que vê na arte o objecto imprescindível para transformar a sociedade. A arte, o tal objecto ao alcance de todos, assim como deviam ser a academia e a política. A arte, a ser praticada e criticada por todos, o verdadeiro trampolim para um certo novo mundo surgido de uma revolução e de um sorriso.

Tento recordar.

Joseph Beuys correu muito e criou polémica. Naturalmente, divertiu-se.
Estudou medicina, serviu a Luftwaffe, teve um acidente na Crimeia. Quase morreu. Foi salvo pelos tártaros que o curaram com gordura e cobertores de feltro. Usou a gordura de porco em degradação em salas de exposição, forrou pianos e galerias de feltro. Executou «A Matilha», com uma carrinha Volkswagen e 24 trenós. Mostrou-se como era, com uma lebre morta nos braços. «Como Explicar Desenhos a uma Lebre Morta» Em Kassel, pretendeu disseminar 7.000 carvalhos por 7.000 pedras que se espalhariam para outras cidades. «7.000 Eichen». Em Nova Iorque, fechou-se durante dias numa sala com um coiote. «Eu Gosto da América e a América Gosta de Mim». Fundou diversos movimentos estudantis, ajudou a organizar o partido Os Verdes. Foi expulso da academia por insubordinação. A sua obra foi exibida em retrospectiva no Museu Guggenhein de Nova Iorque.

Nasceu em Krefeld, 1921. Faleceu em Düsseldorf, 1986.


Teve uma vida do caraças, pelo que me é dado perceber através de um documentário apressado, caótico, tentando imitar a pressa estética do artista mas esquecendo que existem apenas três ou quatro modos de contar uma história, seja ela ficção ou documental. Fiquei confuso a desejar saber mais sobre a obra, não sobre a fascinante persona «Beuys». Um filme deslumbrado por um milhão de belos retratos de Beuys mas que, por superávido, ultrapassam a própria estética criada por um ser angustiado e bondoso, triste e enérgico, que não tinha tempo para dormir.

Qualquer coisa de aventureiro, solitário, estético e intransigente. Qualquer coisa de Jacques Brel, qualquer coisa de Tintin.

jef, fevereiro 2018

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Beijo











Um beijo só pode ser definido
se repetido, como o eco das palavras
lançadas ao risco do abismo.
Um beijo só pode ser molhado
pela língua doce da saliva,
como a pedra que deslisa e repete na
superfície da água humedecendo o lado
que guarda a probabilidade
da levitação.


jef, 11 de fevereiro de 2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «Linha Fantasma» de Paul Thomas Anderson, 2017

















É um filme deslumbrante.
Vivam estes três enormes actores: Daniel Day-Lewis (Reynolds Woodcock), Vicky Krieps (Alma) e Cyril (Lesley Manville) que se desdobram em planos grandes de uma tensão luminosa, em guerrilha amorosa, de cortar a respiração, numa luta surda entre o amor, o poder, a solidão e a angústia pela perfeição no trabalho, pela ausência do resto, pelos segredos, pelos silêncios! Pela obsessão do ritual!

E não são apenas as tesouras a esgarçar os tecidos, ou as costureiras, perfeitas, a costurar o assombro, ou a música original de Jonny Greenwood (é um pecado sair-se da sala sem que terminem os últimos acordes). É o ódio instalado no rosto de Reynolds quando é importunado pelo raspar da faca na torrada áspera, o chá a cair de alto em fio na chávena, preponderante, invasivo. O som impressiona visivelmente!
Tudo envolto num guarda-roupa tão inesquecível quanto o são os chapéus nas corridas de Ascot em «My Fair Lady» (George Cukor, 1964) ou os vestidos no baile em «O Leopardo» (Luchino Visconti, 1963).

O confronto dos olhares de Reynolds, Alma e Cyril é único. Quem primeiro baixar os olhos, é fulminado! Nesta guerra dos comportamentos exemplares, da exemplar educação, do mais fino rancor contido, do amor mais aflitivo, ninguém perde. Por isso, também ninguém morre!

E se houver dúvida sobre a importância visual e sonora deste filme que se reveja a cena fulcral da confecção, apresentação e deglutição da omelete de cogumelos.

Apenas fica o espectador mesmo a ganhar com o esplendor da luz nas escadas, com esse amor infinito.

Repito: este é um filme deslumbrante! Viva o cinema digital!

jef, fevereiro 2018


«Linha Fantasma» (Phantom Thread) de Paul Thomas Anderson. Com Daniel Day-Lewis, Lesley Manville, Camilla Rutherford, Vicky Krieps. Fotografia: Paul Thomas Anderson, Música: Jonny Greenwood, Guarda-roupa: Mark Bridges. EUA, 2017, Cores, 130 min.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «O Carteirista» de Robert Bresson, 1959
















Para entender «O Carteirista» devemos esperar pelo olhar. No olhar suspenso está escrito aquilo que não é contado no outro lado do filme.

A nota inicial que fala de um bom homem que é levado pelas vicissitudes da vida à arte do roubo e esta ao encontro com determinada jovem mulher, não é suficiente.

Nem a determinação filosófica de Michel (Martin Lasalle) sobre a superioridade do acto de certos homens: «Temos de admitir que alguns homens capazes, dotados de inteligência, talento e até mesmo génio, e indispensáveis à sociedade, em vez de estagnarem, deveriam em certos casos ser livres de desobedecer à lei».

Nem Dostoievski («Crime e Castigo»), nem Max Stirner («O Único e a Sua Propriedade»). Nem o jogo de gato e de rato que Michel promove com o inspector da polícia (Jean Pelegri).

Nem essa espécie de triângulo amoroso, surdo e compulsivo, existente entre o protagonista e Jacques (Pierre Leymarie) e Jeanne (Monika Green), terminando na cena redentora de um beijo acariciado por entre as grades da prisão. «Ó Jeanne, para chegar a ti que estranho caminho me foi dado percorrer!»

Nem o jogo fulminante das mãos dos ladrões na cena dos roubos na estação de comboios.

Nem a música de Jean-Baptiste Lully a sublinhar as cenas de certa vitória.

Para gostar de «O Carteirista» temos de seguir o tempo do olhar e das mãos e saber que nele ficará para sempre guardado, e talvez inexplicado, o princípio do destino e a vocação para o alterar.

jef, fevereiro 2018
                                                                   
«O Carteirista» (Pickpocket) de Robert Bresson. Com Martin Lasalle, Monika Green, Pierre Leymarie, Jean Pelegri, Kassagi, Pierre Etaix, Mme Scal. Música: Jean-Baptiste Lully. França, 1959, P/B, 75 min.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Sobre o filme «O Verão do Skylab» de Julie Delpy, 2011













Sim. Nutro um amor especial por Julie Delpy. Começou por uma paixão colectiva juntamente com o actor Ethan Hawke, unidos nos filmes de Richard Linklater. «Antes do Amanhecer» (1995), «Depois do Anoitecer» (2004), «Depois da Meia-noite» (2013).

Julie Delpy faz filmes inteligentes, contidos e carregados de uma alegria emocionante, familiar, onde as relações afectivas tomam o lugar principal na cadeia narrativa. A ‘família’ é a própria história. A ironia é uma das suas armas, outra será esse modo humano de dizer que todos querermos ser diferentes apesar de parecermos todos iguais. Ela é meio francesa e meio americana e usa o facto para brincar com o tradicional confronto, sempre com um pé num continente e outro no seguinte. Um pé na realização, outro na representação ou no argumento. Trabalha com amigos e isso nota-se na epiderme das suas comédias. Filma de modo descomprometido, como se estivesse em casa, e ainda consegue colocar os filmes no circuito comercial.

Em «O Verão do Skylab», é anunciada a possibilidade de queda de um pedaço do famoso satélite em solo francês, mais concretamente na Bretanha onde a família da avó Amandine está reunida para comemorar o seu aniversário. Julho de 1979. Amandine tem seis filhos, respectivos genros ou noras, uma carrada de netos. Vive ainda com ela um irmão que vive num mundo à parte, o Tio Hubert (Albert Delpy, pai da realizadora e cúmplice frequente nas suas aventuras).

O filho Jacquot é casado com Anna. São pais de Albertine que tem 10 anos e ficará com a avó o resto das férias. Jacquot e Anna chegam de Paris, são intelectuais e de esquerda, trazem o Maio de 68 na ponta da língua. Mas são os únicos. Por isso, a aniversariante roga para que não se discuta política à mesa. Nem a liberdade, nem a emancipação da mulher, nem a Indochina, nem a Argélia. Mas Jacquot, tal como a realizadora, gosta de discutir e contar histórias. (A história da sereia e do tubarão quando se dirigem para a praia de Renault 4, é única!)

«O Verão do Skylab» é um filme muito simples, com um monte de personagens que, afinal, se reúnem num apenas. A família. Ali estão todos os assuntos que lhe dizem respeito, num certo país, numa certa época, e de modo encantadoramente inocente, trocista, carinhoso… 

É bom rever «O Verão do Skylab» quando o frio ainda nos lembra o solstício de Inverno.

jef, fevereiro 2018
                                                                  
«O Verão do Skylab» (Le Skylab) de Julie Delpy. Com Julie Delpy (Anna), Noémie Lvovsky (Tia Monique), Bernadette Lafont, (Avó Amandine), Emmanuelle Riva (Avó Prévost – Mémé), Eric Elmosnino (Jean), Marc Ruchmann (Tio Loulou), Lou Alvarez (Albertine), Vincent Lacoste (Christian), Aure Atika (Tia Linette), Sophie Quinton (Tia Clémentine), Valérie Bonneton (Tia Micheline), Denis Ménochet (Tio Roger), Jean-Louis Coulloch (Tio Fredo), Michelle Goddet (Tia Suzette), Albert Delpy (Tio Hubert), Candide Sanchez (Tio Gustavo), Lily Savey (Sissi), Chloé Antoni (Valérie), Maxime Julliand (Pierre), Félicien Moquet (Jean-Luc),
Antoine Yvard (Philippe), Anne-Charlotte Moquet (Catherine), Angelo Souny (Henri), Léo Michel-Freundlich (Robert), Noah Huntlez (Jonathan), Karin Viard (Albertine adulta), Lee Delong (Jessica). França, 2011, Cores, 109 min.