Tomemos
o disco com toda a brutalidade que ele contém. A violência real é parte
indissociável da obra, é o seu fundamento e fulcro, sustenta o ónus artístico.
Nela reside a força cultural, o seu poder político. Antes de mais, «Terezín /
Theresienstadt» assume o reflexo mais puro da história da humanidade já que os
compositores representados viveram a última parte da sua criatividade no campo
de concentração nazi de Terezín, a 60 km da cidade de Praga, onde foi
encarcerada a elite cultural judaica.
Quase
todos foram, mais tarde, gaseados em Auschwitz. Compuseram, tocaram,
alegraram, fizeram teatro musicado e, depois, foram mortos.
Se, no início, a irreprimível vocação criativa dos músicos se praticava de forma clandestina, entre a mais horrível exaustão dos trabalhos forçados, a criminosa hipocrisia nazi logo descobriu vantagens na sua legalização. Transformando-a em arte de palco. Simultaneamente, divertia os condenados à morte e bem servia a propaganda do regime. Foi aí, na «maquilhada» Theresienstadt, uma espécie de jardim-exposição de judeus, que os nazis levaram a delegação da Cruz Vermelha para provar a «felicidade» em que vivia a população judaica.
É neste contexto programático que Anne Sofie von Otter encontra a
razão deontológica para aceitar um projecto único, dando oportunidade para
explorar um mundo musical que é particularmente grato à heterodoxia musical da
meio-soprano. Entre o lamento e a canção de embalar, abre-se um estranho mundo
de cabaret, opereta e vaudeville, que pontua com maquiavélica alegria um mundo
soterrado em noite e nevoeiro.
É
este o maravilhoso e perverso universo, abruptamente truncado pelo gás, dos
músicos aqui representados: Ilse Weber, Karel Švenk, Adolf Strauss, Martin
Roman, Hans Krása, Carlo Sigmund Taube, Viktor Ullman, Pavel Haas. Um mundo que
termina com a sonata muito particular para violino solo composta por Erwin
Schulhoff, morto no campo de concentração de Wülzburg, em 1942.
Um álbum que, se apenas for escutado pela sua extraordinária beleza, pelo encanto e terna nostalgia, até pelo humor, não servindo a reflexão sobre a origem do sofrimento humano, então, estará certamente a prolongar, de modo póstumo, o incompreensível horror do holocausto.
jef,
março 2021
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