sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Sobre o filme «Fogo-Fátuo» de João Pedro Rodrigues, 2022

 
























aqui se confirma o que já foi dito por Woody Allen, em 1972, em «O ABC do Amor»: o esperma não tem cor.

O que surpreende nesta real curta comédia musical é uma ostensiva brincadeira “à portuguesa” sobre as raízes diabolicamente monárquicas (e talvez salazarentas, certamente racistas) da República Portuguesa.

Por outro lado, existe uma sensação de liberdade sobre os cânones da própria comédia portuguesa dos anos 30 e 40 do século passado que deixa os actores num alegre equilíbrio entre a saga familiar que não se reconhece na nova democracia e a mais pura brincadeira em torno do corpo e da alma de ser português masculino (e também de ser portuguesa feminina)

Actores como Miguel Loureiro (Eduardo – o pai) e Margarida Vila-Nova (Teresa – a Mãe) dão o mote para a desabrida conjugação de louros e descréditos de um tema que se pode resumir no seguinte: seu filho, o príncipe Alfredo (Mauro Costa), declara desejar alistar-se como bombeiro, sublinhe-se o adjectivo voluntário. Na corporação encontrará Afonso (André Cabral), outro voluntário, por acaso negro, pelo qual irá apaixonar-se.

Depois, a acção passa para o ano 2069.

Sem dúvida, o final do filme é surpreendente. Anabela Moreira e Raquel Rocha Vieira, as ratazanas de sacristia e papa-velórios, pedem ao emboçado retardatário para se descobrir por respeito ao morto, enquanto ouvimos o antigo fado na interpretação de Paulo Bragança. O mistério desvendado é hilariante!

Uma bela pequena comédia muito portuguesa e muito fora do comum.

Viva a República! De alma e corpo!


jef, setembro 2022

«Fogo-Fátuo» de João Pedro Rodrigues. Com Mauro Costa, André Cabral, Joel Branco, Oceano Cruz, Margarida Vila-Nova, Miguel Loureiro, Dinis Vila-Nova, Luísa Castelo Branco, Teresa Madruga, Vasco Redondo, Ana Bustorff, João Mota, Paulo Bragança, Anabela Moreira, Raquel Rocha Vieira, Cláudia Jardim, Joana Barrios, João Villas-Boas, João Reis Moreira, João Caçador, Sérgio Coragem, António Calpi, Mick Bateman, Coro Infantil de Santo Amaro de Oeiras. Argumento: João Pedro Rodrigues, Paulo Lopes Graça, João Rui Guerra da Mata. Produção: Maria Speth. Fotografia: Rui Poças. Música: Paulo Bragança. Guarda-roupa: Patrícia Dória. Portugal, 2022, Cores, 67 min.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Corticeira, eritrina-crista-de-galo, flor-de-coral Erythrina crista-galli L.







































Corticeira, Eritrina-crista-de-galo, Bico-de-papagaio, Sapatinho-de-judeu, Flor-de-coral Erythrina crista-galli L.

Família Fabaceae


Desta árvore da família das Leguminosas, agora Fabaceae, é impossível não lhe recordar as flores vermelhas, pendentes, invertidas e em cacho, talvez um pouco borboletáceas, pétalas carnudas, quilha proeminente e com um amplo recipiente de néctar na base para atrair aves e insectos polinizadores. As folhas compostas, trifoliadas, com estípulas e folíolos glabros, alternam a sua existência decídua com o aparecimento dessas flores cor de sangue, cor dos eritrócitos, que os gregos bem sabiam nomear a cor – erythrós. O fruto é uma delicada vagem.

Chega, então, aqui, esta árvore caducifólia da América do Sul, do Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Argentina, que pode atingir os 15 metros de altura, de ritidoma encortiçado e acinzentado, chega para embelezar a imaginação humana no que toca ao seu infindável bestiário: eritrina-crista-de-galo, bico-de-papagaio, flor-de-coral. Por acaso, dizem que certos órgãos destas plantas contêm alcaloides sedativos.

Serve também esta árvore para tornar um pouco mais bizarros os jardins, os parques e os arruamentos das cidades. Em Lisboa, por exemplo, pela Praça de Londres ou, mais discreta, na Rua dos Anjos.

O homem, na realidade, sempre tende a esquecer aquilo que os seus olhos avistam diariamente e a sentir-se atraído, desde logo, pelo exótico, pelas cores inusitadas, pela singularidade das formas e cheiros de flores excêntricas. Deste modo definitivo, a evolução selectiva e extravagante das inflorescências da eritrina-crista-de-galo cumpre a sua função reprodutiva, atraindo vespas, borboletas, colibris e humanos para que procedam à respectiva disseminação.                                                                        

jef, setembro 2022

*botânica

terça-feira, 27 de setembro de 2022

sobre a árvore Lódão-bastardo, ginginha-de-rei Celtis australis L.




























Lódão-bastardo, ginginha-de-rei, lodoeiro, agreira Celtis australis L.

Família Cannabaceae


Dizem que existe por cá, de modo espontâneo, em vales encaixados e junto de leitos de rios pedregosos e com torrente, afloramentos rochosos ou solos frescos, até os 1200 metros de altitude. Segue o curso do Douro ou do Mondego ou do Tejo. Também não desdenha o Alto Alentejo.

Pertence, agora, à mesma família da célebre e aromática Cannabis sativa, vamos lá saber porquê, mas pelo que li, antes, Lineu a colocara junto das Ulmáceas. Celtis era como os romanos lhe chamariam. Também lotus, derivado do grego lotós que nos trouxe o nome de lódão ou lodoeiro.

Árvore caducifólia de grande longevidade, porte elegante, quase austero do alto dos seus perto de 30 metros de altura, copa farta e fechada, arredondada, tronco retilíneo, praticamente liso, sem fissuras, por vezes cinzento-esbranquiçado.

As folhas são simples, fortemente pecioladas, em forma de lança pontiaguda ou ovado-lanceolada (15 x 7 cm), assimétricas, trinérveas na base, com a orla serrada e a página superior áspera com pêlos rígidos, verde-escura. Dos raminhos das novas folhas também rebentam as inflorescências amareladas e normalmente solitárias, masculinas e hermafroditas. Dali, surgem os frutos, as pequenas drupas, globosas, com longos pedúnculos, vagamente adocicadas, embora com muito pouca polpa, no início verdes, depois avermelhadas, escurecendo até ao negro, maduras, lá para o final do Verão e no Outono. As ditas ginginhas-de-rei. Os melros e restante passarada não as desdenham.

As folhas dão boa forragem e os frutos, bastante adstringentes, têm propriedades medicinais. Do tronco e das raízes obtém-se corantes de tonalidade amarela. Tem uma madeira compacta mas leve, dura mas flexível, com características óptimas para a tanoaria e o fabrico de utensílios vários e de cabos de faca. Dizem muito útil para o jogo-do-pau.

Porém, resistente à poluição, o lódão-bastardo é na cidade que melhor se perfila, alinhado, famoso e urbano, melhor ornamentando Lisboa, pelas velhas ruas das Avenidas Novas, na Alameda D. Afonso Henriques, no Jardim do Príncipe Real ou na Praça da Alegria.


jef, setembro 2022


Lódão-bastardo, ginginha-de-rei Celtis australis L.

Angiospérmica, caducifólia

Altura: 25 a 30 m

Folhas: lanceoladas ou ovado-lanceolada (15 x 7 cm), contorno serrilhado, 15x7 cm, página superior verde-escuro com pêlos rígidos e na inferior, pubescentes

Floração: amareladas e solitárias.

Frutificação: drupas de 1,5 cm de diâmetro, pedunculadas, de pouca polpa, final de Verão e Outono do ano seguinte

Utilização: madeira: tanoaria e fabrico de utensílios vários como cabos de faca, frutos: uso medicinal rico em taninos, lenha, carvão, ritidoma e raízes: corante para tinturaria. Ornamental.

*botânica

 


domingo, 25 de setembro de 2022

Sobre o filme «Restos do Vento» de Tiago Guedes, 2022




















A proposta do filme parece, em muitos sentidos, promissora: um hiato narrativo de 25 anos e o confronto com a agressividade, a violência, os ritos, a praxe, o poder, a dominação e, por fim, a culpa e a vingança, de um grupo de rapazes que se tornaram respeitáveis cidadãos. Estamos no centro de Portugal, em Penamacor, entre Meimão e a barragem da Meimoa, com um grupo de personagens que, aos poucos, nos vão revelando o ódio, a dissimulação ou o rancor que transportam desde o seu passado. Tudo voltará ao presente se a assunção do erro e a sublimação da culpa não forem efectivas.

Óptima ideia narrativa.

Contudo a realização preocupa-se mais com a luz que entra pelos cenários do que com o espaço que teria de dar aos magníficos actores para poderem dar azo à sua arte. Há um espaço e um tempo narrativos que ficam reféns de uma presunção estética. Há um confronto de violência bruta que teria de ser explorada em termos dramáticos e cénicos. Há um abuso de pormenores descritivos e particularidades narrativas (e de cães) que tentam caracterizar as personagens (e as suas relações) mas que se atropelam e baralham os espectadores. Há um abuso de anti-moralidade não sustentada pela correspondente linha filosófica sobre a violência, deixando as personagens (e os actores) cair numa espécie de círculo vicioso entre a vingança e o ridículo.

Ou sou eu que que acabo de ver os 146 minutos de «Uma Mulher sob Influência» de John Cassavetes (1974)… e fiquei assim.

[E, já agora, onde pára o nosso querido argumentista Rui Cardoso Martins?]


jef, setembro 2022

«Restos do Vento» de Tiago Guedes. Com Albano Jerónimo, Nuno Lopes, João Pedro Vaz, Isabel Abreu, Gonçalo Waddington, Leonor Vasconcelos, Maria João Pinho. Argumento: Tiago Rodrigues e Tiago Guedes. Produção: Paulo Branco. Fotografia: Mark Bliss. Portugal, França, 2022, Cores, 126 min.

Sobre o livro «A Noite do Professor Andersen» de Dag Solstad. Cavalo de Ferro, 2018. Tradução de João Reis.










Por falar em obsessão.

Pal Andersen é professor de literatura e especialista em Henrik Ibsen, em particular das peças que este escrevera entre 1880 e 1890. O grande Ibsen. Divorciado, 55 anos, sem filhos vive rodeado de livros num bom apartamento em Oslo. Está sozinho e oferece a si próprio uma requintada refeição na noite de Natal. Prepara-se para um momento tranquilo e abençoado quando resolve ir à janela da frente observar os vizinhos que também estão a comemora.

Numa das janelas do prédio em frente, porém, assiste a um caso que não o vai deixar sossegado durante semanas. Entre a angústia e a obsessão começa a duvidar da utilidade da sua profissão, do percurso feito desde a sua juventude, da razão da culpa e do crime, do valor da pena e do castigo.

«No fim de contas, tinha a forte suspeita de que desperdiçara a sua vida em algo condenado a desaparecer. Era professor universitário de literatura e já não conseguia dizer que a literatura tinha um grande valor associado, algo que acreditara quando optara por seguir esse rumo.»

O Professor Andersen vai questionar ainda o percurso burguês dos amigos e dos colegas. Questiona mais intensamente a sua conduta, a própria culpa perante a suposta ineficácia da denúncia, admite uma certa admiração pela ostensiva culpa alheia, cede à doença que, aos poucos, o vai dominando. «Mas posso estar condenado quando não acredito em Deus?» Tira uma baixa médica, veste o pijama e o roupão mas jamais dúvida do que os seus olhos verificaram naquela noite.

O Professor Andersen põe até a hipótese de ir acompanhado assistir às corridas de cavalo em Bjerke. Mas treme de frio e deve voltar a resguardar-se em sua casa, entre livros, delitos e omissões.

Curiosamente, este livro, que nos faz entender, de certo modo, o mundo serenamente intelectual e estável de Oslo e da Noruega, transporta um certo ambiente de desespero final interrompido por laivos de um humor tão subtil e triste quanto nórdico e frio. A obsessão da escolha é a dúvida primordial.

A sombra de Sören Kierkegaard paira por aqui.

Contudo, tão filosóficos e obsessivos como este texto mas infinitamente mais divertidos temos «Um, Ninguém e Cem Mil» de Luigi Pirandello ou «O Crime de Lorde Arthur Savile» de Oscar Wilde.

 

jef, setembro 2022

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Sobre o filme «Uma Mulher Sob Influência» de John Cassavetes, 1974































É impossível classificar um filme como este. Principalmente quando parte do pressuposto de ser sobre uma mulher, Mabel Longhetti (Gena Rowlands), que, sem ilusões ou resistência, vive o instante que cada minuto presente lhe entrega. Tem três filhos que muito ama e bem trata, aguarda a chegada do marido, também amado, Nick Longhetti (Peter Falk), que trabalha nas obras, fora de horas. Ela aguarda-o, por vezes em vão, ele anseia-a, por vezes com respeito e com receio. Nick vive sob influência, assim como as três crianças.

É impossível esquecer este filme, que nos entrega um conjunto de actores emocionalmente livres para aceitar esse método “Cassavetes” onde o improviso os deixa sistematicamente com a interpretação das personagens à flor da sua própria pele. E apesar de ser um filme sobre a bondade libertária, talvez mesmo refractária, de Mabel, esta apenas se revela de encontro à egoísta, embora sincera e amorosa, espontaneidade de Nick.

Tal como Mabel, Nick, as crianças e a restante família vivem sob a atroz influência das circunstâncias de uma sociedade que lhes apresenta os problemas mas esconde, de modo perverso, cada uma das possíveis soluções.

Esta sociedade não serve a bondade de Mabel nem a crua benevolência de Nick. Entre um e outro, o espectador fica órfão de qualquer coisa, entre o sorriso e a aflição, a ansiedade e o desespero, a comédia sem filtros e a tragédia cuja redenção poderá estar contida num instante guardado miraculosamente no dia que chegará depois.

Eu nunca tinha visto este filme. É-me impossível esquecê-lo. Guardá-lo-ei dentro de mim, confirmando essa minha magnífica sensação pictórica de que Gena Rowlands guarda sob a pele, no olhar e no coração qualquer coisa muito particular e mágico, indescritível, indestrutível, profundo, que também Marilyn transporta para dentro de nós!

 

jef, agosto 2022

«Uma Mulher Sob Influência» (A Woman Under the Influence) de John Cassavetes. Com Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper, Lady Rowlands, Katherine Cassavetes, Matthew Labyorteaux, Matthew Cassel, Christina Grisanti, George Dunn, Mario Gallo, Eddie Shaw, Angelo Grisanti, Charles Horvath, James Joyce, John Finnegan, Vincent Barbi, Cliff Carnell, Frank Richards, Hugh Hurd, Leon Wagner. Argumento: John Cassavetes. Produção: Sam Shaw. Fotografia: Mitch Breit, Al Ruban. Música: Bo Harwood. EUA, 1974, Cores, 146 min.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Sobre a cassete «Knok Knok», Base Recordings, 2017







A ideia é muito cativante: a música, baseada em círculos programados digitalmente e reproduzidos por sintetizadores, vai sendo, de modo progressivo, modificada ao sabor de ligeiras adulterações genéticas praticadas sobre as amplitudes, os hertz e os comprimentos das ondas.

Por outro lado, a fita electromagnética da cassete, ao reproduzir também repetidamente as faixas musicais, degradando-se, vai apresentando-nos sempre versões diversas – ela própria uma compositora ladra!

A linha sonora concêntrica sugere-nos os desenhos que vão sendo elaborados pela caneta associada ao pantógrafo que circula como um pêndulo ao sabor da gravidade. O desenho termina num ponto único, estático, no centro da prancheta quando esta, por fim, pára.

Na cassete «Knok Knok» as faixas aparecem metódicas, planificadas, graficamente sonoras, em dobras circulares, mais ao menos cândidas, sob a égide electrónica de Armando Teixeira e de Duarte Cabaça (bateria), provocando uma síntese no nosso pantógrafo cardíaco.

Porém, já o lado B vai entrado, surge uma espécie de suspensão sinfónica com as faixas “P vs H” e “Acrílico Azul”, nas quais uma espécie de drum’n’bass estrutura a penumbra caótica. Um certo drum’n’bass que se estende já mais arquitectónico em “Concêntrico”, a penúltima faixa do lado B.

Por fim, e para que o ouvinte não se esqueça de que as cassetes têm sempre um lado romântico e de veraneio e que os Balla não desdenham meter foice alheia na seara cançonetista franco-italiana de décadas passadas, ouvimos essa longínqua nostalgia: “O Último Verão”. Aqui, a bateria é de Diogo Andrade.

Além, o design da capa é de Paulo Romão Brás.

 

jef, setembro 2022


terça-feira, 13 de setembro de 2022

Sobre o filme «Sombras» de John Cassavetes, 1959






















Anunciação “Cassavetes”.

O filme, a sua primeira obra, é-nos, por fim, apresentada textualmente como sendo realizada sob a chancela da improvisação.

Também, por isso, poderá ser contemplada como um improviso acelerado, um divertimento ansioso, um scherzo jazzístico. Ou seja, o melhor prefácio para um realizador que sempre ofereceu os filmes à inata vocação dramática e cénica dos seus queridos amigos actores. Alguém que nunca hesitou em deixar o improviso a cargo do close-up e do rodopio frenético da câmara que corre atrás das suas personagens. Personagens que sempre fogem de si próprias.

Cinema-improvisação. Cinema-realidade.

Três irmãos correm pela cidade e escondem-se no recôndito da sua pequena casa. Lelia (Lelia Goldoni) deseja escrever, Ben (Ben Carruthers) tenta tocar trompete e Hugh (Hugh Hurd) apresenta-se nos clubes nocturnos como cantor de jazz. Eles e os amigos fazem pela vida e pela alegria de serem jovens. A geração beat paira ali, anti-materialista e sem poiso, livre e a roer as amarras da grande guerra. Vive paredes meias com o jazz, ou mais concretamente com o tradição do bebop. Porém, a cidade corre mais do que eles, respira mais fundo e não lhes dá grandes chances. Cassavetes prende, já aqui, as personagens à melancólica e expressionista herança do seu futuro cinematográfico.

Um futuro genial.


jef, agosto 2022

«Sombras» (Shadows) de John Cassavetes. Com Ben Carruthers, Lelia Goldoni, Hugh Hurd, Anthony Ray, Dennis Sallas, Tom Reese, David Pokitillow, Rupert Crosse, David Jones, Pir Marini, Victoria Vargas, John Cassavetes, Seymour Cassel, Gena Rowlands. Argumento: John Cassavetes. Produção: Seymour Cassel, Maurice McEndree. Fotografia: Erich Kollmar. EUA, 1959, P/B, 87 min.

sábado, 10 de setembro de 2022

Sobre o livro «Duffy» de Dan Kavanagh. Puma Editora, Bolso Negro n.º 16, 1993 (1980). Tradução de Paula Reis. Capa de Vasco Eloy.


 









Por estes dias enlutados, certamente, o Soho londrino não será como vem aqui descrito. Também não será como Dan Kavanagh o narra em 1980. Passaram 42 anos. Ruas estreitas ligadas por logradouros, corredores, armazéns manhosos e esconsos mal frequentados, apresentando sex-shops, peep-shows, salões de massagens e cinemas pornográficos para clientes envergonhados mas ávidos de prazeres fugazes.

Nick Duffy é contactado para solucionar um caso de chantagem iniciado com um assalto à casa de Brian McKechnie. Na véspera, o que fizeram a Rosie McKechnie e ao seu gato não tem explicação. Contudo, McKechnie não é inocente e Duffy, com o nome de Mr. Wrigth chega muito perto do chantageador. Afinal, este, Salvatore não é mais do que Martoff, o mais hediondo e perverso magnate da pornografia londrina. Aquele que, anos atrás, ajudou a tramar o incorruptível Duffy fazendo com que este fosse expulso da polícia, num caso onde foi manipulado usando o facto de Duffy ser bissexual.

As cenas são fortes, os cenários asfixiantes, os pormenores bem descritos. Ficamos a gostar de Duffy.

Não há duvida que Dan Kavanagh, aliás Julian Barnes, escreve mesmo bem.

 

jef, setembro 2022

 

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Sobre o filme «Libertad» de Clara Roquet, 2021






















O primeiro filme da argumentista catalã Clara Roquet tem que se lhe diga e a narração, tão bem urdida, está ancorada em cenas, pormenores e decores que fazem dele um objecto particular.

Duas filhas a sair da infância para a adolescência, de sabores e dissabores comuns mas tão especiais que se tornam sempre inesquecíveis. Também duas mães e duas avós. A separá-las apenas mais umas férias grandes passadas na costa mediterrânica perto de Barcelona. Também a morte e o Alzheimer, a dizer-lhes que aquele longo ciclo vai terminar. Mas, acima de tudo, a diferença de classes. É fundamental, ali, o silêncio pela inveja e pela disputa do amor maternal, também a calada subserviência que impede a intimidade na amizade entre patroa e empregada.

A cena dos vestidos comprados na feira é de uma subtileza de mestre. O almoço entre filha e mãe em que a primeira se recusa a comer até que a aquela se afasta, e aquela depois devora a comida com apetite.

Libertad (Nicolle García) é o nome de uma das filhas. Nora (Maria Morera) o da outra. O instinto de ambas sabe que aquele Verão não se repetirá.

Dizem que poucos temas existem na arte e na literatura. O do fim da inocência infantil e da iniciação na vida adulta, será sem dúvida o primeiro.

Um filme particular a reter no olhar e na memória das memórias.


jef, agosto 2022

«Libertad» de Clara Roquet. Com Maria Morera, Nicolle Garcia, Nora Navas, Carol Hurtado, Carlos Alcaide, Òscar Muñoz, Sergi Torrecilla, Maria Rodríguez Soto, David Selvas, Vicky Peña, Alejandro Clavería, Abel Montes, Juanjo Boldu, Mathilde Legrand, Lucia Seoane. Argumento: Clara Roquet, Eduard Sola. Produção: Ono Folguera, María Zamora, Sergi Moreno, Stefan Schmitzs. Fotografia: Gris Jordana. Guarda-roupa: Vinyet Escobar. Música: Paul Tyan. Espanha / Bélgica, 2021, Cores, 104 min.

 

domingo, 4 de setembro de 2022

Sobre o filme «Noite de Estreia» de John Cassavetes, 1977



























A grande estrela do teatro Myrtle Gordon (Gena Rowlands) vive no auge da sua carreira mas sente, no seu interior, que já o ultrapassou. 

Acaba de terminar em delírio do público mais uma representação. Todas as atenções se viram para ela, incluindo a da jovem fã que, em êxtase, se deixa atropelar na avenida, morrendo e deixando Myrtle frente ao seu próprio fracasso. Não entende como deve suportar contracenar com o seu ex-marido Maurice (John Cassavetes), nem como aguentar as directrizes de palco do encenador Manny (Ben Gazzara). Principalmente não entende como deve representar Virginia a personagem principal da peça “The Second Woman” sem que esta se cole à sua própria pele. Entra em conflito com a autora Sarah Goode (Sarah Goode). Entra em colapso. Na solidão do seu apartamento-palco-vazio em Nova Iorque. Na descrença no futuro olhado através do fundo de um copo de whisky.

É um filme tão cru como cruel sobre a condição humana que, de modo irrevogável, se aproxima solitariamente da velhice. A câmara de Al Ruban  não deixa espaço para o espectador se afastar da realidade, aproximando-se da ficção cénica do teatro. Aqui não há espaço para sermos comtemplados pela fantasia do cinema. Os actores do clã Cassavetes entregam-se, de novo, à tarefa de representarem, ou melhor, de nos apresentarem o irremediável em close-up, em cenas fechadas sobre a pressa dos segundos que estão a passar, ansiosos, sobre a hora prevista para a noite de estreia.

Mas Myrtle vai chegar ao teatro sobre uma qualquer influência, talvez sobre a perversa influência do Tempo. Mas vai chegar, não interessa como. Vai chegar, sim, pois todos a amam e de modo incondicional.

Um filme incondicional sobre a solidão e o tempo que já passou, mas também sobre o amor, também ele sem condições, ao teatro.


jef, agosto 2022

«Noite de Estreia» (Opening Night) de John Cassavetes. Com John Cassavetes, Gena Rowlands, Joan Blondell, Ben Gazzara, Paul Stewart, Zohra Lampert, Laura Johnson, John Tuell, Ray Powers, John Finnegan, Louise Lewis, Fred Draper, Katherine Cassavetes, Lady Rowlands, Carol Warren, Briana Carver, Angelo Grisanti, Peter Bogdanovich. Argumento: John Cassavetes. Produção: Mike Lally, Al Ruban, Sam Shaw. Fotografia: Al Ruban. Música: Bo Harwood. EUA, 1977, Cores, 144 min.