quarta-feira, 3 de março de 2021

Sobre o livro «Um, Ninguém e Cem Mil» de Luigi Pirandello, Cavalo de Ferro, 2007. Tradução de Margarida Periquito.

 




















«Eu queria estar só de um modo totalmente insólito, novo.

(…)

Era deste modo que eu queria estar só. Sem mim. Quero dizer, sem aquele «mim» que eu conhecia, ou que julgava conhecer. Só, com um determinado estranho que eu já sentia obscuramente que não poderia afastar de mim, e que era eu próprio: o estranho inseparável de mim


Está cansado do modo como os outros o vêem? Desespera-se com a construção que o mundo em redor fez de si? Anda fatigado das cem mil formas como tem de lidar com os cem mil outros? Não desespere. Não precisa de despir o fato-de-treino que traz por casa. Dar um preparo no cabelo. Um retoque na maquiagem.

Basta ler «Um, Ninguém e Cem Mil» e entender como é possível oferecer uma nova personalidade ao nosso ser (ou ente), ao nosso nome (ou à respectiva imagem). Tal como fez o suposto usurário (ou filho de usurário) Vitangelo Moscarda ou o doméstico e amorfo Gengè, esposo da amabilíssima Dida, dono da amorosa cadelinha Bibì.

Apenas porque, um dia, ele foi confrontado com a evidência de um ligeiro pendente do seu nariz para direita. Facto em que nunca havia reparado. Nem o nariz do espadachim romântico Cyrano de Bergerac, ou aquele encontrado pelo barbeiro Ivan Iakovlevitch, de Gógol, tiveram um poder tão determinante sobre a índole social de cada um.

Luigi Pirandello usa essa sua fundamental capacidade de mostrar as cem mil variações ao “Eu”, encaminhando-o como personagem para que encontre (ou desencontre) o seu próprio autor (ou actor).

Não existe comédia mais lúcida, mais ácida, mais desabrida, e tão bem escrita e descrita sobre o modo psicológico e social como cada qual sempre poderá tropeçar, escorregar e cair na imagem que construiu do próprio nariz.

jef, março 2021



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