segunda-feira, 28 de junho de 2021

Sobre o livro «O Caminho da Serpente» de Torgny Lindgren (1982), Quetzal, Colecção Graffiti, 1990. Tradução de Maria Carlos Loureiro e Marie-Louise Petersson.











Segunda metade do século XIX. Na Suécia, no vale de Vindelälven, a povoação de Kullmyrliden sofre um extraordinário deslizamento de terras. Com ele desaparece a pequena família de Johan Johansson mas também o seu algoz, o soberbo, déspota e violador comerciante Karl Orsa, filho do burguês especulador Ol Karlsa, um certo camponês que se tornara almocreve e acabou por arrebanhar as terras ao avô de Johan.

Tudo segundo a boa palavra de Deus.

Johan agora está à beira do precipício que Deus lhe criou a seus pés. E pergunta-lhe, ou melhor, dialoga com ele. Johan, que conhece toda a história dos inocentes e usurpados, vai-lha contar.

Deus permanecerá em silêncio.

É assim a história que o leitor seguirá com a avidez com que escutaria uma parábola bíblica sobre a ofensa aos oprimidos. Ouvindo o órgão tocado pela mãe de Johan e o violino tocado pela irmã Eva.

Deus permanecerá em silêncio.

“Desconhecido é o caminho da serpente sobre a pedra. Incompreensível o do homem até à mulher.” Conta, ainda, debruçado sobre o grande poço negro.

Torgny Lindgren cria um fabuloso (de fábula, mesmo!) hino neo-realista, muito puro, muito simples, muito belo, sobre o sofrimento dos povos do Norte e a sua resistência. Imaginativos povos nascidos da lonjura, da pobreza e da neve.


jef, junho 2021

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Sobre o filme «O Milagre de Milão» de Vittorio De Sica, 1951


















Não sei bem quais os limites do realismo ou do neo-realismo. Bem vistas as coisas, não saberei mesmo o que são o realismo e o neo-realismo. Apenas sei que a minha mãe dizia que «Ladrões de Bicicletas» (1948), do qual era devota, era um dos marcos do neo-realismo.

O grande crítico francês André Bazin, no seu artigo de 1952, diz-se paralisado não sabendo como apresentar o maior realizador do cinema italiano. Ele próprio diz-se devoto de «O Milagre de Milão».

Por outro lado, e para justificar todo o ciclo de extraordinária fantasia do filme, o próprio realizador considera-se devedor de Charlie Chaplin e René Clair, mestres da fantasia realista.

E eu que, muito modestamente, trago no coração o mundo realisticamente onírico de «Mary Poppins» (Robert Stevenson, 1964), «O Grande Peixe» (Tim Burton, 2003) ou «O Sentido da Vida» (Monty Phyton, 1983), acho que saí também de «O Milagre de Milão» com essa sensação de liberdade e alegria absolutas. Saí mais leve, de sorriso franco.

Como é possível fazer-se um filme assim. Sem baias nem peias, elevando a bondade a um patamar no qual o ser ingénuo e o ser consciente associam-se numa espécie de paradigma político. E quantos políticos não falarão em milagre quando teorizam a utópica melhoria de uma sociedade.

Afinal, Totò, uma criança que nasceu das couves e teve por mãe uma avó maravilhosa que regressa dos céus para lhe trazer a pomba dos milagres, irá ajudar a construir num baldio a cidade dos pobres que tem por nome das ruas a tabuada, que decoram as casas com lixo reciclado, que anseiam por ter casacos de peles e chapéus altos como os ricos e poderosos, lembrando os símbolos capitalistas do artista-caricaturista George Grosz. Afinal, o baldio está assente num solo ensopado de petróleo límpido como água, os contingentes policiais são comandados por cantores de ópera e na mansão marmoreada do milionário Mobbi existe um lacaio pendurado do lado de fora para ir fazendo o relato meteorológico. Claro que há, entre os bons pobres, um Judas ressabiado que não tem espaço na clareira onde se aquecem ao Sol saltitando, mas também existe sempre um empreendedor que sabe organizar uma plateia e vender bilhetes para assistirem ao pôr-do-sol.

Nada do que se poderá pensar sobre o fundamento do neo-realismo fica de pé ao contemplar-se este filme.

Afinal, os milagres existem mesmo e não são divinos, nem sequer, aqui, políticos. Neste filme, o milagre está entregue ao mais vasto firmamento encantado do cinema.

Viva Vittorio De Sica!

 

jef, junho 2021

«O Milagre de Milão» (Miracolo a Milano) de Vittorio De Sica. Com Francesco Golisano, Emma Gramatica, Paolo Stoppa, Guglielmo Barnabò,

Brunella Bovo, Anna Carena. Argumento: Vittorio De Sica, Suso Cecchi D’Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci, segundo romance de Cesare Zavattini Produção: Vittorio De Sica. Fotografia: G.R. Aldo. Música: Alessandro Cicognini. Montagem: Eraldo Da Roma. Cenografia: Guido Fiorini. Guarda-roupa: Mario Chiari. Itália, 1951, P/B, 97 min.

 

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Sobre o livro «O Barão» de Branquinho da Fonseca. Europa-América, Colecção Livros de Bolso 53


 









Dizem pelas linhas digitais da internet que Branquinho da Fonseca fundou em 1927, com José Régio e João Gaspar Simões, a revista Presença, e que a pedido de Azeredo Perdigão iniciou em 1958 e dirigiu o Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Contudo, não é preciso saber de tal currículo para ler «O Barão» e entender que estamos perante um texto único e inclassificável.

A chegada do inspector escolar a um lugar ermo e nocturno, no meio de Portugal (talvez mesmo olugar sombrio seja mesmo Portugal inteiro), dizendo nas primeiras palavras: “Não gosto de viajar.”, é de uma modernidade sem tempo nem qualificação. Parece uma personagem existencialista saída da nouvelle vague francesa, dessas que se entendiam, resmungam mas deixam que a vida lhes cumpra a predestinação. Ele só quer ficar parado as férias inteiras. Porém, ali chegado, é convidado-comandado a ficar no palacete quase assombrado de um Barão que não come mas bebe vinho tinto e champanhe, e muito. E amou uma única mulher e usa de uma liberdade total e angustiada, feita de soberba deprimida, de ânsia fantasmagórica, quase tétrica. Idalina, a criada, sustém-lhe a vida, as memórias amargas e o casarão.

Sem dúvida um texto singular, inexplicado, inquietante, cinematográfico, que deixa a capa deste pequeno livro à beira da ignomínia mas logo, mal o comecei a ler, apelou à boa memória de um filme de Edgar Pêra (2011) com o malogrado actor Nuno Melo por Barão.

Sem deixar a sombra da morte e de certo modo a da fantasmagoria onírica, segue-se o conto «Mãos Frias» a lembrar os contos de Maria Ondina Braga ou Maria Judite de Carvalho e «O Involuntário», a história de outro personagem, Filipe de Maio ou Filipe da Maia, que foge do Outono, diletante e entediado, seguindo apenas o acaso que o destino lhe reserva. Porém, o acaso também aqui não se explica mas, ainda assim, aprisiona.


jef, junho 2021

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Sobre o livro «Fogo» de Luís Campos, Colecção Bolsonoite 1, Europress 1983. Capa de Tomás Pereira.



 








A cartomante Madame Sílvia, ou Berta, esclarece Duque, o jornalista, que anda a investigar um incêndio urbano de características muito particulares e do qual fora testemunha e quase vítima fatal. Sim, ela própria tinha andado metida até ao pescoço nesse célebre caso dos finais dos anos sessenta. Alugava quartos. Grandes senhores das finanças e da política metidos com crianças em sessões de sexo louco. Foi nessa altura que conhecera as duas meninas gémeas: Sílvia e Ivone.

Duque domina as reviravoltas da noite de Lisboa. Certa boite é uma espécie de divã ou cela de recolhimento. Mas também é lá que tudo pode acontecer. Conhece Estela que lhe pede um cigarro e uma bebida e conta que a colega Anabela já se orientou com um tipo de bigode, alcoolizado e de carteira recheada. Duque enxota-a e eles tornam-se amigos. Nessa noite, a do incêndio, conhecerá a sua fogosa esposa, Patrícia. Dias depois, chegará à fala com Ângela, que vive faustosamente no Restelo. Depois, com Marília, a tal sobrinha do senhor Óscar.

Duque tem um jornal. O Jornal do Crime. Bebe muito, fuma ainda mais, mas tudo passa após umas horas de ressaca e enlevo feminino.

Duque só não é o Philip Marlowe, pois Raymond Chandler talvez não conhecesse a zoologia de Lisboa, do Elefante Branco à Cova da Onça, nem conseguiria descrever com tanto talento e realismo sarcásticos os taxistas lisboetas.

O conhecido escritor de policiais, Luís Campos, era pianista e pintor. Em 1982, editou «A Rapariga de Tânger» e «Gata em Noite de Chuva». Nessa altura chamava-se Frank Gold. Depois, «O Estripador de Lisboa» (1984) deu brado. As descrições dos crimes sobrepunham-se à realidade acontecida a três prostitutas no início dos anos noventa, na Póvoa de Santo Adrião, arredores de Lisboa. Por isso chegou a ser investigado.

Luís Campos conhece todos os truques de um bom policial e sabe manejar a intriga com génio, dissimulando-lhe na avidez da narrativa coincidências e incoerências.

Luís Campos faleceu no início do milénio.

Luís Campos foi meu professor de química no Instituto Superior de Agronomia.


jef, junho 2021

domingo, 20 de junho de 2021

Sobre o filme «Caros Camaradas!» de Andrei Konchalovsky, 2020































De certo modo, parecem longínquos os tempos russos de «O Tio Vânia» (1971) ou «Siberíada» (1979). Ainda mais, os anos americanos de 1985 («Comboio em Fuga»), 1987 («Gente Estranha») ou 1989 («Os Amantes de Maria»). Um certo poder que emanava, misterioso e ao mesmo tempo exuberante, das personagens em conflito com o seu tempo e este em contraciclo com o seu meio familiar. Um jeito emprestado de Tchekov.

Neste filme permanece a sombra da previsibilidade que não consegue ser afastada pela poderosa mas ríspida interpretação de Yuliya Vysotskaya, a mãe dilacerada no interior de um cenário de conflito bélico urbano. No início de junho de 1962, Lyudmila, membro do comité municipal de Novocherkassk, comunista leal ao espírito de Estaline e com sérias dúvidas quanto à burocrática visão estatal de Kruchev, vê-se no meio da repressão de uma revolta operária que opõe o exército soviético ao método brutal repressivo do KGB.

Contudo, a absolutamente fantástica fotografia a preto e branco de Andrei Naidenov, aliada a uma circulação da narrativa de uma beleza teatral pelos cenários interiores das casas, ou através da cidade e dos seus arredores, deixam no espectador a certeza de que a estética dramática e a dimensão intimista das personagens que deu a fama ao seu cinema não foram ainda esquecidas por Andrei Konchalovsky.

 

jef, junho 2021

«Caros Camaradas!» (Dorogie Tovarishchi! / Dear Comrades!) de Andrei Konchalovsky. Com Yuliya Vysotskaya, Andrei Gusev, Vladislav Komarov, Yuliya Burova, Sergei Erlish, Alexander Maskelyne. Argumento: Andrei Konchalovsky e Elena Kiseleva. Fotografia: Andrei Naidenov. Produção: Andrei Konchalovsky e Alisher Usmanov. Rússia, 2020, P/B, 121 min.

 

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Sobre o filme «Minha Mãe» de Christophe Honoré, 2004


























Desconheço o livro «Ma Mère» de George Bataille, editado em 1966 quatro anos após a sua morte, no qual Christophe Honoré se baseou. Ensaísta, romancista, antropólogo, filósofo, dizem que o escritor se aproximou e se afastou do catolicismo, do comunismo, do surrealismo. Homem de excessos, tinha uma visão transbordante e transgressora do erotismo, da psicanálise, do comportamento, da literatura. Referem ainda que o tal livro dificilmente seria transposto para o mundo visual e dramático do cinema.

Repito, desconheço «Ma Mère» de George Bataille.

Porém, Christophe Honoré consegue transmitir o ambiente instável, desviante, quase sórdido, dessa aproximação sexual do filho Pierre (Louis Garrel), jovem adulto quase imberbe, pela sua mãe, Hélène (Isabelle Huppert), recentemente viúva, ávida, impulsiva, provocadora, insaciável, quase puta. Uma mãe que quer perto o filho mas ao mesmo tempo o afasta, colocando-o nas mãos e no sexo libertário de mais jovens e experientes profissionais: Réa (Joana Preiss) primeiro, Hansi (Emma de Caunes) depois. Hélène conhece-as bem e o Marquês de Sade não faria melhor.

O cenário é uma das estâncias balneares, urbanisticamente destroçadas, socialmente degradadas, das Canárias. O ruído é o do mundo que se desagrega, a luz tem um grão que parece ofuscar. Nada parece belo (mas é-o!). A câmara (Hélène Louvart), com pudor, nunca mostra todos os corpos, todo o sexo, mas percorre incessantemente os antros, os corredores dos centros comerciais, as ruas vazias e desfiguradas daquele deserto vulcânico. Pierre não teme rezar sobre a areia e ir até onde Hélène deseja que ele vá, mas fá-lo numa espécie de acto de constrição, de suplício, tentando salvar a alma e a libido. Todo o sexo é puramente impuro pois nunca lhe satisfará o desejo. E, tal como na Bíblia, é na morte que encontra a sublimação, negando-a, negando-se, quando, desejando desaparecer, ele grita por fim: «Eu não quero morrer!».

E o que nos fica na memória quando o filme acaba é mesmo o esqueleto dessa ternura imperdoável.

 

jef, junho 2021

«Minha Mãe» (Ma Mère) de Christophe Honoré. Com Isabelle Huppert. Louis Garrel, Emma de Caunes, Joana Preiss, Jean-Baptiste Montagut, Dominique Reymond, Olivier Rabourdin, Philippe Duclos, Pascal Tokatlian, Theo Hakola, Nuno Lopes, Patrick Fanik, Susi Egetenmeier, Sylvia Love Johnson. Argumento: Christophe Honoré segundo romance de Georges Bataille. Fotografia: Hélène Louvart. Produção: Paulo Branco. França / Portugal, 2004, Cores, 108 min.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Sobre o filme «A Grande Cidade» de Satyajit Ray, 1963






















O cinema de Satyajit Ray é enorme, universal, e oferece-nos este «A Grande Cidade» como um manual prático de procedimentos citadinos ou uma bíblia teórica sobre o comportamento humano.

Estamos em Calcutá, em 1963, a viver em casa do extremoso pai de família Subrata Mazumdar (Anil Chatterjee), acarinhado pela esposa vigilante Arati Mazumder (Madhabi Mukherjee), acompanhado pelo filho de ambos, a sua irmã estudante e os seus pais. O espaço é exíguo. Todos se compreendem, entreajudam-se, agregam-se, mas todos também reprimem certos modos atávicos e ancestrais de incompreensão ou desagregação. A intimidade é criada no seio de uma cidade gigantesca e sem portas. O dinheiro escasseia, a doença exige, o desemprego espreita. A mãe de todos, Arati, não terminou o curso mas deseja intimamente realizar-se procurando um emprego para ajudar nas despesas. A tal cidade sem portas é vigilante, fracturada e injusta. Porém, a justiça não será vencida, não poderá haver cedências. O amor assim o dita.  

De um modo prosaico, podemos comparar o filme a uma cebola ou a um caleidoscópio tão múltipla é a forma como nos mostra a família, o afecto, a cidade, a cultura, os preconceitos, o racismo, a história. Uma história sobre a condição feminina que, afinal, poderá ser, afinal, a história da condição masculina.

Toda a beleza fica sustentada nas lágrimas de Arati, no carinho com que Subrata as seca, no caminho que ambos depois seguem, lado a lado, pelo interior da cidade monumental. Monumentalmente neo-realista é esta cena pelo traço de futuro conquistado com que sublinha o final de um dos mais bonitos filmes do mundo.


jef, junho 2021

«A Grande Cidade» (Mahanagar) de Satyajit Ray. Com Anil Chatterjee, Madhabi Mukherjee, Jaya Bhaduri, Haren Chatterjee, Sefalika Devi, Prasenjit Sarkar, Haradhan Bannerjee, Vicky Redwood. Argumento: Satyajit Ray segundo a história de Narendranath Mitra. Fotografia: Subrata Mitra. Produção: R.D. Bansal. Índia, 1963, P/B, 131 min.

 

terça-feira, 15 de junho de 2021

Sobre o livro «Confusão de Sentimentos» de Stefan Zweig, Antígona, 2004. Tradução de Manuela Gomes.














«Para deixar um coração irremediavelmente destroçado, o destino não precisa nem de um grande impulso nem de recorrer a uma força brutal e brusca; dir-se-ia que a sua indomável vontade de moldar retira prazer, justamente, em aniquilar por um motivo fútil. Na nossa obscura linguagem humana, chamamos a esse primeiro contacto indefinido «causa fortuita», e comparamos com surpresa a sua dimensão diminuta com as consequências muitas vezes poderosas que dele advêm; mas, do mesmo modo que uma doença não começa com o diagnóstico que dela se faz, também o destino de uma pessoa não começa só quando se torna visível e se concretiza. Muito antes de atingir a alma a partir de fora, o destino manobra por dentro, no espírito e no sangue. Conhecer-se é já defender-se – e quase sempre em vão.»

Este é o introito com que se inicia, precisamente, o conto «Coração Destroçado». A história de um velho e respeitado funcionário, árduo trabalhador em prol da família, que resolve ir passar umas férias com a esposa e a filha às meridionais temperaturas, deixando para trás as termas germânicas onde costuma tratar-se dos habituais cálculos biliares. Numa noite de insónia, um movimento no corredor e uma suspeita diabólica cola-se-lhe ao destino. Será uma das melhores definições para a escrita de Stefan Zweig. Uma escrita tão desvalorizada como amada pelos leitores mundiais que, em Portugal, fez encher as estantes de muitos lares com as consecutivas edições das Livraria Civilização, nos passados anos 1940-50. Tão psicologicamente existencialista (ou romanticamente realista) como Dostoiévski, Pirandello, Kafka ou Flaubert, é capaz de arrastar o leitor através dos minuciosos véus que, sucessivos, escondem a personalidade das figuras pelas quais o autor visivelmente se apaixona. E o que o une a todas aquelas vedetas literárias é esse sábio jeito de mostrar as clivagens, medos e interstícios das personagens sem lhes colocar sobre a cabeça qualquer espada moral. Ele tem sempre o cuidado de mostrar todas as faces de que se compõem, logo todas as causas e cambiantes, levando o leitor a, com ele, também por elas se enamorar. E fá-lo de um jeito muito sóbrio, quase tímido, escondendo a mestria novelesca numa cultura universal, sem fronteiras de língua ou outra, de que era absolutamente e apaixonado devedor.

Neste volume não surgem o famosíssimo «Vinte e Quatro Horas da Vida duma Mulher» (1935), o sintomático «O Alfarrabista Mendel» (1929) ou o derradeiro «Novela de Xadrez» (1942). Porém, entre as oito ficções estão talvez duas das mais complexas e carismáticas novelas do escritor: «O Medo» (1925) e «Confusão de Sentimentos» (1927). É raríssimo ler-se assim a atroz ansiedade de uma mulher presa na teia que o seu próprio tédio construiu, ou o angustiante sofrimento de um amor calado e proibido entre o professor e o seu aluno.

Sem dúvida, Stefan Zweig sabe dissecar sem alguma vez culpar a alma dos homens.

Em 1942, escreveu «O Mundo de Ontem» mas pode ser muito bem o símbolo futuro de uma cultura livresca, nostálgica e humanista que tem urgentemente de voltar a ser popular.

 

jef, junho 2021

 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Sobre o filme «Prisão Maior» de Joseph Losey, 1960
























Diz a IMDb que Joseph Losey estudou com Bertold Brecht. Na realidade, existe qualquer coisa de profundamente humano na dramaturgia do realizador (mesmo quando Harod Pinter não intervém). Talvez mesmo fracturante, amoral, onde as personagens são tudo e, no fundo, pouco são no justo momento em que a realidade os encosta à parede (ou às grades da prisão). Tal como nos heróis de Brecht.

Johnny Bannion (Stanley Baker) é rei e senhor numa prisão onde chefia prisioneiros e controla guardas até ao instante em que a liberdade é imposta e a prisão de um mundo de crime, subserviente a códigos bem mais específicos e inatacáveis, se sobrepõe à sua própria dominância. Ele expulsa todos da festa que se realiza na sua própria casa, incluindo Maggie (Jill Bennett) a anterior namorada que chega para exigir tributo, e encontra deitada e escondida na sua cama Suzanne, uma extraordinária Margit Saad, a exigir uma devoção a que ele ficará devedor. 

O golpe na casa de apostas das corridas de cavalo é bem-sucedido, o dinheiro é escondido mas ele tem de voltar à prisão. O estigma dominador do seu mundo parece agora desfazer-se. A autoridade que antes impunha é cercada pela desconfiança, pela revolta, pelo desprezo, tanto no interior da prisão como do outro lado. A solidão aproxima-se, cerca-o. Resta-lhe fugir até à neve, apesar de ferido, e calar o segredo. Rezará nos braços de quem lhe exige a revelação do lugar perdido e a câmara afasta-se do corpo estendido no campo gelado. Não existe símbolo mais poderoso e redentor do existencialismo humano. O silêncio contra a fúria. Nada mais resta aos heróis caídos.

De Visconti a Renoir, de Ford a Kubrick, também a Joseph Losey – o cinema completo!


jef, junho 2021

«Prisão Maior» (The Criminal) de Joseph Losey. Com Stanley Baker, Sam Wanamaker, Grégoire Aslan, Margit Saad, Jill Bennett, Rupert Davies, Laurence Naismith, John Van Eyssen, Noel Willman, Kenneth Warren, Patrick Magee, Kenneth Cope, Patrick Wymark, Paul Stassino, Tom Bell, Neil McCarthy, Nigel Green, Tom Gerard, Edward Judd. Argumento: Alun Owen. Fotografia: Robert Krasker. Música: John Dankworth. Produção: Nat Cohen. Grã-Bretanha, 1960, P/B, 97 min.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Sobre o filme «O Pai» de Florian Zeller, 2021







Claro que Anthony Hopkins (Anthony) é extraordinário no modo de nos deixar em palpos de aranha quando a neurologia começa a falhar retirando os filtros do bom comportamento, da boa vizinhança, da memória. Impressionante como consegue fazer baixar sobre o próprio olhar o véu calado da auto-incompreensão e, posteriormente, do alheamento.

Mas sem a desesperada, submissa e silenciosa sua filha Anne (Olivia Colman) essa acrimónia potencial, e agora exposta, de nada valeria.

Sobretudo, o facto de a história ser contada entre fracturas de tempo e lapsos de arquitectura doméstica, sempre pelo lado interior de quem não entende a causa da geografia espacial se revoltar contra a rotina da lembrança, é digno de excelente nota. A lembrar o espanto com que se lê «O Som e a Fúria» de William Faulkner (1929) ou «O Vento Assobiando nas Gruas» de Lídia Jorge (2002).

Mas não será comum essa resignação final, esse apaziguamento emocional interior. Infelizmente, a grande maioria das histórias não têm tal melancolia triste mas pacífica no seu termo. Coisa mais de pesponto cinematográfico hollywoodesco do que de realismo diegético.


 jef, junho 2021

«O Pai» (The Father) de Florian Zeller. Com Anthony Hopkins, Olivia Colman, Mark Gatiss,     Olivia Williams, Imogen Poots, Rufus Sewell, Ayesha Dharker. Argumento: Christopher Hampton e Florian Zeller, baseado no romance deste último. Fotografia: Ben Smithard. Música: Ludovico Einaudi. EUA / França, 2021, Cores, 97 min.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Rocha dúctil

 

Aconchego-me ao Grande Canyon,

entre fundas perspectivas e doces poeiras aromáticas.

Aí, permaneço.

E adormeço nessa penumbra ocidental.

Na penugem do amor,

na lucidez translúcida do fluído,

no instante fortuito da saliva,

no corpo solvente do calor,

num certo reverso da experiência

em que me desfaço e me cuido,

sem saber se, algum dia, me deixarão regressar.

Mas, sim, um dia regressarei

de sono tão invulgar,

do sol sem zénite,

desse líquido porvir.

Agora, estou certo, vou acordar

encadeado pelo crepúsculo

que me fechará os olhos,

como fazem as rochas dúcteis

ao levantarem-se do pó duro da agonia.

Nesse momento, estarei pronto.

E voltarei a partir.

 

jef, junho 2021