quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Sobre o filme «Apaga o Histórico» de Benoît Delépine e Gustave Kervern, 2020




Por vezes (talvez demasiadas vezes), a França esquece-se de que o humor é a coisa mais séria no cinema e no teatro. A comédia, a mais difícil das artes. Esquece-se também que o humor deve fazer o espectador olhar de um modo diferente, tirando à sua própria realidade redes e almofadas, oferecendo-lhe um novo modo de consciência, ético e estético, mas acima de tudo profundamente prazenteiro. Por exemplo, esquece-se que Jacques Tati nos deu o critério arquitectónico e o rigor nostálgico do silêncio em «O Meu Tio» (1958); que Sacha Guitry, em «O Veneno» (1951), trocou as voltas à moralidade provando como o crime compensa e recompensa; que Jean Renoir nunca deixou de sorrir e fazer tremer as instâncias sociais e políticas com obras-primas como «A Grande Ilusão» (1937) ou «A Regra do Jogo» (1939).

Acima de tudo, o humor jamais deverá rebaixar a humanidade à indigência, à indignidade, numa sucessão de gags, peripécias e hipotético riso, em nome da liberdade e do non-sense narrativos. Para mim, não existe non-sense social mais fino, destemperado e sério que em «O Sentido da Vida» dos Monty Python (1983). Mas aqui já atravessámos o canal da Mancha.

E o assunto é mais do que grave e poderia até dar origem às mais vivas gargalhadas. Mas não, apenas ficamos com a sensação de que estivemos a gozar com doentes viciados na internet. Três adultos, Marie, Bertrand e Christine, vivem absolutamente dependentes do pequeno ecrã, já não sabem comportar-se socialmente na família e no espaço em volta, não conseguem trabalhar ou trabalham precariamente. Tentam arranjar um hacker que lhes resolva os problemas que correm descontrolados pelo espaço sideral. Entretanto, sem que o non sense entenda porquê, Bertrand é mordido por um burro. No final, tudo acabará bem, embora negligentemente mal.

Enfim, um tiro em cada um dos pés na comédia cinematográfica.

 

jef, dezembro 2020

«Apaga o Histórico» (Effacer l’Historique) de Benoît Delépine e Gustave Kervern. Com Blanche Gardin, Denis Podalydès, Corinne Masiero. Argumento: Benoît Delépine e Gustave Kervern. Fotografia: Hugues Poulain. França / Bélgica, 2020, Cores, 110 min.

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