sexta-feira, 29 de março de 2019

Sobre o filme «A Pereira Brava» de Nuri Bilge Ceylan, 2018.





















Em 188 minutos de filme, Nuri Bilge Ceylan aprofunda aquela muito sua particularidade cinematográfica. O filme-tese. O filme-texto. O filme-escalpelo. Sinan (Dogu Demirkol) termina o curso e volta à terra natal, Çanakkale, espaço incomum entre o mundo helénico, Bizâncio e Tróia, trazendo na bagagem um romance escrito que aguarda por ansiosa publicação. Ele espera ainda um exame que lhe poderá dar emprego como professor (tal como o pai), porventura no longínquo leste da Turquia.

Sinan é um revoltado, talvez mesmo um misantropo convicto. Laivos de malevolência. Não aceita o percurso de dívidas ao jogo do pai; o caminho conformado da literatura turca; a vida pobre e rural na sua cidade; a rejeição talvez esquecimento por parte das mulheres; o percurso do Islão por aquelas bandas, feito entre o conservadorismo, a renovação e a dúvida laica. Tudo o provoca e o transforma em provocador, com e sem razão. Até a edição final do seu manuscrito «A Pereira Brava».

Em 188 minutos, a Turquia é dissecada através desse olhar quase rancoroso de alguém que não aceita a vida tal como ela lhe aparece em sonhos: a cara e as mãos cobertas de formigas num acto veemente de pré-morte.

O espaço entre a maravilha e a neve, como o realizador gosta de filmar, de longe, em grandes planos impressionistas. A aproximação aos personagens, quase macroscópica, notando a tristeza no olhar que a paisagem não consegue albergar. Johann Sebastian Bach adagiando. Não muito longe, Abbas Kiarostami prefaciando.

Mas serão mesmo necessários 188 minutos para aplacar a revolta com a beleza da palavra afirmada e do horizonte prometido?

jef, janeiro 2019



«A Pereira Brava» (Ahlat Agaci / The Wild Pear Tree) de Nuri Bilge Ceylan. Com Dogu Demirkol, Murat Cemcir, Bennu Yildirimlar, Hazar Ergüçlü. Fotografia: Gökhan Tiryaki. Alemanha / Bósnia / Turquia / Suécia / França / Macedónia, 2018, Cores, 188 min.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Sobre o filme «Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos» de João Salaviza e Renée Nader Messora, 2018.

















Como não queria a coisa, com «Acto da Primavera» (Manoel Oliveira, 1963) ou «Nós por Cá Todos Bem» (Fernando Lopes, 1978) aprendi a olhar a etnografia ficcional, a ficção etnográfica, seja lá o que o cinema for quando filma a realidade mas deseja interiormente transfigurá-la. Essa pulsão híbrida que coloca os espectadores a par com actores-não-actores e paisagens a fingir verosímeis, deixando-nos a vogar entre a crença e a fantasia.
Em «Chuva É Cantoria Na Aldeia Dos Mortos», João Salaviza e Renée Nader Messora têm na mão e nos olhos o manancial inesgotavelmente belo da floresta tropical, horas a fio de presença e filmagens no território do Norte do Brasil, ocupados pelos povos indígenas Krahô. Fazem uma ficção com a verdade do casal (Henrique) Ihjãc Krahô e (Raene) Kôtô Krahô. Ele é chamado pelo espírito do pai para que realize o fim do luto e o deixe partir finalmente para a Aldeia dos Mortos. Porém, o chamamento é maior, Ihjãc quase adoece, os mais velhos acham que se tornará ‘xamã’. Ele recusa, foge para que Arara o esqueça.
Belo é também esse lado político de olhar o Brasil pela epiderme de quem ali sempre sobreviveu e protegeu o que lhe entregava a vida – a floresta e o rio.
Talvez, por fim, o deslumbre dos realizadores se torne em veneração transpondo o real-ficcional para algo um pouco tenso, documental, talvez demasiado enciclopédico.

jef, março 2019


«Chuva É Cantoria Na Aldeia Dos Mortos» de João Salaviza e Renée Nader Messora. Com Henrique Ihjãc Krahô, Raene Kôtô Krahô.  Brasil / Portugal, 2018, Cores, 114 min.

terça-feira, 19 de março de 2019

Sobre o filme «John McEnroe: O Domínio da Perfeição» Julien Faraut, 2018



















Isto não é um documentário. Não é uma reportagem. Isto é um filme.
Aqui discute-se a frase de Jean-Luc Godard «O cinema mente, o desporto não». O que é a verdade no cinema. O que é a verdade num jogo de milhões feito para ser filmado e visto por milhões.
Aqui se vê o trabalho de arquivo, sobre o qual o realizador trabalhou, de Gil de Kermadec, funcionário da Federação Francesa de Ténis, ex-jogador e divulgador educativo da modalidade. Horas de filmagem em 16mm sobre os grandes jogadores e a transformação do ténis no desporto de massas que é agora. Aqui se discute também o efeito da câmara sobre a personalidade do jogador, sobre o resultado do jogo, sobre o modo como o espectador os vê: Jogo e Jogador.
Aqui se vê a longa partida de Roland Garros entre John McEnroe e Ivan Lendl. 1984.
Aqui se ouve os comentários de Serge Daney que vem dos Cahiers du Cinema para o Ténis. Aqui se fala do jogador e do que lhe está em volta (o campo, o fora de campo, o contracampo). Aqui se compara o tempo que se prolonga no ténis ad aeternum com o tempo que logo é finito quando começamos a ver um filme.

Este é um grande filme sobre o tempo, o nosso tempo finito onde o cinema e o desporto ocupam o mesmo espaço. A nossa preplexidade.

jef, março 2019
                                                                      
«John McEnroe: O Domínio da Perfeição» (L'empire de la Perfection / In the Realm of Perfection ) de Julien Faraut. Com John McEnroe, Ivan Lendl, Jacques Pernod, Cedric Quignon-Fleuret, Nicolas Thibault. Narrado por Mathieu Amalric. Som (misturas): Leon Rousseau. Montagem: Andrei Bogdanov. França, 2018, Cores, 95 min.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Sobre o livro «Casos do Beco das Sardinheiras» de Mário de Carvalho, Vega 1981/ Porto Editora, 2014
















Escanifobético, Estapafúrdio, Malacueco…

… enquanto aguardo com óptima ansiedade o próximo tomo «MdC», faço a revisão da matéria dada através destes Casos passados lá para as bandas da Rua dos Eléctricos, entre a Mouraria e Alfama. Assim reza a antiquíssima obra de Jácome Aberracaz, um emérito Doutor nado no bairro e que afirma, em complemento: «Nec enim licet generum confundere humanum cum Emmanuelle Germano (“Convém mas é não confundir género humano com Manuel Germano”)». Também convém ter cuidado com o gato Gigas, se pertencermos à força da ordem! E ainda devemos prestar atenção à Lua que o Andrade engoliu (e deu em livro ilustrado) e às telhas caídas que põem um gajo a falar uma espécie de esperanto! Quanto a aproximarmo-nos de marcos do correio... Nem pensar em tal semelhante!
Um livrinho único para crianças eruditas ou para adultos malacuecos que me apetecia ouvir em radionovela, de telefonia colada à orelha!

Que venha o próximo!

jef, setembro 2014

terça-feira, 12 de março de 2019

Éolo









Éolo

Louvados seriam os ventos fortes, secos e orientais
Perenes como o estatuto desses mantos cingidos véus
Que voando cobrem sem encobrir os corpos das vestais
E preenchem de libido e vapor as nuvens que se espalham pelos céus

jef, março 2019

segunda-feira, 11 de março de 2019

Sobre o filme «A Portuguesa» de Rita Azevedo Gomes, 2018
















Num vasto quadro de planos irreais, quase renascentistas, quase impressionistas, natureza-morta, paisagem-cristalizada, a veracidade dos adereços são coisa pouca. Cenários e personagens movem-se em torno da princesa portuguesa, entediada e herege, von Ketten (Clara Riedenstein), enquanto esta aguarda o seu marido que partiu novamente para a guerra. Von Ketten (Marcello Urgeghe) deseja arrebatar as terras do Bispo de Trento, no norte de Itália; deseja ainda a aventura bélica, que a paz podre não lhe serve.

O filme-pausa sai de uma novela de Robert Musil.

A cena em que a Portuguesa galopa contra o fundo verde de uma floresta que lhe escapa é talvez o tópico maior da intuição estética da realizadora Rita Azevedo Gomes. Essa imagem é como um mural reactivo perante a nova vida da Portuguesa, passada entre animais cativos e folhada morta. O manto florestal combina com os tecidos e as paredes, os brocados e o nevoeiro. Muito de Ofélia sobreviva e lírica aqui se desvenda. Muito também é construído pela fotografia de Acácio de Almeida. Outro tanto pelo diálogo de Agustina Bessa-Luís, ainda mais ajudado pela banda sonora composta por José Mário Branco.

Um filme a contemplar.

jef, fevereiro 2019

«A Portuguesa» de Rita Azevedo Gomes. Com Clara Riedenstein, Marcello Urgeghe, Rita Durão, Pierre Léon, Luna Picoli-Truffaut, João Vicente, Adelaide Teixeira, Manuela de Freitas, Alexandre Alves Costa, Ingrid Caven. Argumento: Rita Azevedo Gomes segundo texto de Robert Musil. Diálogos: Agustina Bessa-Luís. Director de Fotografia: Acácio de Almeida. Som: Olivier Blanc. Música: José Mário Branco Portugal, 2018, Cores, 136 min.

terça-feira, 5 de março de 2019

Sobre o livro «O Meu Nome É Aram» de William Saroyan. Editorial Verbo, Volume 89 – Livros RTP, 1972 (1940). Tradução de Jaime Lisboa.















Em onze curtos contos William Saroyan entrega-nos
o Manual da Cordial Discordância,
a Enciclopédia da Desobediente Lisura e da Resistência Fleumática,
o Tratado da Sagaz Condescendência para atingir o tão desejado e inútil fim.
Um livro sobre a loucura contemplativa e a elegante inocência de uma juventude nascida pelos desertos de Fresno, Califórnia, sobre infantes descendentes de todos os povos que devem cumprir a tradição americana da Emerson School de há um século. Todos são estrangeiros em casa e até o índio Locomotiva 38 da tribo Ojibway não pertence ao cenário.

Sobre os mais velhos loucos-sãos, primos, tios, merceeiros e afins, recai o olhar complacente de Aram Garoghlanian, o jovem americano-arménio sem sotaque, amigo de todos, ou pelo menos compreensivo, que, mais tarde, ao partir de camioneta para Nova Iorque, é salvo pelo profeta em fato-macaco e passa a acreditar em tudo.

«O Meu Nome É Aram» é um extraordinário Dicionário de Tão Bem Escrever pequenas histórias, loucas narrativas, diálogos libertários.

A bela tradição de Oscar Wilde, Edgar Allan Poe, Mark Twain, Charles Dickens, Jerome K. Jerome…

jef, março 2019

sexta-feira, 1 de março de 2019

Sobre o filme «As Cinzas Brancas Mais Puras» de Jia Zhang-ke, 2018


















Jia Zhang-ke afasta-se do mundo do movimento social desestruturado e calada falência de laços familiares que a China moderna provoca. Vão longe «24 City» (2008) e «Still Life – Natureza Morta» (2006), talvez dois dos mais importantes 'filmes sociais' que vi. Contudo, o local da actual barragem das Três Gargantas está lá e a maravilhosa actriz Zhao Tao, também. Aproximamo-nos de «Se as Montanhas se Afastam» (2015) e também dos Village People. Ali, «Go West» pela versão dos Pet Shop Boys, agora «YMCA». Canções-ícones que provocam uma dessintonia temporal entre o Ocidente e o Oriente chinês, alertando para um conflito de aproximação e, simultânea, rejeição face à modernidade e à quebra da tradição. Assunto muito de Jia Zhang-ke.

Interessante, a incursão «americana» no melodrama amoroso, intenso e insolúvel, quase pungente, à moda de Nicholas Ray ou Vicente Minnelli, quando a jovem e voluntariosa Qiao (Zhao Tao) se apaixona por Bin (Liao Fan) líder da máfia, e, por amor, se entrega a cinco anos de prisão, iniciando-se um conflito sentimental que nos faz seguir por uma estratégia de filme-viagem entre episódios sucessivos, quase contos independentes, por vezes desconexos, baseados em diálogos soberbos e numa cenografia muito característica no realizador. De facto, Zhao Tao, digamos, sustenta o filme com a caracterização das ‘múltiplas personagens’ de Qiao.


Se eu não fosse avesso às classificações de género na arte, diria que este filme é um belo 'filme feminista'.

jef, março 2019
                                
«As Cinzas Brancas Mais Puras» (Jiang hu er nv / Ash is Purest White) de Jia Zhang-ke. Com Zhao Tao, Liao Fan, Yi'nan Diao. Fotografia: Eric Gautier. Música: Lim Giong. China / França, 2018, Cores, 137 min.