quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Sobre o filme «As Asas do Desejo» de Wim Wenders, 1987












«Als das Kind Kind war,
ging es mit hängenden Armen,
wollte der Bach sei ein Fluß,
der Fluß sei ein Strom,
und diese Pfütze das Meer.
[…]»  Peter Handke, 1987

Trinta anos passaram.
Terá o poema resistido ao Tempo? A música de Jürgen Knieper, dos Crime & the City Solution, dos Bad Seeds, resistido ao «Eu, aqui e agora»? E a biblioteca? A cidade de Berlim sobrevivido ao muro, ao elefante que faz o pino, ao café que aquece as mãos? Peter Colombo Falk (1927-2011) zelará ainda pelas vozes nunca expressadas de cada um dos seus cidadãos? E as asas acrobatas de Solveig Dommartin, ainda voarão?
Creio que sim…
O mundo agitado pelo terrorismo de Donald Trump, pelo assassínio público e avulso, faz-nos regressar à inquietação sistemática. O que faremos nós, aqui e agora? Seremos os mesmos que fomos em criança e andávamos de braços pendentes, desejando que o riacho fosse um ribeiro, o ribeiro um rio, o rio um mar? Certamente não seremos mas a premissa da dádiva e da compreensão de «nós entre os outros» ou, melhor, «nós com os outros» permanece incólume como as asas de um anjo caído na mais que benévola tentação do amor terreno, logo eterno. Assim será… 
«Als das Kind Kind war»!

E, agora e aqui, quando regresso a um dos meus filmes «libertadores», recordo, por silogismo, a imagem pura de Audrey Hepburn (1929-1993) como anjo redentor em «Always» de Steven Spielberg (1989). Essa mulher que não tinha medo de morrer porque gostava muito de dormir.

jef, fevereiro 2017

«As Asas do Desejo» (Der Himmel über Berlin) de Wim Wenders. Com Bruno Ganz, Otto Sander, Peter Falk, Solveig Dommartin. Música: Jürgen Knieper. Argumento: Peter Handke, Wim Wenders. França / Alemanha, 1987, Cores e P/B, 127 min.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Sobre o livro «B.I. – Caderno de Identidade» de Pedro Castro Henriques, Fernanda Cunha & João Eduardo Ferreira, By the Book 2017.









Dizem que é inconveniente ser-se juiz em causa própria.
Hipócrates desconfiou do médico que tratou o parente chegado.
Há quem afirme que em casa de ferreiro espeto de pau.
Ou que os santos não fazem milagres em casa.
Enfim, tudo menos mau...
Agora, fazer publicidade ao livro que termina com um texto da própria autoria é A Morte do Artista!
Assim será: morrerei! Pura verdade.
Mas antes tentarei a minha sorte, a minha Identidade. Questão de personalidade, identificação, cidadania, política, liberdade, democracia. Bilhete ou Cartão.

No início, Rui Cardoso Martins prefacia: «A toda a hora do dia e da noite. Qualquer pessoa que se lembre do prédio em que cresceu, dos vizinhos que teve, dos episódios que escutou e observou, qualquer pobre de mim que pense no edifício onde paga a renda agora, faz a análise do seu próprio lugar no mundo, da sua identidade.»

Logo a seguir ao princípio, entra o verbo de Pedro Castro Henriques: «Bem, lá que tenho dúvidas, tenho… mas acho que sou eu e para mais até está nos papéis… de que vale duvidar… assinei… e por aí fora. Pois, mas o problema está aí mesmo… no ‘por aí fora’… é que ‘por aí fora’ as coisas dão muitas voltas… ó, as voltas que as coisas dão ‘por aí fora’… um gajo começa duma maneira e ‘por aí fora’ torna-se noutro, e noutro ainda e em não sei quantos mais…»

Pelo meio, Fernanda Cunha escreve: «Não está em causa considerar que as acções políticas possam prescindir de objectivos ou finalidades, isto não faria sentido. Aliás, na maior parte das vezes a intervenção política é convocada pelo confronto das diferentes necessidades. Mas a acção ascende à categoria de política quando cumpre os requisitos da experiência original grega. Se permanecer na necessidade em detrimento da liberdade, será melhor chamar-lhe acção económica, social, cultural ou religiosa. E a verdade é que tem permanecido na necessidade. Coloca-se a política (o interesse de todos) ao serviço da economia (o interesse de alguns) e promovem-se leis (o garante da equidade) ao serviço da necessidade de terceiros. A política reduzida a fórmulas e teorias decapantes do sentido público, a antítese da liberdade e da pluralidade.»

Lá para o fim, João Eduardo Ferreira refere «Jaime pensava que as máscaras eram assuntos da psicanálise e do teatro. Hoje, na sociedade democrática, cada um devia responder pela própria identidade, embora soubesse bem que todos possuíam dois lados, em permanência. E sem poder estabelecer-se um gradiente definitivo entre os polos opostos também era impossível alguém expressar-se por ambos em simultâneo. Daí as máscaras, daí o teatro.»

Confusos? Afinal, quem seremos nós sem os outros?

[E, agora, ficou com vontade de ler o livro? Então porque não subscrevê-lo mesmo antes de ser imprimido? Fica mais barato e recebe-o assinado e tudo! Abraço forte!]

http://www.bythebook.pt/index.php?/novidades/-novidade-/

jef, fevereiro 2017

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Sobre o filme «Morangos Silvestres» de Ingmar Bergman,1957












Recuperar o senso da morte.
O que fazer quando nos apercebemos que o tempo se escoa sem deixar rasto, retirando os ponteiros aos relógios, os cadáveres aos esquifes, o senso aos poucos minutos que nos restam? «Morangos Silvestres» possui uma tal modernidade que coloca sobre a certeza mais duvidosa da humanidade o riso infalível da melhor juventude: fazer-se à estrada ou viajar de avião, ser histérico ou ser católico, rejeitar a amizade de um filho ou guardar o remorso de uma escolha que já se tornou inviável? O tempo, contudo, move-se na direcção certa da solidão, do egoísmo e da morte. O tempo, contudo, pode ser detido pelo aroma dos morangos, pela probabilidade de uma viagem a Itália, pelo som inesperado de uma serenata, pela amizade de quem nos ajuda a fazer as malas e partir. «Morangos Silvestres» vale mais do que 1.000 homílias dominicais, 1.000 sessões de psicanálise, 1.000.000 de discursos dos (actuais) políticos! Louvado sejas, Ingmar Bergman! Que o futuro esteja connosco!

jef, fevereiro 2014


«Morangos Silvestres» (Smulltronstället) de Ingmar Bergman. Com Victor Sjöström, Ingrid Thulin, Bibi Andersson, Gunnar Björnstrand, Jullan Kindhall. Suécia, 1957. P/B, 91 min.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Jano


 Jano

Na morte, a saudade, com o tempo,
transforma-se em rigor de ausência,
essa espécie de rigidez fúnebre a que outros,
mais voluntariosos, dão o nome de
esquecimento.

Jano, Senhor de Lácio, sabe-o,
tem ele duas faces. Uma olhando para a frente,
outra para trás. Vive na transição.
Sabe escolher. Vive em Janeiro. Gosta do começo eterno.
Também de portas. Não gosta de trancas.
Viaja de barco e toma decisões.

Jano, Senhor de Lácio, não teme o fim.
Tem ele duas máscaras. Uma de longas barbas,
outra imberbe. Cunha moedas
de duas faces também,
que podem ser atiradas ao ar
mas nunca encaradas,
olhos nos olhos.

Jano, senhor de Lácio, reconhece-o,
vive em paz sem se encarar.
Toma o facto por natureza de sabedoria.
O esquecimento e a saudade também
não se chegam, não se tocam,
mas viajam, pacíficos,
pelos ciclos findos das noites e dos dias.


jef, fevereiro 2017

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Sobre o filme «Fruitvale Station – A Última Paragem» de Ryan Coogler, 2013


















Cinema funcional.
«Fruitvale Station» é a prova de que as Artes (tal como as Ciências e os Ofícios) são o princípio que melhor define a humanidade. São a prova mas também a garantia do seu futuro. Porque têm uma função. Este filme é exemplo disso. Sabemos o que vamos ver, conhecemos o final, sabemos que a realidade mais dura e injusta está no seu fundamento e que esse fundamento é político. É realizado para mover consciências privadas e públicas, fingindo a realidade. E no entanto, o Cinema todo está lá dentro, nesse encantamento emotivo de pessoas, imagens e sons, que dificilmente passa sem a mestria de colocar a câmara frente ao rosto dos actores, no meio do movimento dos seus corpos, oferecendo ao espectador a realidade desse fingimento, provocando a emoção, dando-lhe a causa, erguendo a sua função como bandeira. Em retórica chamar-se-ia «pathos» a essa capacidade comovedora de transmitir ideias. Contudo, a realidade está aqui, nesse 1º de Janeiro de 2009, na Fruitvale Station, reservando-a na nossa emoção, na nossa consciência. Para sempre.

jef, março de 2014

«Fruitvale Station – A Última Paragem» de Ryan Coogler. Com Michael B. Jordan, Melonie Diaz, Octavia Spencer, Kevin Durand, Chad Michael Murray, Ahna O`Reilly, Ariana Neal. EUA, 2013, Cores, 85 min.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Sobre o filme «Manchester by the Sea» de Kenneth Lonergan, 2016


















A metáfora do gelo.
A neve que cai sobre o porto e o mar de Manchester-by-the-Sea, Massachussetts USA, é muito poético. O frio respira sobre as gaivotas e sobre o drama de Kenneth Lonergan. Tolhe os movimentos, amplia o sofrimento. Anuncia a tragédia de Lee Chandler (Casey Affleck), tragédia essa anunciada pelo fogo nocturno. A estética do gelo a cobrir a composição de um homem desesperado, de uma família amputada. Um cadáver por enterrar devido ao solo impenetrável, um treino de hockey no gelo que termina em agressão, a entrada dos prédios obstruída pela neve. A catarse quase anti-climax, quase humorística, de Patrick (Lucas Hedges) quando descobre o congelador a transbordar de hirtas pernas de frango.

Mas não haverá no filme um quanto exagero de figuras de estilo?
Tanto gelo, tantas lutas no mesmo bar, tantas portas de carro a fechar, tanto olhar interior e estático de Casey Affleck que acaba por entregar toda a composição dramática a Lucas Hedges, o verdadeiro herói do filme.

Tanto adagio de Albinoni e Massenet, tanta perfeição de Haendel…

Tanto flashback que, no início, confunde a progressão da história…

E porquê tão pouca Michelle Williams?

Um filme bonito e terno que, no entanto, faz suspirar pelos melodramas simples e fulcrais de Douglas Sirk, John Huston, Elia Kazan, Nicholas Ray, Otto Preminger, Clint Eastwood… «Nebraska» de Alexandre Payne (2013), «Paris Texas» de Wim Wenders (1984), «Uma História Simples» de David Lynch (1999)…

jef, fevereiro 2017

«Manchester by the Sea» de Kenneth Lonergan. Com Casey Affleck, Michelle Williams, Kyle Chandler, Lucas Hedges, Gretchen Mol. EUA, 2016, Cores, 137 min.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Sobre o filme «Vício Intrínseco» de Paul Thomas Anderson, 2015


















Três vivas para Katherine Waterston (e a sua ‘Shasta Fay Hepworth’).
Se não se incomoda com filmes meio-policiais e fins pouco ortodoxos; se gostou de «A Dama de Xangai» (Orson Welles, 1947), «Festim Nu» (David Cronenberg, 1991), «Inland Empire» (David Lynch, 2006) ou dos policiais truncados com que a Nouvelle Vague homenageia o cinema americano, então vá ver o filme. Mas se o enerva ver Joaquin Phoenix (‘Doc’ Sportello) a representar o papel que ele anda a treinar há alguns anos, continuará enervado. Porém, existe uma enormíssima vantagem. A cada uma das cenas encadeadas em que Joaquin Phoenix fuma mais um charro, revira os olhos ou se despenteia cuidadosamente, dá entrada à interpretação de mais um extraordinário actor / actriz. E são muitos! A cada nova cena parece que Phoenix desaparece para dar lugar ao outro. Generosidade maior de um grande actor, apesar de tudo. Nesse ponto, o filme brilha nas três magníficas cenas em que o actor contracena com Katherine Waterston (a sua desaparecida Shasta Fay Hepworth), sublinhando o início, o meio e o epílogo do filme. O filme está ganho! Mas temos mais. Temos ainda a particularíssima voz off da particularíssima harpista / cantora Joanna Newson (Sortilège), a banda sonora sinfónica de Jonny Greenwood e, claro, duas canções de Neil Young. O filme está longe de ser o culto que andam a apregoar mas só para apreciar alguns dos diálogos que por ali se ouvem, já valeu a pena.

jef, fevereiro 2015


«Vício Intrínseco» (Inherent Vice) de Paul Thomas Anderson .Com Joaquin Phoenix, Josh Brolin, Owen Wilson, Katherine Waterston, Reese Witherspoon, Benicio del Toro, Jena Malone, Joanna Newsom e Martin Short. EUA, 2015, Cores, 148 min

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Sobre o filme «O Jogo da Imitação» de Morten Tyldum, 2014


















A hipérbole do drama
Ao conhecermos a tragédia de Alan Turing, o matemático inglês que desmontou a brutal máquina de códigos nazi Enigma através do seu computador Christopher, ajudando a travar o tempo ignóbil da Segunda Grande Guerra, e o assassinato consequente de milhões de inocentes, temos a noção de como a humanidade lida confortavelmente com a injustiça pura. A injustiça na esfera pública e política, a injustiça no plano privado e identitário.

Mas será possível fazer um filme consistente sobre um herói maior e essa tal injustiça humana, abusando cinematograficamente de diálogos hiperbólicos (e voz off), de múltiplos flashbacks, da saturação fotográfica da luz-contraluz torneando cantos e recantos, da repetida fleuma britânica de Benedict Cumberbatch (que não consegue fugir ao Sherlock Holmes), da «certinha» e circunstancial banda sonora de Alexandre Desplat? Espantosamente parece-me que sim: o filme tem de ser visto!

O realizador fá-lo com uma nítida intensão política, alertando mentalidades com extensas notas finais (hiperbólicas), recordando a História opaca, hiperbolicamente atroz. Já que o drama como figura de retórica é hiperbólico, os gregos sabiam-no.

(Sem esquecer a geometria, com os seus cones atravessados por planos e as linhas curvas a quase tocarem dramaticamente as assímptotas).

Nota: este texto, segundo o meu prontuário ortográfico, saiu cheio de exageros estilisticos, acumulando pleonasmos adjectivantes. Peço desculpa!

jef, janeiro 2015

«O Jogo da Imitação» (The Imitation Game) de Morten Tyldum. Com Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode. EUA/Grã-Bretanh, 2014, Cores, 114 min.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Sobre o filme «O Pequeno Quinquin» de Bruno Dumont, 2014


















Zona Interdita
É melhor preparar-se e fazer um xixi prévio. Durante 3 horas e 17 minutos poderá colocar em causa tudo o que pensa sobre a comédia no cinema, os seus limites, a sua ética, a zona de interditação. Os esgares, os trejeitos, os tropeções e tombos, os rictos e tiques, os defeitos físicos, mentais, raciais, religiosos, de pronúncia, de preconceito, de conceito. Enfim, as palalhaçadas. Conhece Charlie Chaplin, Buster Keaton, Jerry Lewis, Peter Sellers, o príncipe Toto, Jacques Tati, Woody Allen, Nanni Moretti, António Silva, Vasco Santana…? Então conhece o jogo da pantomima. Neste filme o caso é extremo: parece brincar com tudo em longos planos muito claros, em planos muitos próximos olhando lentamente o olhar de pessoas e animais. Não é uma comédia de Verão com crianças, não é uma comédia policial com cadáveres inexplicados. É uma comédia estética que toca os hipotéticos limites do riso para, exactamente, colocar a consciência à frente desses mesmos limites, incluindo a fronteira cómica da tragédia. É para isso que a arte maior é feita. Vá, não se encolha e ria, os filmes também foram feitos para isso, mas reconheça: todos nós guardamos meia dúzia de defeitozinhos de estimação.

[E se houvesse dúvidas de que certos temas só podem ser tocados pela Estética, reconheça-se a beleza da cena final quando chegam da visita de pêsames e os braços-abraços se confundem e, em plano mais distante, o tenente Carpentier e Dany Lebleu enfrentam-se num estranho braço de ferro].

jef, fevereiro 2015

«O Pequeno Quinquin» (P'tit Quinquin) de Bruno Dumont. Com Alane Delhaye, Lucy Caron, Bernard Pruvost, Philippe Jore, Philippe Peuvion, Lisa Hartmann, Julien Bodard, Corentin Carpentier. França, 2014, Cores, 197 min.