sexta-feira, 25 de junho de 2021

Sobre o filme «O Milagre de Milão» de Vittorio De Sica, 1951


















Não sei bem quais os limites do realismo ou do neo-realismo. Bem vistas as coisas, não saberei mesmo o que são o realismo e o neo-realismo. Apenas sei que a minha mãe dizia que «Ladrões de Bicicletas» (1948), do qual era devota, era um dos marcos do neo-realismo.

O grande crítico francês André Bazin, no seu artigo de 1952, diz-se paralisado não sabendo como apresentar o maior realizador do cinema italiano. Ele próprio diz-se devoto de «O Milagre de Milão».

Por outro lado, e para justificar todo o ciclo de extraordinária fantasia do filme, o próprio realizador considera-se devedor de Charlie Chaplin e René Clair, mestres da fantasia realista.

E eu que, muito modestamente, trago no coração o mundo realisticamente onírico de «Mary Poppins» (Robert Stevenson, 1964), «O Grande Peixe» (Tim Burton, 2003) ou «O Sentido da Vida» (Monty Phyton, 1983), acho que saí também de «O Milagre de Milão» com essa sensação de liberdade e alegria absolutas. Saí mais leve, de sorriso franco.

Como é possível fazer-se um filme assim. Sem baias nem peias, elevando a bondade a um patamar no qual o ser ingénuo e o ser consciente associam-se numa espécie de paradigma político. E quantos políticos não falarão em milagre quando teorizam a utópica melhoria de uma sociedade.

Afinal, Totò, uma criança que nasceu das couves e teve por mãe uma avó maravilhosa que regressa dos céus para lhe trazer a pomba dos milagres, irá ajudar a construir num baldio a cidade dos pobres que tem por nome das ruas a tabuada, que decoram as casas com lixo reciclado, que anseiam por ter casacos de peles e chapéus altos como os ricos e poderosos, lembrando os símbolos capitalistas do artista-caricaturista George Grosz. Afinal, o baldio está assente num solo ensopado de petróleo límpido como água, os contingentes policiais são comandados por cantores de ópera e na mansão marmoreada do milionário Mobbi existe um lacaio pendurado do lado de fora para ir fazendo o relato meteorológico. Claro que há, entre os bons pobres, um Judas ressabiado que não tem espaço na clareira onde se aquecem ao Sol saltitando, mas também existe sempre um empreendedor que sabe organizar uma plateia e vender bilhetes para assistirem ao pôr-do-sol.

Nada do que se poderá pensar sobre o fundamento do neo-realismo fica de pé ao contemplar-se este filme.

Afinal, os milagres existem mesmo e não são divinos, nem sequer, aqui, políticos. Neste filme, o milagre está entregue ao mais vasto firmamento encantado do cinema.

Viva Vittorio De Sica!

 

jef, junho 2021

«O Milagre de Milão» (Miracolo a Milano) de Vittorio De Sica. Com Francesco Golisano, Emma Gramatica, Paolo Stoppa, Guglielmo Barnabò,

Brunella Bovo, Anna Carena. Argumento: Vittorio De Sica, Suso Cecchi D’Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci, segundo romance de Cesare Zavattini Produção: Vittorio De Sica. Fotografia: G.R. Aldo. Música: Alessandro Cicognini. Montagem: Eraldo Da Roma. Cenografia: Guido Fiorini. Guarda-roupa: Mario Chiari. Itália, 1951, P/B, 97 min.

 

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