domingo, 31 de janeiro de 2021

Sobre o livro «A Ilha do Tesouro» de Robert Louis Stevenson (1883). Tradução de Alsácia Fontes Machado. Biblioteca dos Rapazes n.º 25, Portugália, ?.





























A Ilha do Tesouro, um dos lugares míticos mais reais na imaginação do homem, cartografada num mapa fundamental que nos faz caminhar, a norte, do Monte do Mastro da Mezena até à meridional Ilha do Esqueleto.

As aventuras que se sucedem de Bristol até à ilha do Monte do Telescópio, superam em ritmo, ousadia, fortuna e rum as de um tal Ulisses que levou décadas a regressar a casa. Aliás, o herói do Mediterrâneo devia pôr os olhos na sorte, no azar e no arrojo marinheiro do miúdo Jim Hawkins que tem tanto de temerário e voluntarioso como de inseguro e acagaçado. A mais perfeita encarnação do «herói helénico».

Jim Hawkins tem na mão, veloz e ininterrupta, a totalidade da narrativa. São os seus olhos que observam a espera angustiada do pirata Bill Bones, o ignóbil ataque à pobre estalagem «Almirante Benbow», as esquivas manobras dos corsários na escuna «Hispaniola». São os seus ouvidos que, de dentro da barrica das maçãs, escutam a futura traição do cozinheiro Silver / João Grande, pirata mau de uma perna só mas de múltiplas faces. (E quando sai de cena entrega a narração ao Dr. Livesey.) É Jim que navega a embarcação até ao abrigo seguro na baía do Norte e recupera a fundamental confiança do hirsuto e abandonado Benjamim Gunn. Nenhum adulto, em consciência cristã e sobriedade alcoólica, teria regressado são e salvo a Inglaterra se não estivesse sob a protecção daquela criança que tanto se assusta quando o Capitão Filinto, o papagaio, grita: «Peças de oito! Peças de oito!».

Se existe um livro que ensina a narrar e a descrever, é este. Os dados estão aqui sempre lançados para que o leitor os vá agarrar e desvendar um pouco mais à frente, sem rodriguinhos e delongas. Ninguém com viva memória esquecerá os pântanos, as nascentes, os pinhais e os carvalhais da Ilha do Tesouro. Por isso, são estes mais reais que todos os desenhados em outorgados planisférios e atlas geográficos.

Pego num livro que tem na primeira página, escrito por mim, a esferográfica, “João. Feira do Livro 1971”. Releio-o provavelmente 50 anos depois. Jim Hawkins permanecerá eternamente miúdo. O meu coração tentará acompanhá-lo.

jef, janeiro 2021

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Sobre o livro «O Bar da Ressaca» (Bar des Flots Noirs) de Olivier Rolin, Dom Quixote 1989. Tradução de Tereza Coelho.

 



Olivier Rolin é um grande escritor que nunca escreveu um único romance convencional. Também nunca escreveu livros de viagens ou inventou alguma narrativa para a ficção. O que lhe interessa é fixar o lugar da viagem, essa coisa nostálgica e ansiosa que persiste, volátil ou indelével, entre cada partida e cada chegada.

As mulheres surgem como objectos de encanto supremo, quase devoção, como inevitáveis marcas dessa ansiedade. Contudo, esse encanto vem desde o início toldado pela angustiada previsão do breve fim. Foi assim em «Veracruz» (Sextante, 2017), com Dariana, essa cantora cubana encontrada e desencontrada pelas praias do México, o livro em que Olivier Rolin se aproxima mais de uma estrutura novelesca. Em «O Bar da Ressaca», o seu profético, poético, quase alienado segundo romance já assim é.

«Esta ideia de partir, fui eu que a tive, evidentemente. Porquê? Não sei bem. Eu prolongo a ilusão do amor com a da viagem: tenho a impressão de que a comédia será mais suave, e que desempenharemos os nossos papéis com mais elegância.»

O ex-cônsul francês, personagem de amor e desencanto, se apaixona perdidamente por empregadas de restaurantes e de bares, apurando uma estratégia por ele delineada entre a ilusão e a ironia, reconhecendo que foi feito mais para a sedução do que para o amor.

Zerlina, Leïla, Amália, Esperanza, Adriana, Aurelia.

Buenos Aires, Lisboa, Trieste, Praga, Alexandria, o Rio de la Plata, o Tejo, o Vltava. O Mediterrâneo.

Borges que, no Martinho da Arcada, afinal recebera instruções e textos de Pessoa para duplicar a persona literária, Kafka, Cavafy, Beaudelaire, Céline, Blake, Apollinaire, Beethoven, Schubert, Mozart.

Famous Grouse, Gin Fizz, e todo o álcool.

As Ruínas do Carmo. É aí, sob os arcos estrelados, que o percurso começa e é também aí que ele pede absolvição pela dor da impotência e do remorso que um dia sentirá na solidão do seu gabinete da Avenida Santa Fé, rodeado de fotografias da França magnífica, quando um pai lhe bate à porta a pedir auxílio.

Um romance sobre a o gene da viagem, a possibilidade do amor, a premência da liberdade e a inevitabilidade do sofrimento.

 

Nota. Um livro para quem deseja conhecer o mundo virtualmente real e literário de um mestre que sempre teve em Portugal um lugar de edição e de refúgio. A sua proximidade fá-lo colecionar para a edição portuguesa uma série de referências usadas mas não referenciadas ao longo do texto. Assim, o leitor não perde o ritmo de leitura e fica, no final, com a leitura duplicada.

jef, janeiro 2021


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Sobre o filme «2046» de Wong Kar Wai, 2004



























É a estética que comanda a cinematografia de Wong Kar Wai e «2046», o seu resumo, a sua revisão consumada. Um princípio que sustenta o cruzamento das diversas histórias; a narrativa realizada em linha quebrada, anacronicamente; as cenas que por vezes se imobilizam, obrigando o olhar do espectador a deter-se nessas fracções de segundo que sublinham a importância de determinadas cenas; o som da música que retorna, uma e outra vez, para dar corpo a uma certa angústia nostálgica que embeleza cada uma das figuras femininas a quem Chow Mo Wan (Tony Chiu-Wai Leung) não se consegue entregar, deixando no jornalista o lastro da desistência e nelas, nas belas mulheres, o sopro dilacerante da desilusão.

«Todas as recordações são rastos de lágrimas», lê-se em epígrafe.

E o jornalista, tentando sobreviver economicamente inicia a escrita de um romance de ficção científica onde as pessoas viajam até 2046 tentando recuperar traços de uma memória perdida. Contudo, de lá ainda ninguém voltou para contar. Esse mundo futurista é o Hotel Oriental em Hong Kong, onde ele está instalado. 2046, é um certo quarto.

Wong Kar Wai filma a proximidade como ninguém, filma como se a câmara possuísse dedos e ouvidos, entregando os espectadores a essa libidinosa beleza, a essa estranha e íntima melancolia, feita de solidão e nostalgia. Talvez carência.


jef, janeiro 2021

«2046» de Wong Kar Wai. Com Tony Chiu-Wai Leung, Ziyi Zhang, Faye Wong, Takuya Kimura, Gong Li, Carina Lau. Argumento: Wong Kar Wai. Fotografia: Christopher Doyle, Lai Yiu Fai, Kwan Pun Leung. Música: Shigeru Umebayashi. Produção: Wong Kar Wai, Eric Heumann, Ren Zhonglun, Zhu Yongde, Jet Tone Films. Hong Kong / China, 2004, Cores, 129 min.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Sobre o filme «A Estação» de Tom McCarthy, 2003































Atraem-me irresistivelmente os filmes vindos de uma América desmesurada, desgarrada, feita de estradas e caminhos-de-ferro sem fim. Também de personagens mais esquecidas que perdidas, mais solidárias que solitárias, onde os velhos cowboys são substituídos por almas boas que se desencontram encontrando-se ao balcão de um diner ou à mesa de plástico de uma rulote de petiscos cubanos.

Fin (Peter Dinklage), trainspotter, miniaturista e conservador de kits ferroviários, recebe de herança uma velha estação de caminhos-de-ferro desactivada. Muda-se para lá procurando recato. Mas ali perto, todas as manhãs, Joe (Bobby Cannavale) instala uma rulote onde vende iguarias cubanas e cafés. Olivia (Patricia Clarkson) vive por perto e é uma das clientes diárias, apesar de ter uma péssima condução. Emily (Michelle Williams) trabalha na biblioteca local e aceita a requisição de um livro sobre comboios de Olivia já que Fin ainda não tem o comprovativo de morada…

As cartas estão dadas, nada há a esconder. Todos eles têm algo a ganhar, como algo a perder, ou a esquecer.

Pode não ser o melhor filme do mundo mas é como uma fábula doce ou uma parábola benfazeja. A ternura que emana das personagens faz-nos bem à alma, acarinhando-as e relembrando-nos de uma América que ainda nos é tão grata, tão ética, afectivamente tão bela e solidária!


Jef, janeiro 2021

«A Estação» (The Station Agent) de Tom McCarthy. Com Peter Dinklage, Patricia Clarkson, Bobby Cannavale, Paul Benjamin, Michelle Williams, Jase Blankfort, Paula Garcés, Josh Pais, Richard Kind, Lynn Cohen, Raven Goodwin, Marla Sucharetza, Jayce Bartok, Joe Lo Truglio, John Slattery, Maile Flanagan, Sarah Bolger. Argumento: Tom McCarthy. Fotografia: Oliver Bokelberg. Música: Stephen Trask. Guarda-roupa: Jeanne DuPont. EUA, 2003, Cores, 86 min.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Sobre o filme «Sibéria» de Abel Ferrara, 2020


 






















Este filme só existe pela cumplicidade existente entre Abel Ferrara e Willem Dafoe. Há seis filmes que a persona do realizador se vê espelhada na invulgar expressividade física e dramática do actor. Assim aconteceu em «Tommaso» em 2019, uma espécie de diário de um realizador de cinema que aguarda o dia seguinte.

No início de «Sibéria», ouvimos o relato em voz off das viagens que dois irmãos faziam com o seu pai em direcção às montanhas frias para as pescarias. Ficamos na dúvida se nelas haveria alguma felicidade entre o frio de rachar e o rosnar feroz dos cães husky. E todo o filme é contado a partir desse átomo e na companhia de cinco desses cães siberianos.

O filme, aliás, parte do isolamento voluntário e gelado de Clint (Willem Dafoe), dono de uma cabana-taberna, espécie de interposto para caçadores e viajantes intra-siberianos, percorrendo, a partir daí, uma série de estágios psicanalíticos ou estações oníricas, citando pesadelos infantis, incompreensões maternais e paternais, alguma ofendida vocação sexual. As cavernas profundas, a neve infinita, as areias saarianas, os jogos infantis, os campos de extermínio, o urso feroz. Por fim, o fogo final, destruidor e redentor. O recomeço.

Tome-se «Sibéria» do lado mais íntimo de Abel Ferrara através da luminosidade desiludida do corpo e da expressão de Willem Dafoe. Deixemo-nos levar pelo incompreensível que está permanentemente guardado na memória desfocada e falível do nosso passado.

E «Sibéria» fará sentido.

 

«Sibéria» (Siberia) de Abel Ferrara. Com Willem Dafoe, Dounia Sichov, Simon McBurney, Cristina Chiriac, Fabio Pagano, Anna Ferrara, Phil Neilson, Laurent Arnatsiaq, Valentina Rozumenko. Argumento: Abel Ferrara, Christ Zois. Fotografia: Stefano Felivene. Música: Joe Delia. Itália, Alemanha, México, 2020, Cores, 92 min.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Sobre o livro «Cartas de Veneza» de Robert Dessaix. Gótica, 2002. Tradução de Mário Dias Correia.


 













Zurique, Locarno, Vicenza, Pádua, Verona, Bolonha. Veneza...

Este é um livro de viagens que contra si fala. Tudo nele, se baseia no contraditório. Viajar desejando ficar, ficar mas talvez achando melhor continuar para frente em busca apenas de um banco numa praça, ao sol.

«Uma das coisas que mais me irrita no facto de ser turista é a minha própria cumplicidade no hábito de riscar coisas numa lista. Os Giottos – feito, Igreja dos Eremitas – feito, Piazza dei Signori – feito, e assim por diante. Quem quer saber? Como um qualquer peregrino medieval, ali estava eu a acumular pontos junto de… junto de quem, exactamente? A quem iria apresentar a minha caderneta? Há algo de estranhamente religioso, no sentido mais conservador, no turismo moderno.»

Um homem foge da Austrália quando sabe de uma notícia definitiva. Não foge exactamente para se encontrar, fugindo por ódio, raiva ou desencanto. Foge para poder ficar parado no presente. E vai escrevendo cartas, possivelmente a Peter, seu companheiro, que deixou longe também a braços com a tal notícia trazida por um Gabriel de bata branca. Resolve partir e viajar como modo de se reconciliar com os caminhos-de-ferro e com o tempo que eles ligam.

Encontra Rachel quando resolve ir ter com Patricia Highsmith e o seu Tom Ripley. Filha dos amores passados e livres no Monte Verità, Rachel contar-lhe-á a história de um libinidoso amuleto de ouro que traz na lapela. Saberá assim das aventuras da baronesa russa Antonietta e do seu jardim botânico nas ilhas Brissago do lago Maggiore.

Ao pequeno-almoço encontra-se com o alemão Professor Eschenbaum que desvia o olhar para contemplar o criado Emilio e lhe narrará a história da cortesã desaparecida Camilla Scamozzi. O professor, entre fugidas nocturnas pelos becos venezianos, perorará sobre o diferente modo de viajar dos venezianos Marco Polo e Casanova.

Em Pádua encontrará um Santo António menos casamenteiro e mais mortalmente sádico. Tenta-se a beijar-lhe o mármore da tumba. Recusa ir visitar um dos primeiros jardins botânicos do mundo. Pelo meio, a rebater o eco da notícia fatal, lê o Inferno e o Paraíso de Dante, combatendo neste uma certa superioridade maternalista de Beatriz.

As extensas notas fim-de-capítulo servem para o autor (e algumas vezes o tradutor) contestarem com histórico humor as deambulações do personagem perdido (ou encontrado) numa verosimilhante e decadente Veneza, contestando também, e ao mesmo tempo venerando, a finitude da cidade de Visconti. Porque neste livro existe sempre a possibilidade do permanente retorno.

Um livro que nos faz tardar o passo ante o decorrer dos dias, ante a fúria compulsiva do pegar-na-mala contemporâneo.


jef, janeiro 2021

 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Sobre o filme «Malmkrog» de Cristi Puiu, 2020


 

















Um filme extraordinário.

Um filme que nos dá todo o tempo para o contemplar e para o ouvir. Um filme de escutar e pensar no fim de uma época, no retorno da filosofia pura, do teatro e da morte. Quem tenha pressa escusa de o ir ver, de o ir contemplar. Tem mais de 3 horas e 20 minutos e todo se passa numa espécie de paradoxo filosófico discursivo entre cinco personagens da aristocracia francófona, encerradas numa mansão senhorial mergulhada na neve natalícia de Malmkrog, na Transilvânia romena de origem alemã.

O fin-de-siècle aproxima-se, a guerra entre a Turquia e a Rússia terminou mas a exposição de Paris de 1900 vai chegar, assim como a revolução russa e as guerras entre fronteiras, a descrença cristã em Deus. Frente à câmara cristalizada sobre a palavra dita, eles peroram: Nikolai (Frédéric Schulz-Richard) fala do Anticristo e Olga (Marina Palii) devota de Cristo não crê na sua ressurreição. A aguerrida Ingrida (Diana Sakalauskaité) fala sobre a transformação moral que recai naquele momento sobre a instituição militar. A devota Madeleine (Agathe Bosch) toma o partido da ressurreição e o pan-europeísta Edouard (Ugo Broussot) teme pela origem helénica da humanidade degradada pela invasão dos selvagens. Todos estão a ser delicadamente servidos por um conjunto de criados liderados pelo altivo, implacável e germânico István (István Téglás). Olga desmaia. O protesto dos trabalhadores irrompe. Surge novamente a neve no jardim e as personagens percorrem-no em tensão. Nada nos é explicado. Será o início da segunda parte. Tudo parece concluir-se pela inconclusão. Uns desejam que a discussão já tenha terminado, outros só pretendem continuá-la. Madeleine acaba de tocar Schubert. Nikolai vai buscar um livro à biblioteca. Edouard sublinha o regresso do Inverno.

A palavra moral dedutiva pensada sobre o presente da morte e o futuro de Deus baseia-se no texto original de Vladimir Soloviov, mas parece aproximar-se ironicamente de Dostóievski ou Tólstoi, afastando-se de uma certa doçura nostálgica de Tchekóv.

Contudo e sem cedências nostálgicas, existe nesta brutal e híper-romântica parábola sobre a morte do futuro um incrível humor substerrâneo, um sarcasmo subliminar, um ódio silenciado que é sustentado pelas maravilhosas representações destes actores geniais.

Um filme que nos conta o fim europeu do século XIX que tão semelhante é ao ciclo iniciado há 20 anos com o nosso novo século. Talvez também já descrente, talvez já decrépito.


jef, dezembro 2020

«Malmkrog» de Cristi Puiu. Com Frédéric Schulz-Richard, Agathe Bosch,

Marina Palii, Diana Sakalauskaité, Ugo Broussot, István Téglás, Zoe Puiu. Argumento: Cristi Puiu baseado em «Os Três Diálogos e o Relato do Anticristo» de Vladimir Solovyov. Fotografia: Tudor Vladimir Panduru. Guarda-roupa: Oana Paunescu. Montagem: Dragos Apetri, Andrei Iancu, Bogdan Zarnoianu. Produtores: Andreas Roald, Jamal Zeinal Zade, Anamaria Antoci, Anca Puiu. Roménia / Sérvia / Suíça / Bósnia e Herzegovina / República da Macedónia, 2020, Cores, 201 min.