terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Homem Morto» de Jim Jarmusch, 1996



















Jim Jarmusch do outro lado do espelho.

Este filme é mais sobre a inocência do que sobre a morte.

William Blake (Johnny Depp) perde os pais e a namorada e viaja até aos confins do mundo americano com uma carta de emprego para contabilista numa metalúrgica. Não sabe para o que vai, está inocente. Porém, ultrapassa o faroeste e entre numa zona onde a morte certa é mais um símbolo que um alerta. Em defesa própria, mata Charlie Dickinson (Gabriel Byrne), filho do dono da metalúrgica John Dickinson (Robert Mitchum), e passa a ter a cabeça a prémio. Foge de si próprio, é ferido, entra num mundo mais sonhado que desejado, pelo meio de desfiladeiros desertos e sequoias gigantes. Encontra Ninguém, uma espécie de Ulisses que entende o lado vital da morte mas não compreende nada do que ele diz. Um índio que confunde William Blake com o espírito do poeta inglês, tirando-lhe os óculos para que possa ver melhor o caminho do outro lado da superfície do espelho. E prepara-o para fazer a travessia até ao lado de lá do oceano.

Não existe filme mais belo e poético (também mais cómico) sobre os actos de morrer e de matar. Não sei bem como explicar mas há aqui qualquer coisa que me lembra uma espécie de literatura gráfica, as oníricas trevas de «A Sombra do Caçador» (Charles Laughton, 1955).

Viva Johnny Depp! Viva a música de Neil Young! Viva a fotografia de Robby Müller!

Viva o endiabrado espírito de Jim Jarmusch que não consegue fazer um filme igual ao outro, colocando sempre o bondoso braço sobre o ombro cinematográfico dos cândidos personagens!


jef, dezembro 2020

«Homem Morto» (Dead Man) de Jim Jarmusch. Com Johnny Depp, Gary Farmer, Robert Mitchum, John Hurt, Crispin Glover, Iggy Pop, Gabriel Byrne, Lance Henriksen, Michael Wincott, Eugene Byrd, Jared Harris, Mili Avital, Jimmie Ray Weeks, Mark Bringelson, John North, Peter Schrum. Argumento: Jim Jarmusch. Fotografia: Robby Müller. Música: Neil Young. Produção: Karen Koch, Demetra J. MacBride. EUA, 1996, P/B, 116 min.

 

domingo, 27 de dezembro de 2020

Sobre o filme «O Mal Não Existe» de Mohammad Rasoulof, 2020































Bella Ciao!

Este é um filme belo e importante. Mesmo muito belo e muito importante. Defende uma causa, infelizmente ainda universal e cada vez mais actual. Um filme contra a hedionda pena de morte que  sublinha a objecção de consciência por parte de quem a tem de executar. Ganhou o urso de ouro no Festival de Berlim e levou o seu realizador Mohammad Rasoulof à prisão e à proibição de realizar filmes por propaganda contra o regime iraniano.

O mais interessante é o facto das quatro histórias, independente entre si, conjugarem-se, interligando-se moralmente não pela perspectiva do executado mas do executante e da possibilidade de recusa por parte deste. As histórias vão apontando o dedo à ignomínia de modo cada vez mais profundo perante a falta de ética daquele acto bárbaro. A primeira história conta a vida simples e honesta, o modo pacato, respeitador, inocente de um carrasco. A segunda acelera e coloca a questão do crime institucionalizado por norma legal, descriminalizando o criminoso, terminando com uma fuga da prisão e uma cancão: Bella Ciao! A terceira vai derrotar o encantamento de um noivado pela brutal consciência de um crime “involuntário”, na execução de um ser amado e inocente. A quarta conclui o ciclo inteiro de uma vida escondida e adulterada por uma evasão que evitou o perpetrar da execução. A confissão do facto, no final da vida, destrói as ligações e impossibilita o amor entre gerações.

O realizador junta-se a Jafar Panahi e a outros realizadores impedidos de filmar por crime de rebeldia contra o Estado de um país com uma cultura e uma cinematografia fulgurantes. E apesar de não conter o brilho narrativo de Abbas Kiarostami, todas as quatro histórias são inscritas numa beleza emocional quase dorida, incontida pela linha narrativa livre e ágil que nos faz recordar as histórias maravilhosas com que a antiga Pérsia nos vem encantando até aos dias de hoje.   

    

jef, dezembro 2020

«O Mal Não Existe» (There Is No Evil) de Mohammad Rasoulof. Com Ehsan Mirhosseini, Shaghayegh Shourian, Kaveh Ahangar, Mahtab Servati, Baran Rasoulof. Argumento: Mohammad Rasoulof. Fotografia: Ashkan Ashkani. Música: Amir Molookpour. Produção: Farzad Pak, Mohammad Rasoulof, Kaveh Farnam, Farzad Pak. Irão / Alemanha / República Checa, 2020, Cores, 151 min.

 

Sobre o filme «Um Lugar à Beira-mar» de Takeshi Kitano, 1991































Se existe uma palavra para descrever o filme, essa palavra é «candura».

Toda a vida está aqui contida, simples ou complexa. Tão nostálgica, tão efémera, tão profunda. Tão bela. Fico com a mesma sensação de plenitude que fiquei ao ver essa absoluta obra-prima de Abbas Kiarostami «Close-up» (1990). Nada mais se pode acrescentar ao modo de olhar os dias que vão correndo, assim muito depressa, ou tão devagar.

Shigeru (Kurodo Maki) é surdo-mudo e trabalha na recolha de lixo. Namora com Takako (Hiroko Oshima), também surda-muda. Encontra uma prancha de surf partida, restaura-a e começa a surfar. O seu sonho concretiza-se. De início, não é fácil, sob o riso dos surfistas mais experientes mas sempre sob o olhar complacente, quase devoto, de Takako. Com o ordenado seguinte compra uma prancha profissional. Abnegadamente, vai melhorando a olhos vistos e um professor, dono de uma loja de surf, oferece-lhe um fato e insiste para que participe nos torneios federados. Na praia, falha o primeiro porque não ouvem a chamada. Mas vence um troféu no seguinte. Shigeru oferece o seu velho fato a um novo iniciado. O ciúme aparece, assim como uma furtiva lágrima. Depois, o ciúme desaparece. E uma prancha surge na praia vazia.

Takeshi Kitano conta tudo em silêncio como em homenagem ao inicial átomo cinematográfico, enquanto se vão ouvindo uma série de “gnossianas” melancolicamente joviais de Joe Hisaishi.

Tudo filmado como se os actores estivessem numa plateia e a câmara fixa filmasse na exacta perpendicular de cada uma das filas ou no perfeito paralelismo dos passos dos personagens, em travellings que não hesitam nem cruzam. Como se estivéssemos a ouvir uma história para crianças ou uma parábola bíblica.

Para que não restem dúvidas de que a dúvida é certa.

No fim, todos regressam, como no teatro, agora na praia, agradecendo com risos e pantomimas o aplauso silencioso de uma câmara genial!


jef, dezembro 2020

«Um Lugar à Beira-mar» (A Scene at the Sea / Ano natsu, ichiban shizukana umi). Com Kurodo Maki, Hiroko Oshima, Sabu Kawahara, Toshizo Fujiwara, Susumu Terajima, Katsuya Koiso, Toshio Matsui, Yasukazu Ishitani, Naomi Kubota, Tsuyoshi Ohwada, Tatsuya Sugimoto, Meijin Serizawa, Tetsu Watanabe, Keiko Kagimoto, Kengakusha Akiyama. Argumento e Montagem: Takeshi Kitano. Fotografia: Katsumi Yanagishima. Música: Joe Hisaishi. Produção: Masayuki Mori e TakioYoshida. Japão / 1991 / Cores / 96 min.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Felizes Juntos» de Wong Kar Wai, 1997


































Wong Kar Wai sente-se tão à vontade em Buenos Aires como em Hong Kong. Melhor. É Buenos Aires que o prende e motiva a sua linguagem colorida e musical, feita de pormenores, aproximações microscópicas, sorrisos velados, lágrimas apartadas, para que a história de amor e repúdio nunca caia em melodrama e persiga a sua via caminhando até ao farol argentino do fim do mundo. O farol onde as mágoas se podem libertar, libertando quem delas é cativo.

No início, sobre a garganta furiosa das águas do Iguaçu Caetano Veloso canta “Cucurrucucu Paloma”. Mas os dois namorados Lai Yiu Fai (Tony Chiu-Wai Leung) e Ho Po Wing (Leslie Cheung), já desentendidos, não a chegarão a ver juntos. Lai segue para Buenos Aires e trabalha diariamente em vários empregos. Ho percorre a cidade à procura de aventuras e namorados. Até que, após uma luta, este aparece ferido junto a Lai que o recolhe com carinho, cuidando e alimentando-o, mas reprimindo o amor que ainda lhe guarda. Mais tarde, Lai descobrirá a dádiva cerimoniosa do amor junto de um colega de cozinha onde trabalha, Chang (Chen Chang), que levará as suas penas até ao fim do mundo num gravador de cassetes.

O mais espantoso é que o modo denso, tenso mas ao mesmo tempo terno e fugaz, híper-realista, com que nos é mostrado o quarto onde os dois amantes vivem, subtraindo-lhe a provável claustrofobia, mostrando antes a aproximação (e a simultânea recusa) de um amor desejado mas irrealizável. Tudo em torno de um candeeiro que, quando aceso, exibe a queda de água nas cataratas do Iguaçu. Símbolo de uma falhada estação de chegada mas também de um hipotético porto de abrigo.

As cenas no interior do quarto lembraram-me a forma amorosa com que Jim Jarmursch acarinha as personagens. As cenas nas estradas distantes em busca de um Iguaçu perdido, recordou-me Wim Wenders e as suas viagens para resgatar ou esquecer a sombra funesta do passado.

Tudo narrado com o difícil equilíbrio entre a tragédia do amor imperfeito e a esperança da redenção no futuro.

Uma belíssima história de amor, tão impossível quanto comum.


jef, dezembro 2020

 «Felizes Juntos» (Happy Together) de Wong Kar Wai. Com Tony Chiu-Wai Leung, Leslie Cheung, Chen Chang, Gregory Dayton. Argumento: Wong Kar Wai e Manuel Puig, segundo um romance deste último. Fotografia: Christopher Doyle. Música: Danny Chung. Canções: “Cucurrucucu Paloma” por Caetano Veloso, Astor Piazzolla, “Happy Together” por The Turtles. Produção: Produção: Wong Kar Wai, Chan Ye Cheng, Hiroko Shinohara, T.J. Chung, Jet Tone Films. Hong Kong / China, 1997, P/B e Cores, 96 min.

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Sobre o «Jornal de Natal», The Inspector Cheese Adventures & Xerefé edições, Dezembro 2020.


 






































Não existe mais nenhum jornal como este!

O melhor presente de Natal! E tão em conta!

São 24 páginas para 23 artistas que ilustram um Natal como deve ser. Mesmo em papel de jornal, 41 x 29 cm. Dos antigos, a preto e branco, sem agrafos, páginas grandes que, ao desdobrar, se sacodem um pouco para folhas se endireitarem.

Imagens preenchendo todo o nosso campo de visão, abarcando-o, motivando-o, espevitando-lhe a lembrança de passados recentes e velhos futuros.

As imagens parecem antigas mas são muito novas. Parecem uma sucessão de documentos ilustrados, notícias sem tempo, anúncios publicitários fora de moda. Exactamente como os calendários do Advento ilustrados, com janelinhas para abrir e observar com o microscópio do desejo.

Que a página seguinte, a 25ª, a do próximo ano 2021, seja ilustrada pelos sonhos que todos merecemos e imaginamos.

 

jef, fevereiro 2020

 

Postos de venda do «Jornal de Natal» (1 euro). AÇORES: Companhia das Ilhas. AVEIRO: Gigões e Anantes. BRAGA: 100a Página. COIMBRA: Escola da Noite. ÉVORA: Fonte de Letras. LISBOA: Baobá, it’s a book, Leituria, Lusco Fusco, Snob, STET, Tinta nos Nervos. PORTO: Poetria. SINTRA: Hipopomatos. VILA NOVA DE GAIA: Velhotes. VILA REAL: Traga Mundos.

Editores: Ana Biscaia e André Ruivo.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Anjos Caídos» de Wong Kar Wai, 1995












Surge como uma série de quadros remanescente do filme anterior, «Chungking Express» (1994). Dois personagens com as suas histórias percorrem esteticamente a noite imparável de Hong Kong, iluminada por néons, ao som do chocalhar das pedras de Majongue. Uma noite que, apesar de atafulhada de gente, de snack-bares orientais e diners fumarentos mantém cada um deles no seu mundo perfeito e solitário. Wong Chi-ming (Leon Lai) é assassino profissional e recebe mensagens por fax com os trabalhos a executar. Ho Chi-mo (Takeshi Kaneshiro), foge à polícia, vive com o pai, não fala, obriga todos os que encontra a serem seus clientes em negócios que foi engendrando: geladaria, talho, lavandaria, barbearia. O primeiro não deseja conhecer a sua parceira de profissão por temer apaixonar-se. O segundo aprende a filmar em vhs e grava o último bife que o pai lhe frita. Uma rapariga de cabelos louros difíceis de esquecer une os dois personagens. Uma das canções da jukebox contém um derradeiro recado.

Talvez seja o filme em que o próprio realizador se deslumbra com o deslumbramento da sua própria linguagem, levando o filme atrás de um sentido musical que nos faz parar diante das canções. Laurie Anderson & Brian Eno, Massive Attack, Marianne Faithfull. Não lhe podemos escapar. Se a banda sonora e as imagens feéricas tornam «Anjos Caídos» num filme musical ou num vídeo-clip de longa-metragem é pouco importante!

O que importa é mesmo a irreal realidade do cinema de Wong Kar Wai.


jef, dezembro 2020

«Anjos Caídos» (Fallen Angels) de Wong Kar Wai. Com Leon Lai, Michelle Reis, Takeshi Kaneshiro, Charlie Yeung, Karen Mok, Fai-Hung Chan, Man-Lei Chan, Toru Saito, To-Hoi Kong, Lee-Na Kwan, Yuhao Wu. Argumento: Wong Kar Wai. Fotografia: Christopher Doyle, Andrew Lau Wai Keung. Música: Frankie Chan, Roel A. García. Produção: Wong Kar Wai, Chan Ye Cheng, Jacky Pang Yee Wah, Jet Tone Productions Ltd. Hong Kong / China, 1995, Cores, 99 min.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

 






Palavras, objectos curiosos.

Não matam mas moem.

Não morrem mas salvam.

Estão sempre aqui como em qualquer lugar.

São elas agora como sempre o foram e talvez serão.


Futuro, objecto curioso.

Não existe mas enleva.

Não se esgota mas escasseia.

Apresenta-se diariamente apenas em função de um potencial.

Extingue-se no acto da concretização.


Casa, objecto deveras curioso.

Pode não exibir batente, aldraba, taramela, gelosia

mas permanece casa.

Talvez por ser uma palavra.

Talvez por não admitir sinónimos.

Por se resguardar sempre no passado.


jef, dezembro 2020


quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Apaga o Histórico» de Benoît Delépine e Gustave Kervern, 2020




Por vezes (talvez demasiadas vezes), a França esquece-se de que o humor é a coisa mais séria no cinema e no teatro. A comédia, a mais difícil das artes. Esquece-se também que o humor deve fazer o espectador olhar de um modo diferente, tirando à sua própria realidade redes e almofadas, oferecendo-lhe um novo modo de consciência, ético e estético, mas acima de tudo profundamente prazenteiro. Por exemplo, esquece-se que Jacques Tati nos deu o critério arquitectónico e o rigor nostálgico do silêncio em «O Meu Tio» (1958); que Sacha Guitry, em «O Veneno» (1951), trocou as voltas à moralidade provando como o crime compensa e recompensa; que Jean Renoir nunca deixou de sorrir e fazer tremer as instâncias sociais e políticas com obras-primas como «A Grande Ilusão» (1937) ou «A Regra do Jogo» (1939).

Acima de tudo, o humor jamais deverá rebaixar a humanidade à indigência, à indignidade, numa sucessão de gags, peripécias e hipotético riso, em nome da liberdade e do non-sense narrativos. Para mim, não existe non-sense social mais fino, destemperado e sério que em «O Sentido da Vida» dos Monty Python (1983). Mas aqui já atravessámos o canal da Mancha.

E o assunto é mais do que grave e poderia até dar origem às mais vivas gargalhadas. Mas não, apenas ficamos com a sensação de que estivemos a gozar com doentes viciados na internet. Três adultos, Marie, Bertrand e Christine, vivem absolutamente dependentes do pequeno ecrã, já não sabem comportar-se socialmente na família e no espaço em volta, não conseguem trabalhar ou trabalham precariamente. Tentam arranjar um hacker que lhes resolva os problemas que correm descontrolados pelo espaço sideral. Entretanto, sem que o non sense entenda porquê, Bertrand é mordido por um burro. No final, tudo acabará bem, embora negligentemente mal.

Enfim, um tiro em cada um dos pés na comédia cinematográfica.

 

jef, dezembro 2020

«Apaga o Histórico» (Effacer l’Historique) de Benoît Delépine e Gustave Kervern. Com Blanche Gardin, Denis Podalydès, Corinne Masiero. Argumento: Benoît Delépine e Gustave Kervern. Fotografia: Hugues Poulain. França / Bélgica, 2020, Cores, 110 min.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Uma História Simples» de David Lynch, 1999.





















Se existe um filme de Natal é este. Talvez até mais do que «Do Céu Caiu uma Estrela» (Frank Capra, 1946), «Música no Coração» (Robert Wise, 1965), «Mary Poppins, (Robert Stevenson, 1964) ou «O Estranho Mundo de Jack» (Henry Selick, 1993). Talvez mesmo mais literário que «O Conto de Natal do Senhor Scrooge». É a história de um homem que deseja ainda voltar a contemplar as estrelas junto do seu irmão.

Vejo-o para refazer a minha ideia de humanidade e de uma América clara, complacente, solidária, solitária, percorrendo nostalgicamente as suas extensões on the road.

Evidentemente, um filme sobre o tempo irrecuperável que me faz sempre chorar baba e ranho. Porém, todo o poder irónico e visual de David Lynch está lá, em cores saturadas, junto às casas, ao solo, aos relvados, ao asfalto, filmado abstractamente tão perto da figura de todos os americanos como do perfil de cada um deles. Um sarcástico carinho transbordante, sublinhando não os defeitos dos homens mas a sua capacidades de os superar.

Dedicado a Alvin Straight (1920-1996) que oferece a história verdadeira de um homem de 73 anos, combatente da Segunda Grande Guerra, que vive com a sua dedicada filha, Rose (Sissy Spacek). Ao receber a notícia de que o irmão Lyle (Harry Dean Stanton) está gravemente doente resolve ir visitá-lo, recuperando uma amizade perdida há dez anos. Alvin (Richard Farnsworth) não tem carta de condução e não gosta de ser conduzido, por isso fará a viagem de 500 km, desde Laurens no Iowa até Mount Zion no Wisconsin, conduzindo um cortador de relva durante seis semanas.

Não há história mais simples e terna sobre o fim do tempo. Ou, melhor, sobre a sua duplicação.

  

jef, dezembro 2020

«Uma História Simples» (The Straight Story) de David Lynch. Com Richard Farnsworth, Sissy Spacek, Jane Galloway Heitz, Joseph A. Carpenter, Donald Wiegert, Tracey Maloney, Dan Flannery, Jennifer Edwards-Hughes, Ed Grennan,  Jack Walsh, Matt Guidry, Bill McCallum, Barbara E. Robertson, Everett McGill, Anastasia Webb, James Cada, Sally Wingert, Barbara Kingsley, Ralph Feldhacker, Harry Dean Stanton. Argumento: John Roach, Mary Sweeney. Música: Angelo Badalamenti. Fotografia: Freddie Francis. Produção: Pierre Edelman, Neal Edelstein, Michael Polaire, Mary Sweeney. EUA, 1994, Cores, 112 min.

sábado, 12 de dezembro de 2020

Sobre o livro «Coleccionadores» de Mário de Carvalho. Raiz Editora, 1995.

 









Este é um dos livros da minha biblioteca pequenina (1). Prezo tanto esta como a outra, a dos calhamaços. Dela continuarei a dar notícia, numerando os tomos por facilidade coleccionista, agora que ando arrumar estantes.

O conto «Coleccionadores» é retirado da terceira parte do primeiro livro de Mário de Carvalho «Contos da Sétima Esfera», inicialmente editado pela Vega em 1981.

O volume é o número 3 da colecção “Baratinha” e tem mesmo como símbolo um simulacro do artrópode parasita. Tem 30 páginas em formato de fotografia ao estilo da já esquecida viagem ao santuário do Sameiro ou da bênção das fitas de formatura da neta. 10,5 x 15 cm. Dirigida por Cristina Duarte e Graça Magalhães. Tem duas interessantes ilustrações, presume-se, do director gráfico João Botelho. Ainda inclui uma apresentação do texto, «A Aventura de Ler», doutamente escrita por Teresa Almeida, onde nos são explicadas as diferentes directrizes que conduzem a vertente onírica e fantástica da imaginção louca de Mário de Carvalho, alicerçada na teoria de Tzevetan Todorov sobre a aceitação do caso como pura fantasia literária ou, mais além, como realidade gerida por leis ainda a descobrir. Enfim, teorias!

Tudo num invejável apuro editorial, muito limpo, bem maquetado, com ISBN e Depósito Legal. E, claro, texto integral. Tudo muito explicadinho não vá o super-narrador e falido personagem contador da história (ou o seu amigo Diniz Álvares, emergente coleccionador de mapas falsos) deixar de acreditar na futura Guerra das Nações provocada pela feroz capacidade geográfica de um pingo tanino de vinho sobre um velho planisfério.

Mário de Carvalho é um dos grandes contadores da literatura em português, como é prova esta grande narrativa contada em 15 páginas pequeninas.

Viva a leitura em tempos de Natal farrusco, chuva parva e pandemia pirata!


jef, dezembro 2020

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Chungking Express» de Wong Kar Wai, 1994


 






























De certo modo, podia ser um «Blade Runner» (1982) pelo ritmo inóspito de sobrevivência, pela atmosfera oriental e saturada, pela desconfiança solitária no futuro. Mas em «Chungking Express» existe uma maravilhosa tendência non sense para o humor superlativo e para a ternura cerimoniosa que o coloca no lado oposto do distópico filme de Ridley Scott.

O polícia 223, He Zhiwu (Takeshi Kaneshiro) tem dificuldade em apanhar os malfeitores na noite densa de Hong Kong talvez porque a sua namorada May o deixara no final de Abril. Por mais que corra para que o corpo não possua água suficiente para as lágrimas, por mais que coma ananás de latas com prazo a terminar a 1 de Maio, o alimento referido de May, não consegue esquecer o abandono e vai até a um famoso bar na cidade afundar as mágoas em whisky. Aí encontra uma incógnita rapariga de gabardina, óculos escuros, cabeleira loura, fugida do drug dealer que acabara de lhe roubar o produto. No quarto de hotel, ela dorme, ele come batatas fritas. Mais tarde, no dia 1 de Maio, dia do seu aniversário, recebe uma mensagem de parabéns da incógnita loura.

No snack-bar onde telefona diariamente, o polícia 223 quase não repara na nova empregada Faye (Faye Wong). Porém, esta faz boa nota do polícia de giro 663 (Tony Chiu-Wai Leung) que está prestes a romper o namoro com uma comissária de bordo. Sabendo que ele ali vai todos os dias, quando esta última parte deixa-lhes as chaves num envelope nesse snack-bar. Secretamente, Faye pega nelas e começa a frequentar a casa do polícia nas suas horas de turno. Assim, principia um namoro platónico em qualquer dos sentidos.

Sobre estes dois contos cruzados, Wong Kar Wai verte doses colossais de movimentos de câmara, iluminação, sons, canções e música que até podia fazer-nos crer estarmos frente a um enorme video-clip, não fosse a parcimónia narrativa, ao mesmo tempo nostálgica e sorridente, com que preenche a alma e o olhar dos personagens. Esse modo devoto como Faye enche de carpas o aquário do polícia 663, ou o carinho com que o polícia 223 limpa com a gravata os sapatos da mulher adormecida.

Um filme sobre a generosa solidão. Um filme que fica nos ouvidos.


jef, dezembro 2020

«Chungking Express» de Wong Kar Wai. Com Tony Chiu-Wai Leung, Brigitte Lin, Faye Wong, Takeshi Kaneshiro, Valerie Chow, Jinquan Chen, Lee-Na Kwan, Zhiming Huang, Liang Zhen, Songshen Zuo. Argumento: Wong Kar Wai. Fotografia: Christopher Doyle, Andrew Lau Wai Keung. Música: Frankie Chan, Michael Galasso, Roel A. García. Canções: “California Dreamin” The Mamas & the Papas; “What a Diff'rence a Day Made” por Dinah Washington. Produção: Wong Kar Wai, Chan Ye Cheng, Jacky Pang Yee Wah, Jet Tone Productions Ltd. Hong Kong / China, 1994, Cores, 102 min.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sobre o livro «O Inverno do Nosso Descontentamento» de John Steinbeck, Livros do Brasil, 2014 (1961). Tradução de João Belchior Viegas.











Ethan Allen Hawley vive em New Baytown. É descendente de orgulhosos caçadores de baleias e piratas aristocráticos. Acompanhamo-lo da Páscoa até ao Dia da Independência. Possui na vitrine um talismã dado pela tia Deborah e ao lado, numa pata de elefante, a bengala feita de dente de narval vinda do avô marinheiro. Traz na memória o ancestral incêndio no navio Belle Adair e a perda pelo pai da propriedade da mercearia onde agora trabalha como empregado. Tem uma encantadora esposa, a amorosa e confiante Mary, e dois filhos tão comuns quanto adolescentes: Ellen e Allen.

E sobre o livro nada mais pode ser dito sem estragar a sua capacidade “cinematográfica” de manietar o leitor numa rede secreta (mas trágica) que nos faz acarinhar as doces personagens para, logo de seguida, lhes entregar a suspeita da vingança e da desiludida resignação.

Certamente New Baytown ainda hoje existe, mas sem poder ostentar essa falsa mas literária ingenuidade que agora é dissecada até ao osso pelas redes sociais. Certamente, também hoje, ainda permanecerá essa crença profunda numa “América pura” (e hipócrita) mesmo que a verdade sobre a sua “impureza” esteja exposta aos quatro ventos.

O poder dos diálogos em descrever e narrar o que não está dito (nem olhado), de acicatar o crescente estado de inquietude romântica provocado pela sua leitura, lançam-nos num suspense quase policial, intimista e psicótico, a lembrar a inquietação sarcástica de Hitchcock ou Highsmith.

Um romance que se lê com a mesma cativante premência que nos é imposta pela sorridente crueldade de «Alice no País das Maravilhas».


jef, dezembro 2020

 


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Estranhos de Passagem» de Stephen Frears, 2002



 














Um dos meus filmes de sempre, daqueles que jamais me cansarei de rever. E não é apenas por ouvir durante a ficha técnica final «Glass, Concrete & Stone», uma das mais bonitas canções na fase II de David Byrne (in «Grown Backwards», Nonesuch 2004).

Também não será somente pelo ternurento confronto das duas personagens que, partilhando um pequeno apartamento, não se podem encontrar em público por causa dos serviços de estrangeiros e dos inspectores de trabalho. O actor Chiwetel Ejiofor dá corpo a Okwe, o imigrante nigeriano ilegal que partilha a casa clandestinamente com Audrey Tautou, a jovem turca Senay que não possui licença de trabalho. Encontram-se de fugida no hotel do pérfido Señor Juan, um magnífico Sergi López que ganha a vida alugando quartos para ali vender a vida de alguns pobres aos que, tendo dinheiro, podem comprar para a sua própria sobrevivência.

Acima de tudo, comove-me a perícia de Stephen Frearas para transformar, pelo ritmo do suspense, pela carinhosa fraternidade de todos aqueles estrangeiros de passagem, a realidade trágica das sociedades ocidentais “ricas” numa espécie de triste comédia ultra-romântica.

Através do labor angustiado dos belos Senay e Okwe, também das amizades do porteiro russo Ivan (Zlatko Buric), da prostituta Juliette (Sophie Okonedo) ou do sábio operador da morgue Guo Yi (Benedict Wong), a hostil cidade de Londres transforma-se, de certo modo, num recanto solidário de esperança e amorosa humanidade.


jef, dezembro 2020

«Estranhos de Passagem» (Dirty Pretty Things) de Stephen Frears. Com Chiwetel Ejiofor, Audrey Tautou, Sergi López, Benedict Wong, Sophie Okonedo, Zlatko Buric, Jeffery Kissoon, Kriss Dosanjh, Israel Oyelumade, Yemi Goodman, Nizwar Karanj, Paul Bhattacharjee, Darrell D'Silva, Barber Ali, Rita Hamill, Josef Altin, Ron Stenner, Kenan Hudaverdi, Adrian Scarborough. Argumento: Steven Knight. Fotografia: Chris Menges. Música: Nathan Larson. Grã-Bretanha, 2002, Cores, 93 min.