sábado, 20 de março de 2021

Sobre o livro «Crónicas Americanas» (Motel Chronicles) de Sam Shepard, Difel 1986 (1982). Tradução de José Vieira de Lima




 











Alguém pára, escuta atentamente e olha para o céu com desvelo enquanto passa um B-54. Diz o autor:

«Depois, satisfeitos, os seus olhos desciam à terra e ao trabalho. Parecia-me estranho que um homem que tanto amava o céu, pudesse também amar assim a terra.»

 

Este é um livro de histórias, de crónicas e poemas lassos, de apontamentos sobre sonhos e traumas, sobre memórias reais e ficcionadas. Sobre uma América fecunda, melancólica, ancorada entre a Grande Guerra, a nostalgia de uma juventude longínqua e o deserto imenso. Um deserto inóspito mas acolhedor que se coloca equidistante das cidades. São Francisco e Los Angeles. 

O dia exacto e o local inscritos no final de cada texto faz-nos regressar à realidade americana e coloca-nos frente à verdade que ensopa a ficção.

É impossível que o penúltimo texto (29/9/80. San Francisco, Ca.), onde três personagens acompanham, anseiam, esperam a difícil recuperação de uma mulher de cabelos grisalhos, não seja escrito sobre uma mãe.

Ou como no outro mais longo texto (14/4/82. Bluewater, algures no Novo México / 18/4/82. Barstow, Ca.) onde quatro personagens percorrem sonâmbulas ou insones as histórias oníricas que vão ensombrando ou completando o percurso de uma viagem pelas estradas americanas.

Faz-me lembrar muito as personagens desgarradas e as viagens eternamente prometidas de John Steinbeck. Como se Sam Shepard desejasse ancorar cada pedaço da sua (e porque não da nossa) memória com uma pedra do deserto, uma berma de estrada ou um fio de horizonte cravado no Sul.

Este é um livro que muito acarinho, que muito me acarinha e emociona. A arte e a literatura não têm pátria ou, melhor, entregam-nos no coração todas as pátrias. Comprado em lisboa em 1988, na Feira do Livro.


jef, março 2021

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