terça-feira, 29 de outubro de 2019

Sobre o filme «O Traidor» de Marco Bellocchio, 2019
















O mais interessante neste filme de Marco Bellochio, especialista na arte italiana do submundo, é o facto de ser uma novela sangrenta, mas de certo modo divertida, sobre um mundo horrível: as últimas décadas do mafioso Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino) quando este, querendo retomar a velha honra da Cosa Nostra siciliana, resolve voltar a Itália para denunciar centenas de “parentes” assassinos desvirtuados pela mais recente ganância vinda da droga.
Contudo, não o podemos comparar às ficcionais novelas sangrentas de Tarantino. Este molda a seu bel-prazer a realidade para que a intriga ofereça um antidoto à memória histórica mais sofrida. Em «O Traidor» passa-se o contrário. Estamos perante toda a realidade das mortes e dos diversos interrogatórios e julgamentos em flashbacks mais ou menos contundente e acelerados servidos por uma banda sonora operática.
Contudo, em modo quase etnográfico, a Itália do sul está lá toda e a personagem interpretada por Pierfrancesco Favino vai ficando cada vez mais densa, cada vez mais determinada, no contraponto (ou acareação emocional e judiciária) com as personagens mais fortes e fundamentais do filme – o juiz e amigo Giovanni Falcone (Fausto Russo Alesi), o amigo e mafioso Salvatore Cancemi (Luigi Lo Cascio) e os parentes e opositores Pippo Calò (Fabrizio Ferracane) e Totò Riina (Nicola Calì).
Eles são mesmo o melhor de um filme. Um filme que, por outro lado, se perde nessa mesma dispersão emocional, por vezes não sabendo para que lado deve atirar.

jef, outubro 2019

«O Traidor» (Il Traditore) de Marco Bellocchio. Com Pierfrancesco Favino, Luigi Lo Cascio, Fausto Russo Alesi, Maria Fernanda Cândido, Luigi Lo Cascio, Fabrizio Ferracane, Nicola Calì, Bebo Storti. Alemanha / Itália / França / Brasil, 2019, Cores, 145 min.

domingo, 27 de outubro de 2019

Sobre o filme «Um Dia de Chuva em Nova Iorque» de Woody Allen, 2018



















Este é um filme para quem gosta de Nova Iorque, a primeira e eterna diva de Woody Allen, fotografada por Vittorio Storaro de modo amável, terno e melancólico quanto uma chuva que, de tão falsa, parece cobrir a cidade com o brilho doce de um palco verdadeiro. Woody Allen filma os recantos da cidade como um amoroso cicerone, deixando o casal de namorados, o intelectual, entristecido e agitado Gatsby (Timothée Chalamet) e a tolinha, estreante repórter de cinema, Ashleigh (Elle Fanning), numa série de desencontros motivados não tanto pela chuva mas por uma sucessão de “assédios recíprocos” entre a jovem entrevistadora e o realizador Roland Pollard (Liev Schreiber), o produtor Ted Davidoff (Jude Law) e o actor Francisco Veja (Diego Luna), todos em crise amorosa e profissional. Quem corre atrás de quem?

Esta é a ironia sarcástica com que Woddy Allen responde à crise do assédio em Hollywood e que também lhe tocou, deixando sem investidores nos próximos filmes. Nem este «Um Dia de Chuva em Nova Iorque» será exibido na cidade que retrata. Não será a jovem e excitada Ashleigh que não pára de correr de casa em casa em busca do fascínio do cinema, acabando por ficar na rua, encharcada, apenas de gabardina sobre o corpo? Que crimes são aqui cometidos?

E o filme lá vai correndo de peripécia em peripécia, por vezes um pouco molemente, desencontrando o nosso “Gatsby Woody Allen” com Ashleigh mas fazendo-o encontrar-se com Shan (Selena Gomez), a irmã de uma antiga namorada. 

Até que surge, a três quartos do fim, a cena entre ele e a mãe (Cherry Jones). O filme parece que fica ali em suspenso. Retirados da festa dos mais ricos da cidade, ela, vestida num espantoso vestido amarelo e verde, revela ao filho como começou a fortuna da família. Eis a segunda estocada no mundo capitalista dos financiamentos.

Não fosse a fotografia, as canções, o guarda-roupa, os decores, a cidade chuvosa mas sem chuva, tudo tão discretamente sumptuoso, e o filme valeria apenas por esta cena!

jef, outubro 2019

«Um Dia de Chuva em Nova Iorque» (A Rainy Day in New York) de Woody Allen. Com Timothée Chalamet, Elle Fanning, Jude Law, Selena Gomez, Diego Luna, Liev Schreiber, Rebecca Hall, Kelly Rohrbach, Cherry Jones, Griffin Newman. Fotografia: Vittorio Storaro. EUA, 2018, Cores, 92 min.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Sobre o filme «Asako I e II» de Ryûsuke Hamaguchi, 2018
















Já as 5 horas e 17 minutos de «Happy Hour: Hora Feliz», o anterior filme de Ryûsuke Hamaguchi, para além da extravagante duração, deixava um certo suspense sobre a vida comum das personagens. Uma excelente gestão da intriga sobre o tempo de quem vive num Japão que tem ainda a guerra perdida e a tradição ancestral como garantes do cerimonioso silêncio e da parcimónia no contacto humano.

Também esta «love story» contém a estranheza e o suspense a envolver a trajectória da bela Asako (Erika Karata) que se apaixona à primeira vista pelo belo e libertário Baku (Masahiro Higashide) quando se encontram numa exposição de fotografia. Ela olha as imagens de crianças gémeas. Mais tarde, encontra Baku na pele de um eficiente trabalhador de uma firma de saqué, Ryohei (também, Masahiro Higashide). O coração de Asako balança entre amores parecidos mas distantes no tempo e na geografia. A duplicidade é o mote e a similitude na génese da memória persegue-a. Pelo meio, um gatinho simpático, Jintan.

Pode o filme não ser muito mais do que isso mas a sinceridade e a entrega dos actores perante as dificuldades emocionais provocadas pela memória no amor vale bem o bilhete de cinema.

jef, outubro 2019

«Asako I e II» (Netemo Sametemo) de Ryûsuke Hamaguchi. Com Masahiro Higashide, Erika Karata, Sairi Itô, Koji Seto, Rio Yamashita. Argumento: Ryûsuke Hamaguchi e Sachiko Tanaka segundo o romance homónimo de Tomoka Shibasaki. Japão / França, 2018, Cores, 119 min.

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Sobre a exposição «E não sei se o mundo nasceu. Fernando Namora – 100 anos.» Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, até 17 de Novembro de 2019. Curador: António Pedro Pita

 
 
 

O mais interessante na exposição é o facto de colocar o neorrealismo como uma classificação em permanente desajuste face aos autores que aí se pretende agrupar. Principalmente Fernando Namora.

No texto inaugural, muito esclarecedor, diz-nos como Fernando Namora, ao longo da sua carreira, sempre se foi auto-excluindo de um movimento sem prévia definição, afinal sempre motivado muito mais pela espontânea volição criativa de escritor do que pela premeditação associativa ou social.

Em seguida, refere o característica vincadamente paisagística que a sua obra evidencia, numa perspectiva de descrição geográfica onde as personagens se movem entre brenhas e penhascos, tristezas graníticas, enquadramentos arbóreos, aldeias enclausuradas. Fernando Namora, ele próprio também era pintor.

Por último, fala do seu desejo de ficcionista e de transfiguração da realidade (e do «realismo»).

Fernando Namora amava a realidade e o seu movimento constante. É o autor sensível e amável de um dos mais belos livros sobre profissões, povos e rochas. «Retalhos da Vida de Médico» (1949).

jef, outubro 2019

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Sobre o filme «Blue Valentine - Só Tu e Eu» de Derek Cianfrance, 2010




















Ao fim de cinco anos de casamento, Cindy (Michelle Williams) e Dean (Ryan Gosling) têm uma filha e muitas coisas em comum. Porém, o passado pouco comum pesa nesse presente partilhado e Dean aluga por uma noite um quarto num motel de estrada, com cama a girar e alumínios gastos a fingir estação orbital. Lá dentro a história de uma América falhada feita de distâncias, maus empregos e famílias sem retorno.
Eu, que sou fã de Michelle Williams, custa-me ver o esforço sobre-humano feito pela actriz tentando dar crédito a uma personagem desamparada por um texto fraquíssimo, dentro de uma história contada a dois ou três tempos intercruzados, igualmente desamparada de estilo narrativo, dando a mão a um Ryan Gosling que muito se esforça para fazer um personagem amoroso, sensível mas desajeitado. Tentando lacrimejar.
Mesmo assim, a carinhosa Michelle Williams continua a merecer todo meu afecto e atenção.

jef, outubro 2019

«Blue Valentine - Só Tu e Eu» (Blue Valentine) de Derek Cianfrance. Com Ryan Gosling, Michelle Williams, Faith Wladyka. EUA, 2010, Cores, 111.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Sobre o filme «Sangue e Ouro» de Jafar Panahi, 2003




















O filme começa com a câmara parada numa espécie de câmara escura, uma joalharia, filmando o que se passa na rua e ouvindo o que se passa lá dentro. Um assalto. É ali que o filme também terminará.
Pelo meio conta a história de Houssein (Hossain Emadeddin) que distribui pizzas ao domicílio. E do seu grande amigo Ali (Kamyar Sheisi). A câmara não pára e persegue insistentemente a sua mota por Teerão dos riquíssimos e pela Teerão dos paupérrimos. A história baseia-se em factos reais, partilhada por Jafar Panahi com outro realizador, Abbas Kiarostami, que escreve o argumento. O actor Hossain Emadeddin, ele próprio, saiu da guerra entre o Irão e o Iraque, com distúrbios próximos da esquizofrenia, transportando sob e sobre a pele mais do que a solidão. Acima de tudo, a desagregação de uma sociedade vigiada e injusta e a consequente degradação individual. O solitário desespero ou solitária desistência. É penoso seguir-lhe o rasto, apetecendo vingar-lhe as penas, salvá-lo da dor de uma cidade que representa o sofrimento que, afinal, circula em todas as nossas cidades.

jef, outubro 2019

«Sangue e Ouro» (Talaye Sorkh / Crimson Gold) de Jafar Panahi. Com Hossain Emadeddin, Kamyar Sheisi, Azita Rayeji, Mehran Rajabi, Ramin Rastad, Pourang Nakhael, Ehsan Amani, Shahram Vaziri, Koveh Najmabadi, Saber Safael. Argumento: Abbas Kiarostami; Fotografia: Hossein Jafarian. Música: Peyman Yazdanian. Irão, 2003, Cores, 95 min.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Sobre o filme «Pulp Fiction» de Quentin Tarantino, 2019
















Existe aqui uma descomunal intuição para a diversão cinematográfica. Uma verdadeira híper-actividade em justapor as melhores personagens dentro dos melhores actores em movimento nos melhores cenários. E, antes de mais, uma narrativa truncada cronologicamente que constrói uma história sem fim feita de histórias que poderiam nunca mais terminar. E claro, a inteligência em colocar todos os temas no melhor diálogo. Uma ironia que logo começa quando o dicionário nos explica que uma «Pulp Fiction» não deve ser levada a sério. Mesmo que o profeta Ezequiel (25:17) nos avise, por diversas vezes, que os bons irmãos vivem rodeados de tremenda iniquidade por todos os lados excepto um, e que só a furiosa raiva nos poderá salvar. Ou que na Europa continental, lá porque usam o sistema internacional das medidas, falam em «Royale with Cheese» quando se trata de hambúrgueres. Ou nos explicam que uma massagem nos pés pode ter interpretações bem mais complexas que uma relação sexual extramatrimonial e lavar a consequências extremas. Ou que existem certas situações ocorridas entre inimigos viscerais que só podem ser sanadas pela silenciosa cumplicidade entre ambos. Ou a saber o melhor lugar onde guardar um relógio em tempo de guerra. Ou que é muito mais rentável assaltar um ‘diner’ que um banco, pois neste todos se escudam em seguros e peripécias financeiras para não entregar o dinheiro…
Tudo é dito e ouvido num filme apenas. Tudo é visto com uma alegria colorida e uma despreocupação de quem tem uma tarde sem nada para fazer e vai ver uma bela “coboiada”.
Só que esta coboiada é mesmo muito a sério e nos deixa para sempre na memória uma dança entre a Uma Thurman e o John Travolta e um modo novíssimo de olhar o velho e maravilhoso cinema americano!

jef, outubro 2019

«Pulp Fiction» de Quentin Tarantino. Com John Travolta, Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Harvey Keitel, Tim Roth, Amanda Plummer, Maria de Medeiros, Ving Rhames, Eric Stoltz, Rosanna Arquette, Christopher Walken, Bruce Willis. Argumento: Quentin Tarantino e Roger Avary; Fotografia: Andrzej Sekula. Montagem: Sally Menke. Produção: Miramax, A Band Apart, Jersey Films. EUA, 1994, Cores, 154 min.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Sobre o filme «Parasitas» de Bong Joon Ho, 2019















Pode dizer-se que é um filme sobre falhados. Tudo aqui falha, a começar pela sociedade e a acabar nos planos, quando existem. Dirá, finalmente, o pai de família. Todos desempregados, pai, mãe, filho e filha, paupérrimos, a viver de expedientes, encontram um modo de vida mais duradouro. Parasitar uma família de ricalhaços parasitas, pai, mãe, filha e filho, americanizados, mascarando-se de índios, a viver numa mansão de estilo e assinatura.

É interessante que o filme que parece vir da comédia americana, com tartes de chantili espetada na cara à Abbott & Costello, é também perversamente sanguinário e estilizadamente politizado. Parece-se com o «Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões» de Hirokazu Kore-eda (2018) ou com «Felicidade» de Todd Solondz (1998), também com o sangue vermelho vivo de «Pulp Fiction» de Quentin Tarantino (1994), misturado com a vivacidade política “nouvelle vague” de «Band à Part» de Jean-Luc Godard (1964) ou com o subterrâneo social de «Underground» de Emir Kusturica (1995). Tudo me foi ocorrendo pelo meio do filme. Será isso um bom sinal?

jef, outubro 2019

«Parasitas» (Gisaengchung) de Bong Joon Ho. Com Kang-ho Song, Sun-kyun Lee, Yeo-jeong Jo, Woo-sik Choi, Hye-jin Jang, So-dam Park. Música: Jeong Jae-il. Fotografia: Hong Kyung-pyo. Coreia do Sul, 2019, Cores, 132 min.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Sobre o filme «O Apartamento» de Billy Wilder, 1960

















Existe aqui uma arquitectura moderna, plástica e social, que pode dizer-se sem época ou termo. Tal como em «Tempos Modernos» de Charlie Chaplin (1936) ou «Playtime – Vida Moderna» de Jacques Tati (1967), ela é cómica e triste, ao mesmo tempo, alertando para os tempos que aí vêm.

Nova Iorque, 1 de Novembro de 1959. C.C. Baxter (Jack Lemmon) sabe que habitam aí 8.042.783 pessoas das quais 31.259 trabalham na “Consolidated Life”, aliás como ele próprio, uma companhia de seguros que, claro, é especialista em estatísticas. Ele vive num apartamento dispendioso perto do Central Park e vai rentabilizando-o emprestando-o a quem dele necessita para os encontros românticos e clandestinos da praxe. Talvez isso lhe renda a ascensão na empresa. Uma das ascensoristas que trabalha nos 16 elevadores é Fran Kubelik (Shirley MacLaine), uma jovem cativante e ambiciosa, também faz pela vida. Todos os dias se cruzam entre portas metálicas e automáticas.

«Some people take, some people get took» diz a ascensorista ao empregado das estatísticas, estratificando deste modo a sociedade. Tal como em Chaplin ou Tati, não existe metáfora mais perfeita para uma sociedade capitalista, material e perversa, que digere a humanidade em bloco sem atender a que cada indivíduo deve ser dono da sua própria estética e moral mas onde todos tendem a ser corrompidos. O concurso da luz fotográfica de Joseph LaShelle que disseca o amplo open-space onde trabalha C.C. Baxter ou a música de Adolph Deutsch que amplia o apartamento onde Fran Kubelik tenta o suicídio, não deixam margem para dúvidas. Todos procuram um espaço que não detêm nem conseguirão reaver, pois a chave anda trocada ou não está debaixo do tapete e os clássicos que passam na televisão são sistematicamente interrompidos por publicidade. Apenas o médico vizinho põe ordem na casa, num papel fundamental de realinhamento social: o Dr. Dreyfuss (Jack Kruschen). Todos os outros andam à deriva: a loira “Marilyn Monroe” (Joyce Jameson), a mulher do jockey preso em Havana Margie MacDougall (Hope Hliday), inclusive o chefe J.D. Sheldrake (Fred MacMurray) que se vê abandonado pela mulher, pela secretária-amante, pela ascensorista…

E se o “happy end” surge inevitável ao som de um possível tiro de uma rolha de champanhe a saltar, apenas é um final remediado onde o baralho de cartas é cortado para uma nova partida de gin-rummy. Contudo, a casa permanece num desalinho!

Jack Lemmon e Shirley MacLaine são rei e rainha, absolutos e gloriosos, nesta sempre actual comédia triste de costumes modernos.

jef, outubro 2019

«O Apartamento» (The Apartment) de Billy Wilder. Com Jack Lemmon, Shirley MacLaine, Fred MacMurray, Ray Walston, Jack Kruschen, David Lewis, Joan Shawlee, Maomi Stevens, Hope Holiday, Edie Adams, Willard Waterman, David White, Johnny Seven, Joyce Jameson. Argumento: Billy Wilder e I.A.L. Diamond. Direcção Artística: Alexander Trauner. Fotografia: Joseph LaShelle. Música: Adolph Deutsch. Som: Fred Lau. EUA, 1960, P/B, 122 min.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Sobre o filme «A Herdade» de Tiago Guedes, 2019
















É um filme que amplia o modo de olhar o cinema comercial português. Não desdenha os bons princípios do nosso cinema. Uma fotografia (João Lança Morais) que plana sobre os olhares, as paisagens e os objectos, oferecendo-os lentamente à compreensão narrativa do espectador. A história está toda ali. A História de Portugal contemporânea também é assim dita pela troca de olhares entre João Fernandes (Albano Jerónimo) e Leonor (Sandra Faleiro), pelas relações sociais entre patrões, assalariados, políticos e militares. Quase silêncio, quase contenção política, quase hipocrisia. Claro que a palavra é concisa mas também é aguerrida, modelada e literária. Essa palavra é a do escritor Rui Cardoso Martins e nota-se bem. O bom cinema tem o mesmo princípio de palavra tida no teatro. A tensão revelada no diálogo entre João Fernandes e o inspector da pide (António Simão) é exemplo cabal. E depois existe o lado novelesco, quase de romance oitocentista, rara saga trágica de uma família, de uma micro-sociedade-macro, centrada em João Fernandes, fazendo o espectador condoer-se por uma personagem que talvez devesse rejeitar.
Mais um belo feito do cinema português.

jef, outubro 2019

«A Herdade» de Tiago Guedes. Com Albano Jerónimo, Sandra Faleiro, Miguel Borges, João Pedro Mamede, Rodrigo Tomás, Beatriz Brás, Diogo Dória, Ana Bustorff, Victoria Guerra, Teresa Madruga, Ana Vilela da Costa, João Vicente, Rodrigo Tomás, Cândido Ferreira, Dinis Gomes, Fernando Rodrigues, António Simão. Argumento: Rui Cardoso Martins, Tiago Guedes e Gilles Taurand. Fotografia: João Lança Morais. Produtor: Paulo Branco. Portugal, 2019, Cores, 166 min.

domingo, 6 de outubro de 2019

Sobre o filme «Debaixo do Céu» de Nicholas Oulman, 2018

















Esta é a história impensável. Porém, acontecida.
Olhamos Berlim destruída, a preto e branco. Uma mulher começa a contá-la. Estamos a 30 de Janeiro de 1933, Hitler e os nazis emergem. O seu pai é judeu e, por acaso, encontra-se em Portugal. Telefona à mulher para que ela e as crianças partam imediatamente da Alemanha e venham ter com ele. Deste modo, a história impensável vai sendo contada. São sete velhos judeus, na altura crianças, que narram geograficamente uma espécie de viagem de Phileas Fogg mas ao contrário. Angustiada, desesperada, triste e muito fria. Desde a Europa Central, por França, passando os Pirenéus, por Espanha, até chegar a Portugal e a essa Lisboa ensolarada, a transbordar de emigrantes refugiados que olham os navios no Porto de Lisboa e sonham com Nova Iorque. Um deles regressa à Alemanha mas agora integra o exército aliado americano e tem de encarar o inimigo, olhos nos olhos. É Sylvain Bromberger que fala.

No final, voltamos à cidade, aos escombros das Portas de Brandenburgo e da Unter den Linden, agora palidamente coloridos. Alguém diz que há uma grande diferença entre “admitir” e “perdoar” e acrescenta que sem o apoio de “la masse du peuple” alemão Hitler não teria conseguido. Mas termina afirmando que, se temos de nos adaptar ao “grande destino”, é nosso dever influenciar o dia-a-dia do nosso “pequeno destino” e estender a mão ao próximo. Inclusive ao nosso inimigo. É Lolita Goldstein que fala.

Quem fala em voz-off sobre as imagens de arquivo e as fotografias tão dificilmente guardadas são ainda Eva Arond, Fred Manasse, Pedro Kalb, Ginette Horowitz, Henny Porter. Todas as histórias tristes das viagens destes Phileas Foggs e Passepartouts são nomeadas no final. para que não restem dúvidas. 

A eles e a todas as vítimas das histórias impensáveis devemos nós a memória, a razão e o carinho.

jef, outubro 2019

«Debaixo do Céu» de Nicholas Oulman. Com Eva Arond, Lolita Goldstein, Fred Manasse, Pedro Kalb, Ginette Horowitz, Sylvain Bromberger, Henny Porter. Argumento: Nicholas Oulman, Beth Calabro Oulman. Música: Diogo Cerejo Fragoso. Portugal, 2018, P/B, Cores, 75 min.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Sobre o filme «Joker» de Todd Phillips, 2019













O mais interessante do filme é a transfiguração que provoca no espectador começando este por não o levar muito a sério, julgando que vai ver mais uma vez o Joker fazer muitas patifarias na decadente, poluída, suja e infestada de ratos, Gotham City, anos de 1980, e acaba por ser transportado até à angústia demente e demoníaca de Arthur Fleck / Joker (Joaquin Phoenix), compreendendo-lhe as dores e o riso infeliz, desde o sonho em assistir ao show televisivo, protagonizado pela magnífica figura criada por Robert de Niro, até à explosão catártica da sua participação real nesse show, deixando Joaquin Phoenix uma marca permanente na criatividade emocional e dramática da célebre figura da DC Comics.

O actor extrapola a sua imagem e o conceito que temos das suas "auto-elogiosas" interpretações anteriores, para atingir um nível visual superior, de expressão fisionómica e expressão emocional, que deixa o espectador numa espécie de desconforto latente, de solidariedade-rejeição, desejando mesmo que chegue em breve o nosso justiceiro Batman e do seu acólito Robin.

Para a transformação de super-herói de banda desenhada em realidade urbana contemporânea bem que concorrem a música de Hildur Guðnadóttir e a fotografia de cores, ora saturadas ora moribundas, de Lawrence Sher.

jef, outubro 2019

Phillips, Todd «Joker». Com Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Marc Maron, Bill Camp, Shea Whigham, Glenn Fleshler, Douglas Hodge, Brian Tyree Henry. Argumento: Todd Phillips e Scott Silver. Música: Hildur Guðnadóttir, Fotografia: Lawrence Sher. EUA / Canadá, 2019, Cores, 122 min.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Sobre o livro «A Morte É Um Acto» de Ray Bradbury. Cavalo de Ferro, 2019 (1951). Tradução de Maria João Freire de Andrade.
















Um daqueles romances nostálgicos, ternos, humanos e belos, que nos lembram que a América (ainda) é um enorme país feito de pessoas, aventuras e literatura. Assim começa:

«Nos velhos tempos, Venice, Califórnia, tinha muito que se pudesse recomendar àqueles que gostavam de se sentir tristes.»

Numa noite chuvosa, um escritor de novelas policiais (e depois, detective) entra num eléctrico e encontra, aterrorizado, alguém que o alerta para a tragédia. Pouco depois, solta um grito ao encontrar um corpo submerso nas águas oceânicas, encarcerado numa jaula de leões. Em tempos, um circo tinha sido atirado à água. Agora, os grandes monstros mecânicos da extracção petrolífera substituem a antiga montanha-russa, o parque de diversões, o velho cinema. Dali a nada, o mundo das divas dos filmes mudos e das cantoras de ópera desaparecerá. É preciso denunciar o crime, porque outros lhe seguirão. O inspector da polícia e detective (mais tarde também ele escritor), Elmo Crumley, que vive num arboreto de plantas exóticas com autofalantes que rugem sons da savana, não está propriamente convencido. É preciso agir (e proteger)!

Ficamos a pensar em Billy Wilder («O Crepúsculo dos Deuses», 1950), David Lynch («Uma História Simples», 1999), Tom Waits («Night On Earth», 1991), Edward Hopper («Nighthawks», 1942)…

Um dos mais belos retratos sobre a solidão e a solidariedade com a velhice. Um acto de amor ao tempo cristalizado e à literatura policial.

jef, outubro 2019