domingo, 21 de março de 2021

Sobre o filme «Comboio Mistério» de Jim Jarmusch, 1989

 















Esta é uma grande e amável comédia de Jim Jarmusch sob o signo de Memphis, Tennessee, cidade decadente e soturna mesmo à luz do Sol, que se amplia ao som da música de negros a ser tocada por brancos, de Graceland e Elvis Presley, quando a radio local termina a transmissão de “Domino” de Roy Orbison e começa a tocar “Blue Moon” do Rei. Nesse momento e mais tarde, quando se ouve um disparo de uma pistola matinal, as três histórias reúnem-se nos quartos de um mesmo motel: «Far from Yokohama», a do jovem casal de japoneses (Masatoshi Nagase e Yûki Kudô) que se deslumbram com a decrepitude de Memphis e se entretêm a esgrimir argumentos pro e contra Elvis ou Carl Perkins; «A Ghost», quando a recém-viúva italiana (Nicoletta Braschi), que aguarda o avião para Roma, que voará apenas no dia seguinte, partilha o quarto com a recém-separada Dee Dee (Elizabeth Bracco); e «Lost in Space» a de um cunhado barbeiro (Steve Buscemi) e do amigo Will (Rick Aviles) que vêm tirar do bar o bêbado Johnny (Joe Strummer) e, naturalmente, as coisas não correm tão bem como o esperado. 

Todas essas histórias sob a égide, na recepção do motel, de um maravilhoso recepcionista, de um extraordinário paquete (Screamin' Jay Hawkins e Cinqué Lee).

Todas as histórias sob a égide da imaginação carinhosamente desenfreada mas de clássica e ágil narrativa de um grupo de amigos: Jim Jarmusch, John Lurie, Marc Ribot, Rufus Thomas, Tom Waits, Nicoletta Braschi, Steve Buscemi…


jef, março 2021

«Comboio Mistério» (Mistery Train) de Jim Jarmusch. Com Masatoshi Nagase, Yûki Kudô, Screamin' Jay Hawkins, Cinqué Lee, Rufus Thomas, Jodie Markell, William Hoch, Pat Hoch, Joshua Elvis Hoch, Reginald Freeman, Nicoletta Braschi, Elizabeth Bracco, Sy Richardson, Tom Noonan, Stephen Jones, Lowell Roberts, Sara Driver, Richard Boes, Calvin Brown, Joe Strummer, Rick Aviles, Steve Buscemi, Vondie Curtis-Hall, Royale Johnson, Winston Hoffman, Tom Waits (voz). Argumento: Jim Jarmusch. Fotografia: Robby Müller. Música: John Lurie, Marc Ribot, Elvis Presley, Roy Orbison, Car Perkins. Guarda-roupa: Carol Wood. EUA, 1989, Cores, 106 min.


sábado, 20 de março de 2021

Sobre o livro «Crónicas Americanas» (Motel Chronicles) de Sam Shepard, Difel 1986 (1982). Tradução de José Vieira de Lima




 











Alguém pára, escuta atentamente e olha para o céu com desvelo enquanto passa um B-54. Diz o autor:

«Depois, satisfeitos, os seus olhos desciam à terra e ao trabalho. Parecia-me estranho que um homem que tanto amava o céu, pudesse também amar assim a terra.»

 

Este é um livro de histórias, de crónicas e poemas lassos, de apontamentos sobre sonhos e traumas, sobre memórias reais e ficcionadas. Sobre uma América fecunda, melancólica, ancorada entre a Grande Guerra, a nostalgia de uma juventude longínqua e o deserto imenso. Um deserto inóspito mas acolhedor que se coloca equidistante das cidades. São Francisco e Los Angeles. 

O dia exacto e o local inscritos no final de cada texto faz-nos regressar à realidade americana e coloca-nos frente à verdade que ensopa a ficção.

É impossível que o penúltimo texto (29/9/80. San Francisco, Ca.), onde três personagens acompanham, anseiam, esperam a difícil recuperação de uma mulher de cabelos grisalhos, não seja escrito sobre uma mãe.

Ou como no outro mais longo texto (14/4/82. Bluewater, algures no Novo México / 18/4/82. Barstow, Ca.) onde quatro personagens percorrem sonâmbulas ou insones as histórias oníricas que vão ensombrando ou completando o percurso de uma viagem pelas estradas americanas.

Faz-me lembrar muito as personagens desgarradas e as viagens eternamente prometidas de John Steinbeck. Como se Sam Shepard desejasse ancorar cada pedaço da sua (e porque não da nossa) memória com uma pedra do deserto, uma berma de estrada ou um fio de horizonte cravado no Sul.

Este é um livro que muito acarinho, que muito me acarinha e emociona. A arte e a literatura não têm pátria ou, melhor, entregam-nos no coração todas as pátrias. Comprado em lisboa em 1988, na Feira do Livro.


jef, março 2021

segunda-feira, 15 de março de 2021

Sobre o livro «As Primeiras Coisas» de Bruno Vieira Amaral, Quetzal 2013










 







«A verdade dos factos, conceito que nem os juristas usam sem que um sorriso lhes traia o pensamento oculto, é a camada mais desinteressante da existência, a coutada vitalícia das pessoas sem imaginação.»

É uma espécie de aviso que o escritor coloca a meio da primeira parte, na qual Bruno, o narrador, regressa a casa da mãe no Bairro Amélia, Margem Sul, após o casamento falhado com Sara. Depois de ter reparado nos versos de Pablo Neruda atirados para o contentor do lixo.

Aí, também sabemos da existência de dona Cremilde, muito velha, enérgica, ágil, enxuta de carnes, especialista em féretros e desgraças, acorrendo pela noite aos gritos de uma explosão funesta que, afinal, ó desilusão!, se revela o simples enterro do entrudo promovido por alguns foliões tardios.

Na segunda parte, alfabética, na entrada pela letra C, sabemos que dona Cremilde chegou na ponte aérea vinda de Angola, tinha uma irmã que morreu num desastre de avião, e mais duas irmãs: Lena com escassez de dentes e Elvira que não confiava em elevadores. Cremilde teve uma grande paixão.

Tudo se passa há 30 anos, ou talvez antes, ou talvez depois. Toda a memória contida no percurso de uma bicicleta, ou de um autocarro, levada pelas fotografias de um improvável e fantástico Virgílio. Este tem também direito a uma entrada na letra V.

A segunda parte, de A a Z, inclui uma circunstancial descrição do Bairro Amélia sob os auspícios da «Meteorologia», uma lista narrativa em «Mortos», outra em «Nomes», um inventário por «Sons». Apenas «Paula (a maior puta do Bairro Amélia) não tem direito a narrativa. Apenas uma nota breve: «As putas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia.». Devo acrescentar que esta nota é um das 95 que preenchem grande parte do rodapé das 300 páginas do livro, representando um novo e importante capítulo.

Porém, o mais inesperado é a agilidade da escrita, a sua erudição sistematicamente justificada, essa espécie de resumo ou fusão, talvez mesmo conclusão, da literatura portuguesa (que eu conheço), onde todas as histórias se encontram cruzadas e truncadas. Como acontece nas recordações e nos sonhos.

Um livro que é exactamente sobre a essência da memória que se vai apagando, num injusto tributo ao esquecimento do passado que devia ser perene. É uma espécie de epitáfio vibrante mas melancólico perante a vida que os dias deixam para trás. Contudo, e não menos vibrante, é um livro que nos faz recuperar as linhas lidas em outros livros, as vidas vistas em outros dias.

Rejeita o “realismo”, por este não conter uma certa fantasia mais real que um “facto”, como rejeita o “romantismo” por na comédia (e na tragédia) enraizar o modo de subtrair e expor a deriva interior das mil personagens e das suas histórias. Mais “naturalista” (mas também hesito) nesse modo de tão bem sacar a célula distintiva de cada grupo, de cada cultura, de cada expressão.

E se autores recordo, porque a memória dos livros é também nossa memória real, são eles António Lobo Antunes de «Memória de Elefante» ou José Saramago de «Todos os Nomes» (poderei colocá-los juntos aqui?), pelo olhar filigrânico e contemplativo sobre os outros. O modo cronista de Trindade Coelho («In Illo Tempore»), de cronovelema de Mário de Carvalho, de justiça emocional de Rui Cardoso Martins («Levante-se o Réu»), de Mário Zambujal («Crónica dos Bons Malandros«), de Dinis Machado («O Que diz Molero»)… Esse lado de compreender a dor, o abandono, a tristeza e a morte, inefáveis, de Maria Judite de Carvalho («Tanta Gente Mariana»), Maria Ondina Braga («Estação Morta») ou Lídia Jorge («O Vento Assobiando nas Gruas»). Enfim… essa forma tão característica de expurgar a solidão inelutável de Bernardo Soares.

Um livro circular de contos para crianças insones e sem medo da morte que nos faz voltar sempre à primeira página para reconhecer o lastro furioso que deixam em nós «As Primeiras Coisas».

Com certos livros apetece-me mesmo parecer exagerado!


jef, março 2021

 

 

 

sexta-feira, 5 de março de 2021

Sobre o disco «Terezín / Theresienstadt» com Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg, Christian Gerhaher, Daniel Hope, Deutsche Grammophon, 2007.



 






Tomemos o disco com toda a brutalidade que ele contém. A violência real é parte indissociável da obra, é o seu fundamento e fulcro, sustenta o ónus artístico. Nela reside a força cultural, o seu poder político. Antes de mais, «Terezín / Theresienstadt» assume o reflexo mais puro da história da humanidade já que os compositores representados viveram a última parte da sua criatividade no campo de concentração nazi de Terezín, a 60 km da cidade de Praga, onde foi encarcerada a elite cultural judaica. 

Quase todos foram, mais tarde, gaseados em Auschwitz. Compuseram, tocaram, alegraram, fizeram teatro musicado e, depois, foram mortos.

Se, no início, a irreprimível vocação criativa dos músicos se praticava de forma clandestina, entre a mais horrível exaustão dos trabalhos forçados, a criminosa hipocrisia nazi logo descobriu vantagens na sua legalização. Transformando-a em arte de palco. Simultaneamente, divertia os condenados à morte e bem servia a propaganda do regime. Foi aí, na «maquilhada» Theresienstadt, uma espécie de jardim-exposição de judeus, que os nazis levaram a delegação da Cruz Vermelha para provar a «felicidade» em que vivia a população judaica. 

É neste contexto programático que Anne Sofie von Otter encontra a razão deontológica para aceitar um projecto único, dando oportunidade para explorar um mundo musical que é particularmente grato à heterodoxia musical da meio-soprano. Entre o lamento e a canção de embalar, abre-se um estranho mundo de cabaret, opereta e vaudeville, que pontua com maquiavélica alegria um mundo soterrado em noite e nevoeiro.

É este o maravilhoso e perverso universo, abruptamente truncado pelo gás, dos músicos aqui representados: Ilse Weber, Karel Švenk, Adolf Strauss, Martin Roman, Hans Krása, Carlo Sigmund Taube, Viktor Ullman, Pavel Haas. Um mundo que termina com a sonata muito particular para violino solo composta por Erwin Schulhoff, morto no campo de concentração de Wülzburg, em 1942.

Um álbum que, se apenas for escutado pela sua extraordinária beleza, pelo encanto e terna nostalgia, até pelo humor, não servindo a reflexão sobre a origem do sofrimento humano, então, estará certamente a prolongar, de modo póstumo, o incompreensível horror do holocausto.

jef, março 2021

quarta-feira, 3 de março de 2021

Sobre o livro «Um, Ninguém e Cem Mil» de Luigi Pirandello, Cavalo de Ferro, 2007. Tradução de Margarida Periquito.

 




















«Eu queria estar só de um modo totalmente insólito, novo.

(…)

Era deste modo que eu queria estar só. Sem mim. Quero dizer, sem aquele «mim» que eu conhecia, ou que julgava conhecer. Só, com um determinado estranho que eu já sentia obscuramente que não poderia afastar de mim, e que era eu próprio: o estranho inseparável de mim


Está cansado do modo como os outros o vêem? Desespera-se com a construção que o mundo em redor fez de si? Anda fatigado das cem mil formas como tem de lidar com os cem mil outros? Não desespere. Não precisa de despir o fato-de-treino que traz por casa. Dar um preparo no cabelo. Um retoque na maquiagem.

Basta ler «Um, Ninguém e Cem Mil» e entender como é possível oferecer uma nova personalidade ao nosso ser (ou ente), ao nosso nome (ou à respectiva imagem). Tal como fez o suposto usurário (ou filho de usurário) Vitangelo Moscarda ou o doméstico e amorfo Gengè, esposo da amabilíssima Dida, dono da amorosa cadelinha Bibì.

Apenas porque, um dia, ele foi confrontado com a evidência de um ligeiro pendente do seu nariz para direita. Facto em que nunca havia reparado. Nem o nariz do espadachim romântico Cyrano de Bergerac, ou aquele encontrado pelo barbeiro Ivan Iakovlevitch, de Gógol, tiveram um poder tão determinante sobre a índole social de cada um.

Luigi Pirandello usa essa sua fundamental capacidade de mostrar as cem mil variações ao “Eu”, encaminhando-o como personagem para que encontre (ou desencontre) o seu próprio autor (ou actor).

Não existe comédia mais lúcida, mais ácida, mais desabrida, e tão bem escrita e descrita sobre o modo psicológico e social como cada qual sempre poderá tropeçar, escorregar e cair na imagem que construiu do próprio nariz.

jef, março 2021