quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Sobre o filme «A Conspiração do Cairo» de Tarik Saleh, 2022























Existe neste thriller de suspense, tão bem urdido, um persistente nódulo de incómodo e inquietação, de interrogação e clausura que nos faz agradecer eternamente às nossas presentes democracia (laica) e liberdade (religiosa).

Tudo se passa através do olhar e do sofrimento de um paupérrimo e inteligente filho de pescador egípcio que se vê seleccionado para estudar na maior mesquita universitária do mundo, Al-Azhar, no Cairo. O olhar de Adam (Tawfeek Barhom) é construído com base do medo e na tentativa de sobrevivência num universo onde o poder tenta impor a nova chefia para a instituição de acordo com o cânone político e, no interior daquela espécie de solitária, as diversas facções islâmicas, entre as quais as mais radicais, fazem valer as suas perpectivas para a tomada do poder. No fundo do olhar atormentado de Adam, feito espião triplo entre tribos, reside a incompreensão mas também emerge a vontade de ditar a sua própria moral – a moral do filme. Adam vê-se traído, é em simultâneo bufo e traidor, e o poder político apropria-se dele para levar a água ao seu moinho.

O actor Tawfeek Barhom é totalmente convincente naquele seu silencioso desespero, onde o cenário é o labirinto de uma solidão onde não existe hipótese de fuga.

Contudo, a tal moral assumida, reverente, quase inumana, dá um tom beatífico ao filme que desmerece, por fim, o percurso justiceiro de herói solitário conquistado por Adam.


jef, agosto 2023

«A Conspiração do Cairo» (Cairo Conspiracy / Walad min al-Janna) de Tarik Saleh. Com Tawfeek Barhom, Fares Fares, Mehdi Dehbi, Mohammad Bakri, Makram Khoury, Sherwan Haji, Yunus Albayrak, Mouloud Ayad, Youssef Salama Zeki, Ayman Fathy, Hassan El Sayed. Argumento: Tarik Saleh. Produção: Ali Akdeniz, Fredrik Zander. Fotografia: Pierre Aïm. Música: Krister Linder. Suécia, Dinamarca, França, Marrocos, 2022, Cores, 126 min.

 

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Sobre o filme «Falcon Lake» de Charlotte Le Bon, 2022
























Seria um belíssimo filme sobre um dos principais temas da ficção universal – o fim da inocência infantil e o despertar das hormonas com a entrada, mais ou menos forçada, numa era que entrega, aos solavancos, o poder de um corpo aos novíssimos sentimentos. Actualmente, o velho tema iniciático do fim da infância e da chegada da adolescência transformadora tornou-se recorrente. («Libertad», Clara Roquet 2021; «Aftersun», Charlotte Wells 2022; «Close», Lukas Dhont 2022; «20 000 Espécies de Abelhas», Estibaliz Urresola Solaguren 2023).

A realizadora canadiana teria tudo ali à mão para fazer um filme extraordinário: o cenário privilegiado de uma cabana à beira de um lago no Quebeque, duas famílias amigas a partilharem amáveis refeições e brincadeiras de férias, dois adolescentes que se encontram e divertem através de jogos de susto em torno do fantasma de um jovem afogado que ensombra o lago. Filmagens num quase doméstico Super-8, belo guarda-roupa e espaços pequenos, fechados, desarrumados, onde a troca de olhares e de gestos se torna fulcral para melhor entregar a cena aos dois belíssimos actores: Joseph Engel, o medroso e quase infantil Bastien, e Sara Montpetit, mais velha e desenvolta adolescente Chloé que parece ainda ter saudades de não ter medo do futuro.

Tudo está certo, tudo parece correr bem ao contarem-nos uma história comum através dos pequenos gestos e acontecimentos sem importância que se passam durante umas férias simples. O espectador adere, envolve-se, até que o filme, como alguns outros recentes, começa a assumir contornos de querer tudo explicar e de tudo tornar explícito, adensando as nuvens, a música, o medo. Decepcionante, é também mais um filme sobre a adolescência que para se achar definitivo vem colocar de modo abrupto o tom trágico, apesar de inconclusivo, no final. Que bom filme seria se tivesse menos 15 minutos!

E que saudades nós temos das férias na praia de Éric Rohmer.


jef, agosto 2023

«Falcon Lake» de Charlotte Le Bon. Com Joseph Engel, Sara Montpetit, Monia Chokri, Arthur Igual, Karine Gonthier-Hyndman, Anthony Therrien, Pierre-Luc Lafontaine, Thomas Laperriere, Lévi Doré, Jeff Roop Jacob Whiteduck-Lavoie, Éléonore Loiselle, Samir Firouz. Argumento: Charlotte Le Bon. Produção: Sylvain Corbeil, Julien Deris, David Gauquié. Fotografia: Kristof Brandl. Música: Shida Shahabi. Guarda-roupa: Gabrielle Lauzier. França / Canadá, 2022, Cores, 100 min.

         

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Sobre o filme «Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush» de Andreas Dresen, 2022
















Mais do que qualquer outro, este filme levaria a epígrafe: “baseado em factos reais” ou seria adjectivado como “documentário” ou “reportagem”.

Julguei que iria estar sozinho na sala de cinema. Mas não. Para meu espanto, até estava bem composta e pronta a assistir a um filme que, pensei, seria um telefilme com interessa a ser visto num domingo à tarde, na televisão.

Conta a longuíssima e desesperada saga de Rabiye Kurnaz (Meltem Kaptan) para provar a inocência do seu filho Murat (Abdullah Emre Öztürk) que é encarcerado em Guantánamo injustamente acusado de proximidade aos talibãs quando do 11 de setembro.

Contudo, o filme nada tem de documentário ou reportagem apesar de relatar dia a dia toda a luta travada por Rabiye, tendo sempre a seu lado o paciente apoio do advogado em causas humanitárias Bernhard Docke (Alexander Scheer).

Até seria menos dramático e menos hilariante se não fosse daquelas rigorosas realizações alemãs (Andreas Dresen) que, sob a justa denúncia de um caso atroz de infâmia política, não expusesse o interessantíssimo embate de modos de ser da exuberante, divertida e extremosa mãe e do seu amigo advogado, tão diligente quanto circunspecto. Meltem Kaptan e Alexander Scheer: dois grandes actores.

Um filme enervante sobre uma das muitíssimas injustiças causadas pelo atraso contemporâneo da nossa boa civilização ocidental.


jef, janeiro 2023

«Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush» de Andreas Dresen. Com Meltem Kaptan, Alexander Scheer, Charly Hübner, Nazmi Kirik, Sevda Polat, Abdullah Emre Öztürk, Safak Sengül, Jeanette Spassova, Abak Safaei-Rad, Alexander Hörbe. Argumento: Laila Stieler. Produtor: Andreas Dresen, Christoph Friedel. Fotografia: Andreas Höfer. Música: Cenk Erdogan e Johannes Repka. Alemanha / França, 2022, Cores, 119 min.

 

domingo, 20 de agosto de 2023

Sobre o livro «Tu e Eu» de André Ruivo, The Inspector Cheese Adventures 2023



 




































De que são feitas as relações que estabelecemos um com o outro (ou uns com os outros)? Qual a matéria biológica, social, emocional, química ou física em que assenta a escolha para esse relacionamento, enfim, quais as causas e as suas consequências? Quais os actos pelos quais podemos assisti-las, admiti-las, expressá-las?

Difícil definir. Provavelmente, até esgotante e inútil.

Contudo, o sintagma «Tu e Eu» representa, em animais sociais e gregários como nós, quase tudo. A interpretação da frase de três palavras curtas é das mais interessantes e intricadas para a humanidade.

Assim também é o novo tomo da biblioteca do artista André Ruivo. Sem mais palavras que o Tu e Eu, surgem catorze definições gráficas bastante elucidativas sobre a complexidade do tema. O volume em forte cartolina (17,5 x 24 cm) aprofunda e acelera um dos temas que o artista tem vindo a explorar nos últimos anos. Ver, como exemplo, «Abraços» (2019) «Vírus» (2021) ou «Hot» (2022).

Existe um lado deliciosamente contraditório, cada vez mais orgânico, na digitalização do grafismo de André Ruivo. Os traços são definidos e irregulares, os limites quase errados; as cores vão ficando carregadas, saturadas, primárias; cada história narrada não precisa de contar com as palavras, elas sobejariam, tão terno é cada um dos catorze contos plásticos. Como num livro infantil para crianças amáveis e inteligentes.

O cabal esclarecimento diegético de uma frase através do primor artístico de André Ruivo.


jef, agosto 2023

Sobre o livro «Passagem pelo Vazio e Outros Contos» de Rui Cardoso Martins, Filigrana 2022



 







Rui Cardoso Martins é um escritor que domina a corrente da escrita ou, melhor, tem a capacidade plástica de adaptar o modo de escrita a uma ideia que lhe terá surgido das células mais fantasiosas e dramáticas da realidade. Estes 11 contos, publicados entre 2006 e 2018 em variadas publicações de diversos formatos, demostram o traço de romantismo emocional do autor aliado à irreprimível vontade de anunciar e combater a injustiça de um mundo que tem mais vértices e espinhos do que o esférico contorno do planeta Terra.

No prefácio, o autor cita o grande contista e desajustado social Julio Cortázar que afirmara numa universidade dos Estados Unidos que o conto contém na sua génese a perfeição da esfera. O conto, acrescento eu, é o meio difícil de enlevar o leitor numa grande história sabendo-se, à partida, que o epílogo já deverá estar contido nas linhas iniciais. Assim, de repente, para essa espécie de volúpia lembro-me de Guy de Maupassant, Anton Tchekov ou Mário de Carvalho.

Nestes textos, consegue aliar a tragédia à comicidade sem beliscar o modo atento de acarinhar as personagens com uma descrição cirúrgica, com um fatal laivo narrativo. Tudo num relance, tudo num apontamento sintomático, fazendo com que as figuras logo se tornem posse do leitor. Em Rui Cardoso Martins, esse rigor sintético virá das viagens difíceis sob o olhar do jornalista, das magníficas crónicas de tribunal, dos guiões para cinema que exigirão mais corte que costura, do diálogo pragmático dos textos para teatro. Talvez de tudo e do engenho de fixar a realidade na sequência de episódios, das causas e desfechos, com que de facto ela se estrutura. No final, em «Ladrões de Cobre», a arte de contar as histórias unidas de Orlando, do bar, de Mário, o justiceiro solitário, e do Sr. Fernando e do João, na brevidade da sua passagem pela força da narração curta.

Rui Cardoso Martins é um verdadeiro contador de histórias.


jef, agosto 2023

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Sobre o filme «Primeiro Passa no Exame» de Maurice Pialat, 1978
























Este filme é de uma crueza (não crueldade) de muitos pontos de vista dramática. A sua crueza aproxima-nos sem paliativos da realidade, contudo essa aproximação dramática a cada uma das personagens dá-lhes a ternura que só o teatro permite conceder. A vida não lhes será favorável. O fim da adolescência também não.

Um grupo de estudantes, amigos, aproximam-se de um exame que os poderá levar a uma improvável universidade. Vivem em grupo, por Lens no Norte de França, e, terminadas as aulas, vagueiam entre o enfado de uma vida com os pais de que anseiam fugir e os amores prematuros e fugazes cujo comprometimento não lhes dará um futuro muito radioso.

A câmara de Pialat e a fotografia de Pierre-William Glenn vivem ali perto, no meio deles, também íntimas, pelos cafés atafulhados e os quartos cheios de fumo e suor. Os pais tentam manter uma estratégia silenciosa, falsamente apaziguadora. O desejo é escaparem ao seu controlo mas não possuem armas estratégicas para tal. A tensão é permanente, o tédio também.

A meio, surgiu-me a ideia de estar a ver um filme de Fassbinder, pela época e pelo modo áspero de tratar com humanidade e carinho aqueles seres, tão reais quanto dramáticos, repito. Só que a régua e o esquadro de Fassbinder, aqui estão transformados no rodar permanente de um compasso ébrio, mas igualmente servindo uma narrativa rigorosíssima.

Um filme a não perder! 


jef, agosto 2023

«Primeiro Passa no Exame» (Passe ton bac d'abord...) de Maurice Pialat. Com Sabine Haudepin, Philippe Marlaud, Annick Alane, Patrick Lepcynski, Bernard Tronczak, Michel Caron, Christian Bouillette, Jean-François Adam, Agnès Makowiak, Charline Bourré, Patrick Playez, Muriel Lacroix, Frédérique Cerbonnet, Fabienne Neuville, Aline Fayard, Valérie Chassigneux, Joséphine Lepczynski, François Lepczynski, Stanislawa Tronczyk, Georges Vimard, Patrice Pisula, Pierre Barski, Karine Souppart. Argumento: Maurice Pialat e Arlette Langmann. Produção: Maurice Pialat. Fotografia: Pierre-William Glenn. Música: Voyage. França / Canadá, 1978, Cores, 86 min.

 

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Sobre o livro «Bach» de Pedro Eiras. A Phala/50. Assírio & Alvim, 2015.



 















Este é um livro espantoso, tão simples e ao mesmo tão abstracto, sobre a música infinita de Johann Sebastian Bach.

O que o autor faz é uma espécie de declaração de amor, ao mesmo tempo ternurenta e poética, sobre a consequência do esplendor das partituras de um dos artífices mais universais da cultura humana.

É uma espécie de Via Crucis amorosa, também ela dividida por 14 estações, onde, em notas de pé de página, vamos escutando uma espécie de banda sonora com que podemos acompanhar cada uma daquelas estações. Para cada passo uma proposta, um BWV, costurando uma ficção ou um projecto de ficção.

Anna Magdalena Bach (1750). Esther Meynell (1925). Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (1968). Gustav Leonhardt (1973). Glenn Gould (1981). John Cage (1961). Gottfried Wilhelm Leibniz (1714). Maria Gabriela Llansol (1984). Martin Luther (1528). Jeshua Ben-Josef (S/D). Etty Hillesum (1943). «Ich Habe Genug» (sem texto). Albert Schweitzer (1959). Terminando com «2002» o mais comovente hino à música e ao futuro: pelo corredor fora, pela noite fora, um pai embala a filha bebé no escuro, sussurrando-lhe uma das mais belas canções-árias da Paixão de São Mateus: “Mache dich, mein Herze, rein” mesmo sem saber lá bem o que as palavras dizem. O pai vai de um lado para o outro, pensando no trabalho que chegará no dia seguinte, ouvindo os carros lá fora e recordando que dois aviões um ano antes chocavam contra duas torres desabando sobre três mil pessoas.

Um livro que, nas efémeras entrelinhas da música que se ouvem e depois mergulham no silêncio, conta a possível história íntima do nosso século XX.

No fim, volto atrás, e procuro insistentemente o capítulo dedicado à minha ária da Paixão de São Mateus: “Erbarme dich, Mein Gott, um meiner Zähren willen!”. Porém, não o encontro. A descrição poética, quase humildade, de Pedro Eiras foi obrigada a muito escolher perante tal universo musical. Eu desculpo-o e crio um 15º capítulo para essa canção que dedico a Jordi Savall e a Ton Koopman que uma noite ouvi em concerto tocando as sonatas de J.S. Bach para cravo e viola da gamba.

Um livro quase silencioso e inesquecível.

 

jef, agosto 2023

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Sobre o filme «Trenque Lauquen: Parte I e Parte II» de Laura Citarella, 2023



 



















Neste filme de quatro horas e 20 minutos, dividido em duas partes e apresentado por capítulos, acompanhamos o caminho de Laura (a co-argumentista e homónima Laura Paredes) que se desloca à “desértica” cidade de Trenque Lauquen na Pampa argentina para realizar um levantamento e estudo botânicos a integrar uma candidatura à universidade. A ausência repentina e definitiva da protagonista constrói a história da Parte I que começa com o capítulo – “A Aventura”, parafraseando Antonioni e do qual absorve com distinção a atmosfera pausada, densa e de crescente inquietação, suspeição ou suspense que tal desaparecimento sem alvissaras provoca no círculo de amigos e conhecidos. Na Parte II Laura reaparece para contar (e baralhar com inúmeros outros episódios folhetinescos) aquele mistério, mais verosímil do que plausível.

O filme tem o poder de encantar vindo desse saber contar histórias sem enfadar e entusiasmando o espectador com a fotogenia dos protagonistas e essa lentidão de câmara sobre as faces e sobre a paisagem aumentando a fruição do olhar e a ânsia de desvendar a intriga. Hitchcock é mestre e que bem ensina.

Mas existe também esse lado louco ou mirabolante que nos deixa em êxtase cinematográfico perante o belo e o inacreditável. Lembrei-me de «Mulholland Drive» de David Lynch (2001).

Ou, por outro lado, o deixar ficar por explicar cruzando possíveis e sobreponíveis chaves sobre o mistério como o fez Monte Hellman em «Road to Nowhere – Sem Destino» (2010).

Um filme que nos deixa presos ao ecrã durante a tarde inteira como acontecia quando íamos ao cinema em miúdos ver um filme de aventuras.


jef, agosto 2023

«Trenque Lauquen: Parte I e Parte II» de Laura Citarella. Com Laura Paredes, Ezequiel Pierri, Rafael Spregelburd, Cecilia Rainero, Juliana Muras, Elisa Carricajo, Verónica Llinás. Argumento: Laura Paredes e Laura Citarella. Produção: El Pampero Cine. Fotografia: Agustin Mendilaharzu, Inés Duacastella e Yarará Rodríguez. Música: Gabriel Chwojnik. Argentina / Alemanha, 2022, Cores, 260 min.