segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Sobre o filme «O Salão de Música» de Satyajit Ray, 1958


 



















Este filme é tão belo quanto estranho. De uma estranha beleza estética, luminosa e musical, tão fora do comum que até poderíamos pensar estar a assistir a um filme do expressionismo mudo, ou um filme sobre a universalidade do fim das sociedades para que outras despontem, ou à estética de uma casa aristocrática em ruínas, de uma família que vai inexoravelmente desaparecer mas que tem de resistir até à morte da última célula.

Contudo, tudo ali é indiano (bengali): desde a primeira cena no terraço do palacete, quando Chhabi Biswas (Biswambhar Roy) pede o seu sorvete ao criado (Kali Sarkar) e pergunta de onde surge a música que está a ouvir, até ao louco, claro e final galope do cavalo pela praia em direcção a um futuro que terminara lá atrás. À longa quase hipnótica dança num salão decadente observada pelos retratos de uma imensa sequência de patriarcas que não terá continuidade. À luz das velas nos candeeiros que se extinguirão para sempre. Ao reflexo de um espelho. À densa simbologia animal, dos morcegos à aranha, dos cães ao cavalo branco, do elefante à chegada do automóvel ocidental que traz o filho néscio do usurário. O sorriso magnânimo do protagonista sobre o fim do mundo é de uma tristeza nostálgica sublime.

A mais bela e crua definição de solidão.

Passou-me pela memória a universalidade emocional do final de certos filmes de Michelangelo Antonioni, Federico Fellini ou John Ford.


jef, janeiro 2023

«O Salão de Música» (Jalsaghar) de Satyajit Ray. Com Chhabi Biswas (Biswambhar Roy), Padma Devi (mulher de B. Roy), Gangapada Basu (Mahim Ganguli), Tulsi Lahiri (intendente), Kali Sarkar (criado), Pinaki Sen Gupta (a criança). Argumento: Satyajit Ray baseado na história de Tarashankar Bandhopadhaya. Produção: Satyajit Ray. Fotografia: Subrata Mitra. Música: Ustad Vilayat Khan com participação de Begum Akhtar, Bismillah Khan, Wahid Khan e Roshan Kumari. Índia, 1958, Cores, 98 min.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Sobre o livro «Nada a Temer» de Julian Barnes, Quetzal, 2011. Tradução de Helena Cardoso.


 









Aparentemente, este livro pode ser um livro de auto-ajuda (se tivesse sido eu a escrevê-lo) para sustentar, interpretar, apresentar ou ocultar o medo da morte ou o medo de estar morto. Contudo, eu jamais conseguiria escrever como Julian Barnes, não tenho tal dote ou estilo ou inspiração. Não tenho esse modo de ser muito britânico e incisivo mas que conhece (e ama) a cultura francesa oitocentista como ninguém e que sempre abraçou o modo romântico e ternurento de nos cativar e comover.

Também não seria capaz de puxar o lado de biógrafo do autor premiado. Aqui, vamos seguindo a história, cruzada por muitas outras, do escritor francês Jules Renard, do seu diário e da morte da sua família. Visitamos-lhe o mausoléu em Chitry-les-Mines. Também ficamos a conhecer os erros de memória e os lapsos históricos dos avôs e dos pais de Julian Barnes. Seguimos a história de como ele (escritor) e o seu irmão (filósofo) interpretam de modo diferente esses erros e lapsos, de como colecionavam selos diferentes, de como eram diferentes por terem sido diferentemente amamentados pela mãe.

Depois, Julian Barnes nega tudo e reafirma a essa ideia de ateu de que, a existir Deus, ele é um ser brincalhão que, desde o início da humanidade e até sempre, lhe pregará a partira de esconder a porta para a eternidade, como fazem os etologistas quando colocam os ratinhos dentro de caixas-labirinto dissimulando o alçapão que dá acesso ao queijo.

E o mais interessante do livro é sabermos como Julian Barnes é também minucioso a pesquisar a verdade na obra e na vida de certas personalidades para redigir biografias romanceadas: Gustave Flaubert, Samuel Jean de Pozzi ou Dimitri Chostakovitch.

No fundo, este livro traduz-se numa “falsa” auto-biografia familiar que vai traduzindo o cerne da obra de Julian Barnes: a vida (a escrita) existe para brincar às escondidas com os erros e as adulterações que a memória, mais uma vez recordada, faz repercutir sobre a verdade.

«A ficção é feita por um processo que combina liberdade total e controlo absoluto, que equilibra a observação precisa e o jogo livre da imaginação, que utiliza mentiras para dizer a verdade e a verdade para dizer mentiras. É ao mesmo tempo centrípeta e centrífuga. Quer contar todas as histórias em toda a sua incoerência, contradição, insolubilidade; ao mesmo tempo quer contar a única história verdadeira, a que se funde e refina e resolve todas as outras. O romancista é ao mesmo tempo um cínico reles e um poeta lírico, que se inspira na insistência austera de Wittgenstein – “fala só do que conheces verdadeiramente” – e o descaramento alegre de Stendhal.»

E, por fim, o melhor mesmo é não temer a morte pois ela é coisa mais do que certa.


jef, janeiro 2023

 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Sobre o filme «Três Cores: Vermelho» de Krzysztof Kieslowski, 1994














É mesmo impossível não ligar este filme à «Janela Indiscreta» de Hitchcock (1954). E o curioso, mesmo que Kieslowski não o tenha feito de propósito, é que a misteriosa (maravilhosa) empatia envidraçada de James Stewart e Grace Kelly, um misto de suspense, intriga, fotogenia sublime, voyeurismo, enlace amoroso-erótico, também existe na tensão existente entre a juventude grácil de Irène Jacob, Valentina, uma modelo de olhar quase inocente quase adolescente, perdida entre amores também eles envidraçados pelas janelas ou pelo ciúme, e o velho juiz aposentado, solitário, ressabiado, invasor de privacidades telefónicas, que deixa fugir a cadela para que esta seja atropelada e, assim, se encontre com Valentina. Nesta trama tão simples e novelesca, o empedernido juiz é um soberbo Jean-Louis Trintignant que, mais pelo olhar e o silêncio do que por palavras, sai do casulo rancoroso para se entregar ao carinho amoroso da modelo. A cena da troca de uma frágil lâmpada fundida e as pedras que estilhaçam as janelas invadindo as velhas salas, são metáforas extraordinárias.

E se «A Janela Indiscreta» pode ser a epígrafe desta fábula eterna sobre a fraternidade e o amor, a respectiva e exigível moral do conto está nas lágrimas finais do juiz ao escutar o desfecho e o salvamento do naufrágio do ferry que atravessa o lago Léman.


jef, janeiro 2023

«Três Cores: Vermelho» (Trois Couleurs: Rouge) de Krzysztof Kieslowski. Com Irène Jacob, Jean-Louis Trintignant, Frédérique Feder, Jean-Pierre Lorit, Samuel Le Bihan, Marion Stalens, Jean Schlegel, Juliette Binoche, Benoît Régent, Zbigniew Zamachowski, Julie Delpy. Argumento: Krzysztof Kieslowski, Krzysztof Piesiewicz. Produção: Marin Karmitz, Yvon Crenn. Fotografia: Piotr Sobocinski. Música: Zbigniew Preisner. Suiça / França, 1994, Cores, 99 min.

 

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Sobre o filme «III Guerra Mundial» de Houman Seyedi, 2022



 












O filme é uma violentíssima tragédia que se inicia como alta comédia e que, até ao final, usa a estrutura das loucas e rápidas comédias de enganos para acentuar, a par e passo, o crescente dramatismo de cada uma das cenas (ou dos “gags”).

Os risos surgem na sala quando o paupérrimo operário de construção Shakib (Mohsen Tanabandeh), viúvo e órfão do filho, ambos mortos num terramoto e abandonado pela família com a injusta acusação de não os ter vindo socorrer, é contratado para a edificação do cenário de um filme sobre as atrocidades nazis num campo de concentração e, por razões do acaso, é escolhido para interpretar o papel de Adolf Hitler. Shakib poderá estar no caminho triunfante da fama.

Mas qualquer coisa de profundamente desconfortável instala-se em torno do personagem principal que nunca sorri. Intolerável, depois insuportável. Não, não é Brian, perseguido por ser confundido com Jesus Cristo (Monty Python, 1979), nem Charlie Chaplin a fazer de «Grande Ditador» (1940), nem Roberto Benigni em «A Vida é Bela» (1997). Aqui não volta a dar, o cenário de um filme sobre o holocausto é muito melhor do que a vida de um pobre iraniano que se apaixona por uma prostituta surda-muda.

O grande trunfo do realizador são essas filmagens em aceleração constante, câmara junto das caras e dos corpos que correm e angustiam, algumas cenas de horizonte para desanuviar a tensão e mostrar, em modo fantástico, uma casa vermelha a andar estrada fora. Também um argumento que, mais uma vez, usa os truques rápidos das comédias de hotel americanas para dirigir o filme até ao desenlace final. O espectador deseja um alívio mas este não lhe é permitido. Principalmente nas cenas finais. Toda a tragédia sobre os ombros de um extraordinário actor que poderia ser um Buster Keaton se a vida no Irão permitisse.

É caso para lembrar a canção na voz de Tracy Thorn: “You´re a little Hitler now / And you grow up Heaven knows how / Little Hitlers, little Hitlers / Grow up into big Hitlers / And look what they do” (Everything But The Girl, 1986).

Com o cinema iraniano é mesmo caso para repetir: Hollywood para que te quero!

 

jef, janeiro 2023

«III Guerra Mundial» (Jang-e jahani sevom) de Houman Seyedi. Com Mohsen Tanabandeh, Mahsa Hejazi, Neda Jebraeili, Navid Nosrati, Hossein Norouzi. Argumento: Houman Seyyedi, Arian Vazirdaftari, Azad Jafarian. Produção: Houman Seyyedi. Fotografia: Payman Shadmanfar. Música: Bamdad Afshar. Irão, 2022, Cores, 117 min.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Sobre o filme «Broker - Intermediários» de Hirokazu Kore-eda, 2022


 


















Hirokazu Kore-eda é o realizador das crianças e de um modo amável, ternurento, empático de interpretar uma certa solidão que sempre existirá no interior da infância. Um jeito vindo do documentarismo em colocar a câmara a observar à distância o que se passa em torno das personagens. Um olhar sobre a expressão e o silêncio de situações onde a família parece tanto desagregar-se como se manter visceralmente unida. Um olhar sem a tentação de justificar coisa alguma. Hirokazu Kore-eda também não julga.

Assim foi com essa peça única chamada «Ninguém Sabe» (2004), depois com «Andando» (2008) ou «O Meu Maior Desejo» (2011).

O êxito chegou via «Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões» (2018) que ganhou a palma de ouro em Cannes.

Agora regressa com a história de uma família (quase) não biológica, mas afectivamente híper-protectora, de comerciantes de crianças para adopção ilegal em torno de uma “roda” quadrangular que certas igrejas possuem onde serão deixados os bebés que podem ser desejados mas não são assumidos maternalmente.

Contudo, existe aqui uma agitação narrativa, cheia de recantos e derivados que coloca a atenção do espectador centrada nas reviravoltas de argumento, deixando-a um pouco distraída do centro emocional do drama. Parece que o realizador quer tudo explicar e ficou deslumbrado com a trama que inventou, esquecendo-se da simplicidade do seu olhar silencioso que tanto nos cativou.


jef, janeiro 2023

«Broker - Intermediários» (Beurokeo) de Hirokazu Kore-eda. Com Song Kang-ho, Dong-won Gang, Bae Doona, Ji-eun Lee, Lee Joo-Young, Kang Gil-Woo, Park Hae-joon, Seung-Soo Im, Sae-Byeok Kim, Ryu Kyung-Soo. Argumento: Hirokasu Koreeda. Produção: Eugene Lee. Fotografia: Hong Kyung-Pyo. Música: Jung Jae-il. Coreia do Sul, 2022, Cores, 129 min.

 

         

domingo, 22 de janeiro de 2023

Sobre o disco «Here It Is: A Tribute to Leonard Cohen», Blue Note Records, 2022


 








Leonard Cohen é o autor de uma das canções espirituais-não-espirituais mais populares que hoje em dia é cantada em cerimónias-sacramento mais ou menos religiosas por todo o mundo: «Hallelujah», saída no álbum “Various Positions” de 1984. Aqui, a versão é circunspecta e reverencial feita por Sarah McLachlan, uma cópia daquela outra, maravilhosa, de k.d. Lang. Contudo, é muito difícil contornar o mundo de Leonard Cohen, sem cumprir essa reverência emocional, sem atender a esse lado espectral interior-exterior do autor. Quem ouve também exige essa silenciosa consciência de que nesse universo não se pode tocar.

É o caso deste disco-homenagem com 12 canções de Leonard Cohen que a Blue Note nos propõe e que nós agradecemos. O Jazz fica numa calote inferior a esse tributo dando-lhe um sustento firme mas que ao ouvido menos atento parecerá morno ou até anódino. Mas não é. (O respeitinho é muito bonito!) A fazer o plano musical convergente está um quarteto / quinteto de base formado pela guitarra de Bill Frisell; o saxofone alto de Immanuel Wilkins; o piano de Kevin Hays; o contrabaixo de Scott Colley e a bateria de Nate Smith. Atente-se às instrumentais «Avalanche» (“Songs of Love and Hate” 1971) com arranjo de Immanuel Wilkins e o derradeiro «Bird in a Wire» (“Songs from a Room”, 1969) com arranjo de Bill Frisell.

Creio que a mais próxima e a mais distante será a versão-cópia de Iggy Pop de um dos hinos tardios que dá nome ao derradeiro e negro álbum “You Want It Darker” (2016). Iggy Pop encontra aqui a canção-alma gémea. Assim, acontece também com a canção «Here It Is» (“Ten New Songs” 2001) acarinhada pelo timbre denso e sombrio de Peter Gabriel.

O álbum abre sem grande espanto mas com a harmonia vocal de Norah Jones para «Steer Your Way» (do citado álbum final de 2016) quase terminando com «Famous Blue Raincoat» (1971), uma bela versão folk-quase-country na voz sentida e quebrada de Nathaniel Rareliff.

Ficam ainda na colecção duas gerações de vozes negras, a de Gregory Porter («Suzanne» 1967) e de Mavis Staples («If It Be Your Will» 1984), a elevação jazz-gospel para a espiritualidade de Leonard Cohen.

Igualmente, é bom sentir como as vozes de Luciana Souza («Hey, That’s No Way to Say Goodbye» 1967), de James Taylor («Come Back to You» 1984) e de David Gray («Seems So Long Ago, Nancy» 1969) também não desvirtuam essa paisagem que o autor criou dentro de mim ao longo de tantas décadas.

Uma paisagem pessoal que começou bastante desfocada quando tinha os meus treze anos e ouvia com insistência na Caparica, no gira-discos da minha irmã mais velha, rodando o disco “Songs of Love and Hate”. Não entendia como alguém poderia gostar de tão longa série de tão enfastiadoras canções. Se aquilo chegavam a ser mesmo canções… Mais tarde apareceu-me nas mãos o LP colectânea «Greatest Hits» (1975), a adolescência crescera e o 25 de Abril dava grande ajuda. Fiquei convencido, encantado, viciado, definitivamente tomado pelo universo Leonard Cohen.

(Nota: Só estranho como o produtor deste álbum não tenha reparado como as primeiríssimas e discretas notas ouvidas logo ao abrir da primeira faixa tanto se assemelham à abertura diáfana do “Windows” que, consta, foram compostas por Brian Eno!)

 

jef, janeiro 2023

 

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Sobre o filme «A Noiva» de Sérgio Tréfaut, 2022










O mais trágico de uma tragédia é o que fica por explicar. É isso que não deixa cair os panos negros do luto sobre a história. Panos negros, sujos e tingidos que escondem a resignação das viúvas, o choro das crianças até aos cinco anos. (As outras não existirão em breve, soterradas pelos escombros e pela poeira). Também a adesão de muitos jovens quase adolescentes ocidentais à causa radical aterradora do Daesh e do Estado Islâmico. Podem ter estes terminado mas as ruínas do Iraque, da Síria, do Curdistão ficarão para sempre… Ficará por explicar por que Umm ou Bárbara (Joana Bernardo) convence o pai (Hugo Bentes), caso a sentença seja fatal, a criar os filhos e por que ela própria deseja a morte, benévola e duradoura.

Tal como o Holocausto, a história de Bárbara no filme de Sérgio Tréfaut fica a meio, e não tem início, e não tem fim. É quase uma curta-metragem a caminho ou a fugir de um paraíso inexistente, a recusar oferecer o documentário impossível, a moralidade exigida pela reportagem. Porém, ficarão a beleza escondida pelo preto do olhar silencioso de Bárbara, a angústia interior, revolta conformada, dos olhos de seu pai.


jef, janeiro 2023

«A Noiva» de Sérgio Tréfaut. Com Joana Bernardo, Hugo Bentes, Lola Dueñas, Hussein Hassan Ali, Rekish Shahbaz, Saman Mustefa, Adil Abdulrahman, Zirek, Makena Diop, Dinis Gomes, Bengin Ali, Abdilqadir Bamarni, Naima Abdo, Fatma Ali. Argumento: Sérgio Tréfaut. Produção: Sérgio Tréfaut. Fotografia: João Ribeiro. Música: Rowal Gelal. Portugal, 2022, Cores, 81 min.

 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Sobre o disco «Samba de Guerrilha» de Luca Argel, Luca Argel & Fado in a Box, 2021



 








O disco no leitor e logo me vem à cabeça o LP do Chico Buarque «Construção» (1971) (também «Morte e Vida Severina» - 1966) e como aquele circulava às escondidas no Portugal fascista. Um disco inesquecível caído num país e numa época para esquecer (e para lembrar).

Ontem, em Brasília, um enorme grupo de grunhos invadiu as sedes dos poderes democráticos brasileiros, destruindo, ululando, praguejando, rindo, bebendo, rezando.

Por tudo isto, pela memória e pelo mundo presente, «Samba de Guerrilha» de Luca Argel revela-se o mais belo antídoto para o estupor que se assiste por aí. Este álbum é constituído por música de combate, por 10 sambas (ou proto-sambas) de guerrilha que se inscrevem na história da luta do povo brasileiro, principalmente aquele de pele negra, 700.000 de seu número, que foi levado escravizado para o maior país da América do Sul.

Mas entre as 10 canções de guerra, escravatura, protesto e revolta, a voz doce de Telma Tvon narra a história que as circunscreve, as motiva e enquadra na grande História moderna e contemporânea brasileira.

Um disco entusiasmante que surge tão simples de ouvir entre as belas vozes, uma mais grave, a de Telma, e a de tessitura mais alta, a de Luca.

Um disco político que obriga a ouvi-lo com toda atenção como um áudio-livro. Um álbum que aquece a alma e a consciência com uma dezena de canções maravilhosas.

Um disco que, hoje, afinal se torna ainda mais urgente!

 

“O que adianta eu trabalhar demais

Se o que eu ganho é pouco?

Se cada dia eu vou mais pra trás

Nessa vida levando soco?

E quem tem muito tá querendo mais

E quem não tem tá no sufoco

Vamos lá rapaziada, tá na hora da virada

Vamos dar o troco

Vamos botar lenha nesse fogo

Vamos virar esse jogo

Que é jogo de carta marcada

O nosso time não está no degredo

Vamos à luta sem medo

Que é hora do tudo ou nada”

                    Noca da Portela (“Virada”)


(Por ventura, o autor não imaginou a importância que o este disco teria quase dois anos depois de ser publicado.)

jef, janeiro 2023

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Sobre o filme «Três Cores: Azul» de Krzysztof Kieslowski, 1993


 

















No início dos anos 90 muito se falou da política das cores na trilogia de Kieslowski. Do significado social e revolucionário do colorido francês; também do âmbito internacionalista europeu face ao alargamento da comunidade económica; do porquê de tais filmes se centrarem na introspecção do individuo perante a sociedade, isolado desta, em conflito com esta.

Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

Decorreram três décadas. E agora lembro-me maravilhado de como nos deslumbrou essa Juliette Binoche, lindíssima, mãe quase infanta, frágil e forte, uma Julie desapossada de tudo, do seu passado, dos seus seres, das suas verdades. Liberta de tudo e de si, por assim dizer, à moda de Jean-Paul Sartre. 

Afinal, contudo, a política desvanece-se perante os planos muitos fechados, translúcidos ou transparentes se vistos através dos cristais azuis do candeeiro, das crias glabras da ratazana, das notas musicais correndo sobre a partitura, das nocturnas braçadas aquáticas, dos saltos em elásticos que a mãe (Emmanuelle Riva), ausente-presente, observa na televisão, dos nós dos dedos sacrificiais sangrando sobre o atrito do muro.

«Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine» escreve assim Paulo aos Coríntios (1 Cor 13), assim é cantado nesse Concerto para a Integração da Europa, cuja autoria fica sempre misteriosamente oculta.

Um dos filmes mais belos sobre o luto, sobre a bondade intrínseca e inamovível que o ser humano transporta dentro dele. Também sobre a resistência do ser humano à dor, sobre o eterno retorno ao amor.

Se a liberdade é supostamente azul, é necessário que a política assuma a sua quota-parte de bondade.


jef, janeiro 2023

«Três Cores: Azul» (Trois couleurs: Bleu) de Krzysztof Kieslowski. Com Juliette Binoche, Benoît Régent, Florence Pernel, Charlotte Véry, Hélène Vincent, Philippe Volter, Claude Duneton, Hugues Quester, Emmanuelle Riva, Florence Vignon, Daniel Martin, Jacek Ostaszewski, Catherine Therouenne, Yann Trégouët, Alain Ollivier, Isabelle Sadoyan, Pierre Forget, Zbigniew Zamachowski, Julie Delpy. Argumento: Krzysztof Kieslowski, Krzysztof Piesiewicz. Produção: Marin Karmitz. Fotografia: Slawomir Idziak. Música: Zbigniew Preisner. Suiça / França, 1993, Cores, 94 min.

 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Sobre o filme «Três Cores: Branco» de Krzysztof Kieslowski, 1994


 







Não sei por que razão, este filme, revisto no grande ecrã cerca de 30 anos depois, recordou-me o filme de Vittorio De Sica «O Milagre de Milão» (1951). Karol Karol (Zbigniew Zamachowski), o polaco que se vê espoliado do casamento, da casa em Paris, do seu grande amor, Dominique (Julie Delpy), regressa a casa do irmão, na Polónia, ajudado pelo jogador de bridge Mikolaj (Janusz Gajos). Mal vestido e angustiado, à porta do tribunal onde receberá a sentença de divórcio, um pombo voa e acaba por lhe sujar a gabardina poida. Tudo parece conjugar-se para entabular uma tragédia definitiva.

Qualquer coisa (de palhaço pobre) em Karol se assemelha ao supostamente miserável adolescente Totò (Francesco Golisano), recém-nascido encontrado numa horta entre repolhos nos subúrbios milagrosos de Milão.

E tal como neste filme, afinal também Karol, aproveitando a aura de ingenuidade quase infantil, possui dotes e poderes de mover a montanha da bondade para que a sociedade em seu redor cresça em harmoniosa concórdia e justiça social, derrotando meliantes e oportunistas.

Afinal, «Três Cores: Branco» é uma comédia inspiradora, quase filme de suspense, onde o amoroso e desvalido palhaço pobre se transforma em amoroso e triunfante palhaço rico.

Um filme sobre o interior ficcional de cada um de nós, fotografado sobre a neve por Edward Klosinski e musicado pela melodia quase judaica da partitura de Zbigniew Preisner. Um filme claro e auspicioso.


jef, janeiro 2023

«Três Cores: Branco» (Trois couleurs: Blanc) de Krzysztof Kieslowski. Com Zbigniew Zamachowski, Julie Delpy, Janusz Gajos, Jerzy Stuhr, Aleksander Bardini, Grzegorz Warchol, Cezary Harasimowicz, Jerzy Nowak, Jerzy Trela, Cezary Pazura, Michel Lisowski, Philippe Morier-Genoud, Piotr Machalica, Francis Coffinet, Barbara Dziekan. Argumento: Krzysztof Kieslowski, Krzysztof Piesiewicz. Produção: Yvon Crenn, Marin Karmitz. Fotografia: Edward Klosinski. Música: Zbigniew Preisner. França, 1994, Cores, 91 min.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Sobre a leitura de «Uma Mentira Mil Vezes Repetida» de Manuel Jorge Marmelo, Quetzal 2011



















Matéria dada

Há meses que andava a cogitar nas leituras de Verão. Aquela coisa do final do ano, das listas e balanços e festas prometidas. Também remorsos pelos textos não cumpridos. «Uma Mentira Mil Vezes Repetida» apareceu na minha mão pela mão do prémio Correntes d'Escritas 2014 dos encontros da Póvoa de Varzim. Comprei-o, li-o na praia, e esqueci-me da praia. Um livro sobre livros que foi organizando, em escrita cuidadíssima e história antiquíssima, a minha biblioteca de livros sobre livros. No fundo, a história de qualquer livro, a história do Homem-Zebra, de Marcos Sacatepequez, de Oscar Schidinski…

Por isso venho aqui redimir-me, em acto de pré-réveillon, tão entusiasmado quanto publicitário, sublinhando o elogio que Pedro Vieira deixou pelo facebook em tempo e, em tempo, me fez ir à livraria.

Abraço e um 2015 bem melhor que este que se está a passar.

jef, dezembro 2014