quinta-feira, 30 de abril de 2015

Sobre o filme «A Quietude da Água» de Naomi Kawase (2014)
















Mar chão ou a oportunidade perdida.

Este é um filme que tinha tudo para dar certo. 
(Um filme que eu gostava que desse certo.)
As longas cenas sobre a natureza das ilhas japonesas Amami. Os recifes de coral e os peixes, os mangais e os caranguejos, os trópicos, sobretudo a intranquilidade do mar em torno dos tufões ou a bonança das nuvens num céu amplo. O sacrifício sagrado do anho e a dança da morte. As belíssimas cenas entre Kioko (Jun Yoshinaga) e os seus pais. A questão (eterna) do medo do mar significar o medo da morte (ou o medo da vida).
Porém, Naomi Kawase encanta-se pelo ímpeto da natureza sem tocar no travão de mão, na tesoura, e a história afunda-se, alonga-se quase em prece até um final, cujas pontas devem, a todo o custo, conjugar-se para serem felizes. Perde-se o equilíbrio cinematográfico entre o humano e o natural. Retira-se (um pouco) a emoção ao espectador.

E se Naomi Kawase passasse pelo Nimas, em Lisboa, e estudasse um dos mestres da acção rápida, da emoção lenta e da montagem, que dá pelo nome de Roberto Rossellini?
(Sim, quero ser parcial... Rossellini é um génio!)


jef, abril 2015

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Sobre o filme «Phoenix» de Christian Petzold (2014)














O que terá o século XX que não nos deixa em paz?

«Speak Low», sussura Kurt Weill. É o mote (ou o anti-mote) tocado, dito e cantado nas cenas iniciais do filme. Também é a canção que lhe coloca o ponto final. Ouve-se «Night and Day» de Cole Porter e, ainda, a luz da cidade e meia que é Berlim. Mas a luz é coada, destruída, derramada sobre a anti-cidade, fotografada segundo Hans Fromm. Berlim está repartida por sectores e permanece em guerra depois da guerra. Regressam os poucos que sobreviveram à chacina dos campos de concentração, muitos desfigurados por tiros pouco certeiros. Também as heranças desses mortos-vivos. Mais a cobardia e a traição, palavras que suportam emocionalmente todo o filme. Um filme realizado, e com toda a justiça, em torno da personagem Nelly Lenz e da fortíssima personalidade da actriz Nina Hoss.
Afinal quem canta «Speak Low»?
Que século XX é este que se torna intransponível?
Por que lançará ele o inesgotável sobre a Arte?
Poderá a Arte dissolver o insolúvel?

jef, abril 2015

«Phoenix» de Christian Petzold (2014). Com Nina Hoss, Ronald Zehrfeld, Nina Kunzendorf, Michael Maertens, Imogen Kogge, Kirsten Block.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Sobre o filme «Índia» (1957-1959) de Roberto Rossellini


 

Que realidade é esta?

Intriga-me o facto de os espectadores entrarem numa sala de cinema e não desligarem os telemóveis. Quando a sala se enche e não são apenas dois ou três enormes écrans luminosos a saltar aos olhos da escuridão ou toques harmoniosos a roubar o silêncio, quando são mesmo conversas que usurpam a fantasia de uma obra de arte, essa intriga torna-se descomunal. Então quando a situação se desenrola à frente de «Índia» de Roberto Rossellini, a minha estranheza passa a questionar o desassombro e até o escândalo.

Os espectadores, hoje, não conseguem desligar-se da realidade virtual que têm dentro de um telemóvel para se entregarem, diria para se devotarem, à realidade real de um filme que se projecta, ali e nesse instante. Apenas 95 minutos de encantada realidade daquela Índia. Entenderão o génio dos planos longos sobre animais, pessoas, rios e monumentos? O Tempo reinventado possibilitando a reflexão lenta sobre um país múltiplo, uma morte no calor, um voo de abutre? Perceberão a câmara asinha e em constante movimento que nos leva sempre atrás de uma história «falsa»? Terão Tempo, esses espectadores virtuais e apressados, para contemplarem a encenação magnífica da realidade que toma de assalto o filme do princípio ao fim?

Como chegar à verdade senão à boleia da ficção?

Contudo, e apesar da sala de cinema Nimas vibrar de excitação com os seus telemóveis, dentro e fora de bolsos colaboradores, eu aprendi que este filme ainda questiona tudo o que se pensa dentro e fora do cinema: jornalismo, documentário e reportagem, ficção e romance, ternura, paixão, tragédia e comédia. A beleza e a utilidade como princípio sagrado de um povo.

jef, abril 2015

«Índia / India, Matri Bhumi» (1957-1959) de Roberto Rossellini. Argumento e diálogos: Roberto Rossellini; fotografia: Aldo Tonti

domingo, 19 de abril de 2015

Sobre o filme «Alemanha Ano Zero» (1947) de Roberto Rossellini


 
 
 
 
 
 
 
 
As ruínas do que existe.

Quantas faces tem o prisma da Segunda Grande Guerra? (Quantas as faces de todas as guerras?) É a pergunta que Rossellini faz a cada filme construído sobre uma realidade, uma língua, um povo diversos.

«Alemanha Ano Zero» é um filme de uma coragem avassaladora, de um dramatismo total, de uma redenção descoberta.

Edmund Köhler tem 12 anos e vive em Berlim, 1945, e não tem possibilidade de julgar. Apenas age e corre. Nós seguimo-lo, não o julgamos, não temos essa possibilidade. Edmund será sempre escorraçado pelas ruínas da cidade. Mesmo que a sua luz seja bela, continuarão a ser as ruínas do que existe.

Não o esqueceremos!

jef, abril 2015

«Alemanha Ano Zero / Germania Anno Zero / Deutschland Jahr Null» (1947) de Roberto Rossellini. Com Edmund Moeschke, Ernst Pittschau, Ingetraud Hintze, Franz Krüger, Erich Gühne

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Sobre o filme «Viagem em Itália» (1954) de Roberto Rossellini.











O milagre da ionização do enxofre.
Sem traçar paralelos ou cruzar linhas secantes com a Nouvelle Vague, Jean Seberg ou Jean-Paul Belmondo, esta é das mais puras histórias de amor alguma vez idealizada. Exactamente por nada contar. E tudo dizer só pelo desconforto de uma terra estranha e quente que devia acarinhar mas só agride o passado que foi escolhido e, agora, talvez seja rejeitado. Uma separação de Tempos que obriga a monossílabos ácidos, a olhares desviados, à busca de paisagens que se revelam fora da escala humana. O desconforto desse passado reflectido em miniatura na História magnífica de Nápoles e na sombra de um Vesúvio que exorbita os iões de enxofre. A fleuma que esbarra na agreste amabilidade de um povo. Um povo que acabará por dissecar e expor aos nossos olhos o poder clássico do romance. 
Um modo cinematográfico a que Rossellini bem poderia ter chamado o milagre da ionização do amor.

jef, abril 2015

«Viagem em Itália / Viaggio in Italia / Journey to Italy» (1954) de Roberto Rossellini. Com Ingrid Bergman, George Sanders, Maria Mauban.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Sobre o filme «Paisà - Libertação» (1946) de Roberto Rossellini


 

 

 
 
 
 
 
 
Rossellini equaciona o olhar do espectador.

Os parentes cairiam na lama se este filme fosse considerado como seis modos diversos de olhar a «aventura»? Claro que sim! É difícil ver «esta» Segunda Grande Guerra com o espírito mais lúdico de quem vai divertir-se para o cinema.

«Paisà» é um filme especial no pressuposto político de neutralizar o hediondo espírito belicista usando o confronto de ideias, de culturas e de estéticas. Facto muito caro à dialéctica e à cultura.

Mas como consegue o realizador a adesão a essa tese por parte do espectador num filme que é de ficção e que, ostensivamente, se desvia da realidade para melhor dela se aproximar? Exactamente pela gestão rigorosa da ordem de certo «cinema de aventuras», um dos mais velhos modos de contar uma história. O caminho faz-se da Sicília até à foz do rio Pó, cruzando os melodramas e a acção de rua, a sucessão de planos e contra-planos de fugas pelos telhados e perseguições em ruínas, entre correrias, escadas e becos, esquinas e tiroteios, entre planos captados no movimento real urbano e no teatro de marionetas, claro que o teatro não poderia faltar!, onde a comédia e o riso servem apenas para aliviar a dor insuportável e aprofundar a tragédia que voltará mais à frente … É esta também a ordem das odisseias humanas e literárias que, neste caso, desagua num momento único: a mais extraordinária, bela e sinistra mise-en-scène no rio Pó: barcos, homens, coragem, desespero e morte. Tudo se move como num baile negro. Nesse momento apocalíptico, alguém refere antes de cumprir o sacrifício humano: «Para construir a ordem nova é preciso destruir todos os sinais da anterior».

Estará a «ordem» da aventura de Rossellini a enviar algum sinal de alerta aos olhos do espectador na sala do cinema Nimas, em Lisboa, exactamente no dia de hoje?

jef, abril 2015

«Paisà - Libertação» (1946) de Roberto Rossellini. Com Carmela Sazio, Robert van Loon, Dots M. Jonhson, Gar Moore, William Tubbs, Harriet White, Dale Edmonds.

domingo, 12 de abril de 2015

Sobre o filme «Stromboli» (1949-1950) de Roberto Rossellini




 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Que pretenderá Rossellini do espectador?
 
Sabendo que é um dos realizadores mais declaradamente políticos da história do cinema, quererá ele que nós tomemos partido pela lituana sem passado nem futuro, expatriada, refugiada de guerra, Karin Bjorsen (Ingrid Bergman), contra o «horrível povo» que habita a inabitável ilha de Stromboli? Ou deseja que aplaudamos o sacrifício iniciático e fundamental de um povo contra a colaboracionista, oportunista e leviana Karin, que chega àquela ilha, àquele povo, porque não lhe permitem viajar para a Argentina?
Afinal, que raio de neo-realismo é este?
Afinal, onde ficará a moral do espectador?
Talvez na beleza do rosto adormecido de Ingrid Bergman sobre as cinzas negras do vulcão, aguardando a paz rogada. Se Rossellini deseja que nos apaixonemos pela actriz, isso está garantido. Se deseja que cumpramos esse desígnio existencialista de sobrevivência na demanda de Força, de Coragem e de Esperança, isso só cada um dos espectadores poderá dizer, 65 anos após a realização do filme.
Eu tentarei o desafio.
Talvez seja mesmo essa a verdadeira «Política do Realizador» contra a «Sociedade do Espectáculo».

 jef, abril 2015

«Stromboli» (1949-1950) de Roberto Rossellini. Com Ingrid Bergman, Mario Vitali, Renzo Cesana, Mario Sponza, Roberto Onorati e o povo da ilha de Stromboli.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

A realidade existe. Parte IV, a final [a velocidade das estrelas]













Alguém aproxima-se e pergunta: «Quem és tu?»
Respondo: «Sou eu.»

É percorrida a imensa distância que, no cosmos, faz parecerem vivas as estrelas que já morreram, pois a luz, velocíssima, anda a penar por espaços inauditos, dirigindo-se, no fim sem fim, para dentro da nossa retina, do nosso cérebro, da nossa incompreensão. Afinal, que distância é essa que acertou mesmo no centro de nós? De que é feita a aproximação, qual a aceleração de um encontro?

Pergunto «Quem és tu?»
Alguém responde «Sou eu.»

A distância percorrida pela identidade de quem responde com semelhantes palavras é a identidade difundida. A certeza na palavra falada, apesar de ser firmada em contrato íntimo, biunívoco. Palavra que é, ainda, o contrato social. Duradouro, por definição de «Contrato». A semelhança define a realidade de quem agora responde e de quem antes perguntou. A realidade do ser «Eu». A realidade da aproximação. Qual a velocidade de um encontro?

«Quem sou eu?»
«És tu!»

A realidade existe. A realidade que anula o equívoco em que a retina viajou, julgando a luz presente representar a vida dos astros pretéritos. As palavras desenganam a retina. As palavras no presente, a luz diversa perdida da origem.

«Quem sou eu?»
«Deixa-me responder.»

Porém, a distância percorrida até um tal encontro, fortuito mas pouco fugaz, é real. Ulisses responde tal como o Romeiro, «Ninguém!», a vida safa-se, a verdade também. E se na distância captada pela retina uns crêem, na coincidente verdade dos «Eu» outros iludem-se. Mas «Ninguém» se atreve a negar a realidade dos encontros, a inegável velocidade das estrelas.

jef, abril 2015

[nota: a imagem vem do tempo sem tempo de Andrei Tarkovsky]

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Sobre o filme «Europa 51» (1952) de Roberto Rossellini











Consciência de classe ou esperança de classe.

Este filme é uma sucessão incoerente de modos de olhar. Começa por uma anedota: um casal discute entre «consciência de classe» e «dores de pernas» quando estão perante uma greve de transportes urbanos. Logo depois entramos numa sequência de cenas em ritmo acelerado na casa de uma família da alta burguesia. Dá-se a tragédia e a tomada circunstancial de consciência do mundo, da miséria, da luta de classes, do trabalho, do delito, dos afectos, da perturbação emocional. Irene e Andrea discutem entre consciência e esperança. O ritmo abranda, os rostos surgem encantados. Ingrid Bergman versus Giulietta Masina. O neo-realismo passa testemunho ao drama existencial, à intriga psicanalítica. Roberto Rossellini versus Manoel de Oliveira, Frank Capra ou Alfred Hitchcock. A causa religiosa versus a causa judicial. A causa política versus a bondade pura e intrínseca, logo a causa mais íntima do ser humano. Ingrid Bergman invade a alma do écran. Há quem a chame comunista, há quem a trate como santa […]

[…] Talvez o dia-a-dia seja mesmo uma série incoerente de paradoxos entre o trabalho, o amor, a consciência e o deslumbramento.

jef, abril 2015

«Europa 51» (1952) de Roberto Rossellini. Com Ingrid Bergman, Alexander Knox, Ettore Giannini, Giulietta Masina

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Gonçalo M. Tavares escreve «Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai»
















Resistir e continuar.

Qual a diferença entre as duas palavras quando o centro de gravidade do século XX está a ser ponderado? Hanna e Marius situam-se no centro dessa Europa. Por hipótese, Hanna quer encontrar o pai, por hipótese, Marius deseja fugir. Logo, nem um nem o outro se encontram aí. Poderá ser este o mote com que o escritor atrai o leitor, na curiosidade da viagem de Dom Quixote e no incómodo da evasão musical de Terezin. O espectro de uma guerra eternamente presente; o quarto chamado Auschwitz num hotel-labirinto; o rosto enorme de Goering hasteado como bandeira; um artista, Agam Josh, que grava declarações públicas em letra invisível. Berlim. Tudo está ou parece estar. «Você, se quer um conselho, tenha pelo menos uma parte do corpo um pouco afastada do mundo, senão não sobreviverá.» diz o artista de olho vermelho, infinitamente pequeno, lá pela página 130. A memória, essa, serve para refazer o passado, mas serve também, talvez principalmente, para aproximar o que está geograficamente ausente.

Este livro não é um Manual de Fuga. É um compêndio com a sequência infinita de números pares a lembrar que para resistir é mesmo necessário continuar. Fugir, não! Antes sair disto calmamente, com brio e entendimento. Para termos consciência de que o que se passou em certo século não deverá ser refeito e que a memória dos factos, das ideias e das emoções é, para tal, fundamental. Mas a vertigem de uma escada íngreme, escura e sem corrimão pode atrair o olhar lá para baixo. E a luz forte ser demente.

O caderno 34 do grande pensador talvez seja o livro politicamente mais programático, com uma intenção mais sublinhada, com um cenário mais derradeiro.

Também por essa razão, um livro a ser lido hoje. Já!

jef, abril 2015
«Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai» de Gonçalo M. Tavares. Porto Editora, 2014.