segunda-feira, 31 de maio de 2021

Sobre o filme «As Consequências do Amor» de Paolo Sorrentino, 2004



















Afinal, a tragédia é uma comédia. Quase todos os filmes de Sorrentino o são, mas este é mais silencioso, mais apurado, mais simples. Com menos espalhafato narrativo e cenográfico que os demais.

Titta Di Girolamo (Toni Servillo) é um homem elegante, discreto, solitário, divorciado que vive num hotel na Suíça e paga a tempo e horas o seu quarto. A rotina é uma praxe. O segredo que guarda também. O dever de seriedade ajuda-o a manter a tal rotina vai para dez anos. Não passa despercebido às mulheres: a empregada de quarto admira-o secretamente. Sente-se atraído por Sofia (Olivia Magnani), a empregada do bar. E ela também por ele. Mas parece não lhe passar cartão. Até que um dia, Titta escreve num pequeno cartão: “projecto de futuro: não subestimar as consequências do amor”. E faz um desfalque.

Essencialmente, é a seriedade e a elegância extremas do actor Toni Servillo que transformam a tragédia em comédia (e vice-versa), dando um cariz “Buster Keaton” a Titta Di Girolamo. O seu desejo é o seu isolamento. A solidão é talvez o mote para o seu calmo desespero.

Tem um contrato que não pode quebrar. Tem um irmão surfista com quem não se dá. Tem uma família que não quer saber dele. Tem um melhor amigo que trabalha na reparação das linhas de alta tensão nos Alpes, e que não vê há muito.

Para ele, o amor é inevitável e as suas consequências não as poderá subestimar.

É, afinal, um filme perversamente melancólico sobre a estrutura de uma das organizações mais sinistras de Itália. E essa melancolia amorosa tudo deve à representação de um actor: Toni Servillo.

 

jef, maio 2021

«As Consequências do Amor» (Le Conseguenze dell'Amore) de Paolo Sorrentino. Com Toni Servillo, Olivia Magnani, Adriano Giannini, Antonio Ballerio, Gianna Paola Scaffidi, Nino D'Agata, Vincenzo Vitagliano, Diego Ribon, Gilberto Idonea, Giovanni Morosso, Giselda Volodi. Argumento: Paolo Sorrentino. Fotografia: Luca Bigazzi. Música: Pasquale Catalano. Produção: Francesca Cima, Angelo Curti. Itália, 2004, Cores, 100 min.

 

sábado, 29 de maio de 2021

Sobre o filme «Dias Selvagens» de Wong Kar Wai, 1990





























Wong Kar Wai é o realizador que filma a penumbra das horas, coisa a que os dicionários costumam dar o nome de nostalgia. Quanto tempo dura um minuto? É muito, é pouco tempo? Dará para ser guardada na memória para sempre?

Assim o diletante e desocupado Yuddy (Leslie Cheung) mede o olhar sobre o mostrador do relógio. É este o símbolo (ou o estigma) do filme que perseguirá Yuddy até ao final, martirizado pelo amor apaixonado de duas mulheres: Su Li-zhen (Maggie Cheung) e Leung Fung-ying (Carina Lau) mas também pelo desamor de duas mães, a adoptiva (Rebecca Pan) e a biológica (Tita Muñoz). E é nesse desacerto que ele parte para as Filipinas.

No entanto, uma certa história é confidenciada em desespero de causa e paixão por Su a um polícia de giro nocturno, Tide (Andy Lau), que se torna seu complacente ouvinte. Mas também este parte, agora como marinheiro, para as Filipinas, levando consigo a história escutada de um pássaro sem patas que só poderia poisar para morrer. Exactamente como o amor.

Será a história que irá aproximar Yuddy e Tide quando se encontram, desamparados, construindo uma irmandade baseada na memória partilhada em diferido.

A belíssima fórmula estética de Wong Kar Wai fá-lo perseguir esta soberba nostalgia decadente, mas quase renascentista, pelos filmes seguintes. Com ele transportará o modo novelesco de fazer saltar as personagens no tempo e no espaço, deixando pontas de ligação entre os filmes, guardando a imagem do amor impossível e das coincidências improváveis assentes no impressionante sotaque romântico.

Foi ele que nos gravou na memória os minutos de beleza dos actores Maggie Cheung e Tony Chiu Wai. Também a fotografia de Christopher Doyle e a inesquecível flutuação fatal e melancólica de Nat King Cole ou Xavier Cugar.

Nunca o suor, as lágrimas e a chuva das noites quentes de Hong Kong foram filmados de forma tão comovente.

Wong Kar Wai ensina-nos a nunca mais esquecer estes 90 minutos de filme.


jef, maio 2021

«Dias Selvagens» (Days of Being Wild / Ah Fei jing juen) de Wong Kar Wai. Com Leslie Cheung, Carina Lau, Andy Lau, Rebecca Pan, Jacky Cheung, Tony Chiu Wai, Tita Muñoz. Argumento: Jeffrey Lau e Wong Kar Wai. Fotografia: Christopher Doyle. Música: Terry Chan. Produção: Candy Leung, Alan Tang, Rover Tang, Wing-Kwong Chan. Hong Kong, 1990, Cores, 90 min.

 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Sobre o filme «Ao Sabor da Ambição» de Wong Kar Wai, 1988



 























Mesmo antes de entrar na sala, torci o nariz ao título gongórico em português, «Ao Sabor da Ambição», perante a simplicidade do título inglês «As Tears Go By».

No entanto, o realizador desde este que é o seu primeiro filme mostra uma faculdade especial de encantamento narrativo que geralmente é oferecida sobretudo aos pintores. Com ele, tudo é mostrado através de um lado estético, ponderado, sublimado, quase silenciado perante a luz e a banda sonora, quer ela seja musical ou de efeitos ruidosos histriónicos.

E é esta capacidade de silenciar nos momentos emocionalmente mais agudos que cala fundo no espectador e deixa o filme próximo do literário.

E mesmo que o título em português não tenha nada a ver com o filme (que não tem) até lhe fica a matar a um pulp fiction de acção e porrada entre os mafiosos nas ruas de Mongkok, em Hong Kong, em jeito de Kurosawa, Scorsese ou Tarantino. Há muito sangue, ruídos secos, incríveis sobreviventes e um humor inicial inabalável.

Porém, logo sabemos que vai haver um romance inevitável mas impossível entre os dois primos, a bela Ngor (Maggie Cheung) e o chefe de clã, Wah (Andy Lau), pois este tem o dever de protecção, de lealdade e fraternidade perante o tolo “irmão” Fly (Jacky Cheung). E, como será lógico, o caldo irá entornar-se.

E, pelo meio, até poderíamos antever a projecção de um teledisco de longa duração ao som da canção topgun «Take My Breath Away» dos Berlin, agora em versão chinesa. Contudo, é precisamente nessa altura que assistimos a esse beijo, tão terno quanto ardente, na cabine telefónica, que vai levar a história e o sofrimento dos amantes até outra maravilhosa cena, a das lágrimas de Ngor na estação rodoviária.

Só um pedregunho face à literatura e à pintura ficará indiferente a uma história tão divertida e comovente. Tão dramaticamente singular, tão bela. Tão bem contada.


jef, maio 2021

«Ao Sabor da Ambição» (As Tears Go By / Wong Gok ka moon) de Wong Kar Wai. Com Andy Lau, Maggie Cheung, Jacky CheungAlex Man, Ronald Wong, To-Hoi Kong, Ching Wai, Kau Lam, William Chang, Ang Wong, Pa-Ching Huang. Argumento: Jeffrey Lau e Wong Kar Wai. Fotografia: Andrew Lau. Música: Danny Chung e Teddy Robin Kwan. Produção: Alan Tang. Hong Kong, 1988, Cores, 102 min.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Sobre o filme «The Go-Between – O Mensageiro» de Joseph Losey, 1971



















Com este filme, Joseph Losey rouba a Palma de Ouro em Cannes a «Morte em Veneza» de Luchino Visconti. 1971.

E como os dois filmes se tocam na pura teatralidade que dizem ser a génese do romance mais apurado – o fim da inocência infantil, o início da descoberta da vida adulta pelo conhecimento do desejo e pelo desejo do corpo. Só que no filme de Visconti a parábola dos olhares e do silêncio de Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) é vista pelo lado inverso, retrospectivo, pelo momento derradeiro sitiado pela epidemia de cólera e pela solidão da cidade de Veneza. Já no teatro de Joseph Losey (e Harold Pinter) assistimos ao átomo inicial, à descoberta do mundo adulto pelo olhar do pequeno e humilde ‘Leo’ Colston (Dominic Guard) sitiado, ele também, nas malhas da alta sociedade da família Maudsley; pelos muros, pelos jardins, pelas ruínas na sua mansão, em Norfolk.

Aquele mundo nunca será o seu. Um mundo que o recebe numas férias encantadas na companhia do seu amigo e colega Marcus (Richard Gibson), de modo generoso mas, igualmente, de ostensivo desprezo. Um mundo que fica suspenso quando Leo repara na beleza da irmã de Marcus, Marian (Julie Christie), repousando adormecida no jardim. Esse universo que só iremos saber através do que observa uma criança que tanto deseja conhecer como fugir do que já começa a suspeitar. Dentro de si e em seu redor.

Um tempo iniciático e belo que, tal como com o músico Gustav von Aschenbach, contém, em simultâneo, a chama do amor vital e o gelo das suas próprias cinzas.

Uma obra-prima.

 

jef, maio 2021

«The Go-Between – O Mensageiro» de Joseph Losey. Com Julie Christie, Alan Bates, Dominic Guard, Margaret Leighton, Michael Redgrave, Michael Gough, Edward Fox, Richard Gibson, Simon Hume-Kendall, Roger Lloyd Pack, Amaryllis Garnett, Keith Buckley, John Rees, Gordon Richardson. Argumento: Harold Pinter segundo romance de L.P. Hartley. Produção: John Heyman e Norman Priggen. Fotografia: Gerry Fisher. Música: Michel Legrand. Guarda-roupa: John Furniss. Grã-Bretanha, 1971, Cores, 116 min.

 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Sobre o filme «Charlatão» de Agnieszka Holland, 2020

 



















A realizadora polaca de 72 anos, Agnieszka Holland, constrói uma matriz ficcional para a vida de Jan Mikolásek (1889-1973), homem dotado de excepcional saber medicinal do cardápio botânico e de olho clínico para, através da observação translúcida da urina, determinar um grande número de doenças. Esses dois conhecimentos associados a um poder de trabalho colossal trouxe-lhe muita fama e proveito. Fama e proveito que, numa Europa ataviada em preconceitos, em guerras mundiais, nazismos e regimes totalitários, também lhe ofereceu dissabores em quantidade igual.

É um filme delicado e tenso composto com gravidade quase renascentista, entre sépias, penumbras e sombras, envolvendo a personagem do botânico-clínico na extraordinária capacidade do actor Ivan Trojan de nos transmitir o conflito interior que encerrava. Em primeiro lugar, defendendo a sua intuição “médica” contra a qual ele próprio por vezes se debatia, dando à actividade o profissionalismo exigível numa altura em que a medicina ancestral de cariz natural e a homeopatia não tinham ainda estatuto oficial. Por outro, não convivendo tranquilamente com o êxito popular que granjeava sabendo que vivia numa época em que os desafios bélicos, políticos ou sociais se sobrepunham invariavelmente à saúde pública assumida pelo Estado, tanto no meridiano Ocidental como no de Leste.

Por fim, expondo com o devido recolhimento a relação homossexual que durante os anos manteve com o seu mais jovem assistente Frantisek Palko (Juraj Loj).

Tais sinais contraditórios e conflituosos talvez ditem o modo demasiado formal, explicativo, repleto de flashbacks e cenas elucidativas, com que é construído o filme. Porém, a seriedade dramática que nos dá o quadro de uma época tão turbulenta sem ferir a capacidade de emocionar mostra-nos o modo sólido e ágil de uma realizadora veterana.


jef, maio 2021

«Charlatão» (Charlatan) de Agnieszka Holland. Com Ivan Trojan, Juraj Loj, Josef Trojan, Jaroslava Pokorná, Jirí Cerný, Miroslav Hanus, Ladislav Kolár, Martin Sitta, Jan Vlasák, Barbora Milotová, Milena Sajdkova, Daniela Vorácková, Matej Sumbera, Frantisek Beles, Martin Mysicka. Argumento: Marek Epstein, Martin Sulc e Jaroslav Sedlácek Produção: Sárka Cimbalová, Kevan Van Thompson, Marlene Film Production. Fotografia: Martin Strba. Música: Antoni Lazarkiewicz e Anton Dvorak. Irlanda, Polónia, República Checa e Eslováquia, 2020, Cores, 119 min.

 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Sobre o filme «Acidente» de Joseph Losey, 1967


























Stephen (Dirk Bogarde) tem uma carreira de lente universitário em literatura de sonho. Tem uma esposa fantástica, Rosalind (Vivien Merchant). Dois filhos maravilhosos. Aguarda o nascimento do terceiro. Tem uma moradia, ampla e acolhedora, rodeada de um campo idílico, com relvados, court de ténis e jardins. Um cão brincalhão. Tem por aluno dedicado William (Michael York) e por colega concorrente, dinâmico e sedutor, Charley (Stanley Baker). Só que não vive satisfeito com a sua vida e, entretanto, chega à universidade Anna (Jacqueline Sassard), uma bela e enigmática princesa austríaca.

Nesta obra-prima da suspeita, do silêncio e do suspense está a mestria das palavras do genial prémio Nobel Harold Pinter. Está o espírito visionário de Joseph Losey a criar no interior da banda sonora o espectro da não-solução, no interior de um espaço entre escadas de madeira, a dúvida que não resguarda, antes suspende o olhar. Tudo aqui é para ser ouvido com recato emocional, como num policial onde, logo de início, os dois policias fazem a súmula intranquila com que se iniciará o enorme flashback que nos vai contar a parte de leão da história. In medias res.

A partir daí toda a suspeição é possível através dos sorrisos masculinos, cúmplices ou instigadores, da vontade omnisciente feminina. Toda a suspeição é entregue ao espectador desarmado pela superioridade angustiada e calada do dono da casa.

Um filme de humor tão subtil quanto estético, tão decadente quanto maravilhado. Como se David Lodge e George Simenon conversassem com Tennessee Williams. Como se Jacques Tati tomasse um café com Alfred Hitchcock e Stanley Kubrick.

Reafirmo. Uma absoluta e inesquecível obra-prima.

 

jef, maio 2021

«Acidente» (Accident) de Joseph Losey. Com Dirk Bogarde, Stanley Baker, Jacqueline Sassard, Michael York, Vivien Merchant, Delphine Seyrig, Alexander Knox, Ann Firbank, Brian Phelan, Terence Rigby, Freddie Jones, Jill Johnson, Jane Hillary, Maxwell Caulfield, Carole Caplin, Harold Pinter, Nicholas Mosley. Argumento: Harold Pinter segundo romance de Nicholas Mosley. Produção: Joseph Losey e Norman Priggen. Fotografia: Gerry Fisher. Música: John Dankworth. Grã-Bretanha, 1967, Cores, 105 min.

 

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Sobre o filme «Mr. Klein – Um Homem na Sombra» de Joseph Losey, 1976.




























Joseph Losey tem a noção perfeita do espaço cénico, medido a régua e esquadro. As personagens devem ocupar todos os planos e poros que o palco lhes oferece. As escadas operáticas com o coro espalhado olhando o protagonista obrigado a confrontar-se com a progressiva solidão. Os corredores e esquinas inóspitos e cruéis, as praças onde os automóveis-arrastadeiras negros cirandam numa arena circense, os autocarros cheios de encarcerados a correr na perpendicular do nosso olhar, os recantos exíguos e fétidos apresentados pela porteira (Suzanne Flon) e onde o usurário Mr. Klein (Alain Delon) investiga e, ao mesmo tempo, o partisan Mr. Klein se esgueira por entre os dedos. A dimensão cerimoniosamente romântica e nocturna da mansão de Florence Klein (Jeanne Moreau). As vastas alas assépticas onde o clínico regista as características fisionómicas judaicas das vítimas. A cidade de Paris claustrofóbica e manietada pela ocupação nazi.

Volto a recordar-me da circular exuberância dos planos teatrais de Jean Renoir ou Stanley Kubrick.

Não conheço outro filme-alegoria onde o maior paradoxo contemporâneo da humanidade, o Holocausto, esteja retratado com tanta delicadeza, com tamanha dimensão estética e abstracta do medo e da perseguição. Onde a permanente e humorística negação da realidade exibida por Mr. Klein tão bem represente quem, assobiando para o lado, assistiu ao feitiço virar-se contra o feiticeiro, fazendo afundar o mundo num oceano de ignomínia e estupor.

Um grande acto de representação de Alain Delon.


jef, maio 2021

«Mr. Klein – Um Homem na Sombra» de Joseph Losey. Com Alain Delon, Jeanne Moreau, Francine Bergé, Juliet Berto, Jean Bouise, Suzanne Flon, Michael Lonsdale, Michel Aumont, Massimo Girotti, Roland Bertin, Jean Champion, Etienne Chicot, Magali Clément, Gérard Jugnot. Argumento: Franco Solinas, Fernando Morandi (e Costa Gravas). Produção: Alain Delon. Fotografia: Gerry Fisher. Música: Egisto Macchi e Pierre Porte. França, 1976, Cores, 123 min.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Sobre o filme «Eva» de Joseph Losey, 1962





















Existe no filme uma animosidade latente. Mesmo uma superioridade estética.

Veneza não é plácida, nem nostálgica, nem velha, nem romântica. É agitada, fremente, tão inconstante e fugidia como Roma. Toda a cidade aquática está dominada por uma Eve Olivier (Jeanne Moreau) que, por sua vez, controla os homens lançando-lhes o dogma da submissão. Mesmo ao conquistar e submeter Tyvian Jones (Stanley Baker), esse (falso) galã veneziano, falso romancista, falso namorado e conquistador da malograda Francesca (Virna Lisi). Tudo se rege pela aproximação e pela fuga do poder (ou pelo seu contrário). Como nos policiais de Patricia Highsmith, sem polícias nem moral mas com perseguição e permanente desconfiança

O silêncio reina e é o olhar de Jeanne Moreau que cativa, absorvendo a realidade, o tempo e o desejo. Uma deusa contempla de um plano superior, aquático, omnisciente, pronta a seduzir e a vingar. Entra em cena e as portas abrem-se por magia, as flores são deitadas fora, o espaço verga-se-lhe sem pudor, e um gira-discos portátil tocará «Willow, Weep for Me» de Billie Holiday até o disco se quebrar, mais por desespero do tédio do que por raiva de amante.

A cidade suspende-se. E enquanto aguarda Eva, a força de atracção e da derrota de Veneza vai ficando cristalizada como se situasse no reverso de um outro filme desesperado. «Senso» de Luchino Visconti (1954).


jef, maio 2021

«Eva» (director’s cut) de Joseph Losey. Com Jeanne Moreau, Stanley Baker, Virna Lisi, Peggy Guggenheim, James Villiers, Riccardo Garrone, Lisa Gastoni, Alexis Revidis, Enzo Fiermonte. Argumento: Hugo Butler e Evan a partir do romance de Jones James Hadley Chase. Fotografia: Hans Fromm. Música: Michel Legrand. Canção: «Willow, Weep for Me» por Billie Holiday. França / Itália, 1962, P/B, 126 min.

domingo, 2 de maio de 2021

Sobre o livro «Louis Pasteur» de Alida Sims Malkus. Livraria Civilização, 4ª edição,1968. Tradução de Madalena de Castro. Ilustrações de Jo Spier.


 





















































Tenho o livro desde 14 de Julho de 1969. Foi-me dado por Julieta Vaz de Carvalho Santos (se não me engano no seu nome), minha professora e directora (e amiga) do jardim infantil onde andei até entrar para a escola primária. A dedicatória refere-se ao afecto, ao estudo, à recordação e ao exame superado da 4ª classe. Nunca consegui desfazer-me dele nem das gratas memórias vindas das grandes sílabas soletradas e sublinhadas a cinzento numa imensa Cartilha Maternal de capa rija. Nem dos harmónios feitos com longas fitas de papel colorido, nem dos desenhos com lápis Viarco, que arranhavam no papel almaço, nem dos amores-perfeitos que plantávamos no quintal e que, depois, levávamos cerimoniosamente a um local estranho onde estava um senhor importante, almirante e aviador, de nome Gago Coutinho. Esse quintal onde brincávamos e corríamos cheirava, por vezes, a xixi de gato.

Já o ano em que o li pela primeira vez escapou à tal memória.

Sei que a ternura dos desenhos sempre me influenciou a par do carinho com que é descrita a vida modesta e empenhada percorrida por Louis Pasteur desde a pequena povoação de Arbois (Jura) até Paris; a sua luta pela ciência, pela família, pelo invisível, pelo microscópio, pelo laboratório; acima de tudo o apego aos concidadãos, quer fossem produtores de vinho, de bichos-da-seda, pastores, ou humildes e incógnitos mordidos por cães ou lobos atacados pela raiva.

Sempre achei graça à «pasteurização» que a minha mãe fazia num fervedor de alumínio e na respectiva zanga quando nós nos distraíamos e o leite vinha por fora e sujava o fogão todo. O senhor trazia o leite em bilhas de zinco, salvo erro, e limpava os pingos de leite que ficavam na madeira da entrada com um paninho cor-de-laranja.

Não me lembro de ficar espantado pela “invisibilidade” de tantos seres vivos que influenciavam a nossa saúde. Nunca questionei a razão pela qual os nossos pais nos obrigavam a lavar as mãos tantas vezes, ou de ter um caderninho branco onde ficaram averbadas as doses de vacinas que tomava, apesar de algumas estarem contidas em seringas e agulhas de aspecto medonho. Sempre vi ferver certos objectos para os “desinfectar”. Sempre ouvi falar de Louis Pasteur como um revolucionário que mudou realmente o dia-a-dia da população de todo o mundo.

E por viver no século XXI, envolto em pandemias, em seres humanos anti-vacinas, negacionistas dos micróbios, amantes de terras menos esféricas, apologistas de fascismos, muros e arames farpados, fui obrigado a ir buscar o livro à estante da minha infância…

Tudo agora me vem à memória um pouco misturado. Com a mesma estrutura fragmentada mas inclusiva dos sonhos, da ausência, da solidão. E constato como gosto de ler livros infantis ilustrados. E como eles se cruzam com as mais belas memórias e a grata influência dos pais, dos professores, de uma certa aprendizagem contínua, da vocação de sempre tentarmos descobrir os miasmas do futuro.


jef, maio 2021