quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Sobre o filme «Os Excluídos» de Alexander Payne, 2023

 
















Ver um filme de Natal em tempos de Quaresma é coisa muito interessante. 

Por outro lado, é bom ver um filme de Natal verdadeiramente clássico, daqueles que misturam a comédia e a lágrima de modo muito assertivo, onde se confrontam os tradicionais valores americanos (e do Ocidente e do Mundo) com esse modo dramático de os colocar em confronto com a situação psicológica e social de uma América do início dos anos 70 do século passado: uma mãe negra, gorda, cozinheira-chefe num colégio interno, que perdeu o filho na guerra do Vietnam, Mary Lamb. Uma bela mulheraça interpretada por Da'Vine Joy Randolph. Um aluno rebelde, magro, depressivo e angustiado, Angus Tully, que, por razões provocadas pela sua nova família, fica retido nas férias de Natal naquele inóspito colégio, interpretado pelo magnífico Dominic Sessa, que para seu maior azar, fica sozinho sob a vigilância do não menos inóspito professor de História Clássica, Paul Hunham. Quem dá corpo a esse terceiro ser rejeitado, entre o rancor, o álcool e a defesa pela justiça no Mundo, é o maravilhoso Paul Giamatti.

Ver um óptimo filme americano de Natal fora de época é bom! Faz pensar nos filmes de Frank Capra que são vistos por toda a família, que fazem lagrimejar e entusiasmar, onde a discriminação, a solidão, o abandono (ou a doença ou a guerra), lá aparecem mas dentro de uma comédia para os fazer sublinhar e melhor os compreendermos.

Fez-me relembrar que os filmes podem ser belos, éticos e inteligentes, realizados com subtileza e mestria, sem terem de nos massacrar com litros de sangue e ignomínia barata. Aqueles que eram vistos por todos com alegria. Vem-me logo à memória «O Milagre da Rua 8» (Matthew Robbins, 1987), «Always» (Steven Spielberg, 1989) ou «Os Ricos e os Pobres» (John Landis, 1983). 

Enfim, gosto de ver filmes de Natal em época de Paixão.


jef, fevereiro 2024

«Os Excluídos» (The Holdovers) de Alexander Payne. Com Paul Giamatti, Da’Vine Joy Randolph, Dominic Sessa, Carrie Preston, Brady Hepner, Ian Dolley, Jim Kaplan, Michael Provost, Andrew Garman, Naheem Garcia, Stephen Thorne, Gillian Vigman, Tate Donovan, Darby Lee-Stack, Bill Mootos, Dustin Tucker, Juanita Pearl. Argumento: David Hemingson. Produção: Bill Block e David Hemingson. Fotografia: Eigil Bryld. Música: Mark Orton. Montagem: Kevin Tent. EUA, 2023, Cores, 133 min.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sobre o disco «Multitudes» de Feist, Polydor / Universal, 2023


 


















Após «Pleasure» (2017), essa espécie de abraço à pop lançada sobre o rock, as longas faixas conceptuais, de espírito sinfónico, e os coros a prolongarem-se pelo fim das canções, ao fundo dos estúdio-palco, Leslie Feist aterra na balada mais pop quase folk, ou vice-versa, (não esquecer as colaborações que a cantora tem tido com os noruegueses Kings of Convenience).

São 12 canções quase lineares a tocar o passado e o reflexo que ele tem constantemente no presente. Nós e o outro num lugar onde a presunção de mantermos o equilíbrio, exactamente com o outro, é posto diariamente em causa:

«How can I know what to do?

What´s harder that finding my place in the truth

Is to keep it a secret once I do

‘Cause it might hurt someone more than I would want to».

A Terra, a Mulher, os Amigos Tristes, a Solidão, a Tentativa Reiterada, o Amor Fugitivo, a Morte, o Futuro e a Esperança numa produção muito simples, quase acústica, a lembrar a bela, híbrida e melódica transgressão feminina de Leyla McCalla, Haley Heynderickx, Fiona Apple ou das irmãs Ibeyi.

Tudo está aqui a descoberto e encantado nas canções de Feist no interior de um álbum íntegro e adulto.


jef, fevereiro 2024

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sobre o livro «A Cova do Lagarto» de Filomena Marona Beja (1944-2023), Sextante 2008


 









No final de 2023 faleceu a grande escritora Filomena Marona Beja. Uma grande mulher que fazia da investigação documental técnico-científica o fulcro da sua vida, transpondo-o depois para uma linha de romance (novela ou conto), simultaneamente histórico e ficcional, que se tornou incomparável.

Digamos, Romances de acção, rápidos, pontuados pela truncagem da ordem cronológica e quase sem partículas adjectivantes. Parágrafos curtos, períodos sintomáticos. Talvez romances difíceis de ler para aquele leitor menos atento ou um pouco mais ensonado. Textos exigentes e literariamente perfeitos. Romances empenhados politicamente, quase de intervenção, buscando as parcelas mais fugidias da sociedades, aquelas que menos atenção têm, as mais desprotegidas. Aqueles temas que afinal são os mais suculentos.

Filomena Marona Beja, em 2007, lança uma biografia única sobre o homem que mudou a face urbanística e arquitectónica de Lisboa e de Portugal do Estado Novo. Duarte Pacheco. Um homem híper-activo, agitado, imparável, que impunha regras, orçamentos e planos de obra exigentes. De braço dado e, ao mesmo tempo, de costas viradas para Salazar. Um homem cativante, talvez sedutor, talvez misógino. Sem tempo para descansar, que colocou dezenas dos mais prestigiados arquitectos e engenheiros, nacionais e estrageiros, a dar corpo ao seu pensamento. Presidente da Câmara de Lisboa, por três meses, ministro por três vezes. O Instituto Superior Técnico e Porfírio Pardal Monteiro. A Exposição do Mundo Português e Cottinelli Telmo. As escolas e os telhados de Raul Lino. A zanga com Mira Fernandes. Uma Lisboa novíssima, ampla e expropriada. A guerra na Europa e Portugal entre a espada e a parede, mas apesar de tudo a avançar com os olhos postos na Alemanha. E Duarte Pacheco continuava, imparável, a fazer seguir a alta velocidade o Buick Roadmaster conduzido por Joaquim Mangas. Atrás da porta do Ministério, Venâncio Marques, o correio do Gabinete. Ainda Luciana, Rosalina Catorze e a Estalagem em Portalegre. Disso pouco mais se sabe mas intui-se.

«A Cova do Lagarto» um romance enorme, plural e sincopado, justo e rápido. Adiante. Talvez um dos melhores romances da agora desaparecida grande escritora, tão justa quanto discreta, a grande Filomena Marona Beja.


jef, fevereiro 2024

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Sobre o filme «Vidas Passadas» de Celine Song, 2023


















O amor inacabado ou o amor por cumprir é um tema delicado no cinema, contudo é um tema eterno. Nora (Greta Lee, em adulta) e Hae Sung (Teo Yoo, em adulto) encontram-se por três vezes na vida com intervalos de 12 anos. Companheiros e rivais de notas na escola aproximam-se ainda mais quando a família de Nora decide emigrar para o Canadá. Esta é a história. Nada mais. A história da chama desse amor inacabado ou por cumprir não se extingue. Ela está presente muito mais nos silêncios e nas ausências do que no diálogo ou na presença.

O silêncio e o modo de incómodo estruturante-fracturante que o desejo do amor provoca são os assuntos mais sólidos do filme, sustentados por dois grandes actores em modo de devoção latente e reprimida: Greta Lee e Teo Yoo. Talentosos e bonitos.

A distância continental e os diferentes modos culturais são o sedimento da inconsequência. Porém, as breves frases trocadas (num apuro de minúcia narrativa) e a fugitiva timidez dos olhares contêm todo o filme, todo o desejo, toda a desesperança e resignação.

É impossível não me lembrar de três obras-primas no tema do amor incumprido pelo gume do destino: «Breve Encontro» (David Lean, 1945); «Disponível para Amar» (Wong Kar-Wai, 2000) ou um outro, pelo qual me apaixonei recentemente, «O Som do Nevoeiro» (Hiroshi Shimizu,1956).

«Vidas Passadas» na sintomática simplicidade do seu título nunca ganhará óscares nessa Hollywood agora votada à inestética da violência digital, televisiva e gratuita. Na Hollywood contemporânea o amor não lhe faz sentido.


jef, fevereiro 2024

«Vidas Passadas» (Past Lives) de Celine Song. Com Greta Lee, Teo Yoo, John Magar, Moon Seung-ah, Leem Seung-min, Ji Hye Yoon, Choi Won-young, Ahn Min-Young, Seo Yeon-Woo, Kiha Chang, Shin Hee-Chul, Jun Hyuk Park, Jack Alberts, Jane Kim. Argumento: Celine Song. Produção: David Hinojosa, Pamela Koffler, Christine Vachon. Fotografia: Shabier Kirchner. Música: Christopher Bear, Daniel Rossen. Guarda-roupa: Katina Danabassis. EUA / Coreia do Sul, 2023, Cores, 105 min.

 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Sobre o filme «Anatomia de Uma Queda» de Justine Triet, 2023















Um filme minucioso, cheio de pormenores e retoques, onde a actriz Sandra Hüller representa a escritora, mãe, esposa (viúva), investigada, esmiuçada e levada a tribunal acusada de um homicídio – Sandra Voyter.

Um filme que entretém o espectador de modo impressionante, apesar dos pormenores e dos retoques, apesar da duração. Um filme que parece usar (extraordinariamente) a técnica narrativa de episódios sucessivos como é comum nos telefilmes de fim-de-semana. Ou melhor, das mini-séries tão em voga. Três episódios: “O Caso”, “A Investigação”, “A Acusação”.

Um filme que toca o coração: Uma criança bonita, talentosa, com deficiência, exposta ao massacre (e salvadora); Um cão maravilhoso (e salvador); A crise masculina sobre a emancipação femimina e homossexual; O confronto entre a realidade e a ficção; O fosso entre a verdade, as provas, o argumento e a justiça final.

(Mas por que razão tanto salpico? Por que razão a voz da criança sobreposta aos lábios do defunto?)

O filme é, acima de tudo, a actriz Sandra Hüller, um papel difícil, digníssimo e merecedor de prémios!

Um filme de moda. Um filme que sugere ser feito à medida “realista” do digital mas que não possui aquela aura dramática do teatro, mesmo no interior do tribunal.

E quando se fala em tribunais (e em teatro) logo me lembro de peças únicas (para mim claro!). O tal, o grande «Anatomia de um Crime» (Otto Preminger, 1959), cujo nome não esconde a reverência (ou a cópia). O extraordinário «O Veneno» (Sacha Guitry, 1951) com o maravilhoso Michel Simon a virar o bico ao prego. Ou a cena louca neo-realista no tribunal siciliano de «Salvatore Giuliano» (Francesco Rosi, 1962).

Comparo o incomparável.

Contudo, «Anatomia de Uma Queda» dá uma bela tarde de cinema ao fim-de-semana.


jef, fevereiro 2024

«Anatomia de Uma Queda» (Anatomie d'une chute) de Justine Triet. Com Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner, Antoine Reinartz, Samuel Theis, Jehnny Beth, Saadia Bentaïeb, Camille Rutherford, Anne Rotger, Sophie Fillières, Messi (o cão), Julien Comte, Pierre-François Garel. Argumento: Justine Triet e Arthur Harari. Produção: Marie-Ange Luciani e David Thion. Fotografia: Simon Beaufils. França, 2023, Cores, 151 min.

 

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Sobre o filme «A Zona de Interesse» de Jonathan Glazer, 2023


 





Quando se tem na memória os filmes monumentais sobre a monumental catástrofe da humanidade – «Noite e Nevoeiro» (Alain Resnay, 1956) ou «Shoah» e «Sobibor, 14 de Outubro 1943, 16 Horas» (Claude Lanzmann, 1985, 2001), é bem provável que entremos no cinema com um pé atrás e a condição comparativa em estado de alerta. Contudo, quando se vê a alegoria iraniana «III Guerra Mundial» (Houman Seyedi, 2022), acreditamos que o cinema ficcional (e não documental) ainda pode pegar no Tema sem ofender essa minha memória informativa, formativa, adquirida e fundamental. Tenho para mim que o cinema apenas pode tocar no monstro com as pinças da sensibilidade, da estética e da ética.

Por isso, este filme arrepiou-me. 

Sugeriu-me ser uma comédia a fingir que é tragédia, pouco séria e confusa, infeliz e perigosa, a roçar a morbidez apenas para chocar e dar um certo ar “gore” para apresentar-se moderninha e violenta, como agora está tão na moda ser a “arte contemporânea”. E, como é óbvio, para piscar o olho aos Óscares.

Para quê a memória “polaca” em formato negativo e com a jovem resistente a distribuir frutos pelos escombros, pelas cinzas, ainda a descobrir a pauta de uma possível canção de resistência?

Porquê filmar assim, sem decoro, estética ou reverência, fazendo mover aspiradores pela actual memória dos calabouços de Auschwitz?

Para quê a consulta médica e os vómitos inconsequentes de Rudolf Höss (Christian Friedel)? (Eu sei que em ficção tudo pode coexistir mas quem conseguiria respirar alegremente paredes meias com as chaminés dos fornos crematórios?)

Tento reavaliar a minha memória através dos velhos filmes, dos livros e da música. Vou buscar sem demora o disco «Terezín / Theresienstadt» com Anne Sofie von Otter, Bengt Forsberg, Christian Gerhaher, Daniel Hope (Deutsche Grammophon, 2007)

Tento esquecer o filme.

Vou já ler «Se Isto é Um Homem» de Primo Levi (1947).


jef, fevereiro 2024

«A Zona de Interesse» (The Zone of Interest) de Jonathan Glazer. Com Sandra Hüller, Christian Friedel, Freya Kreutzkam, Ralph Herforth, Max Beck, Ralf Zillmann, Imogen Kogge, Stephanie Petrowitz, Johann Karthaus, Marie Rosa Tietjen, Luis Noah Witte, Nele Ahrensmeier, Andrey Isaev, Medusa Knopf, Julia Polaczek, Daniel Holzberg, Zuzanna Kobiela, Martyna Poznanski. Argumento: Jonathan Glazer baseado no romance de Martin Amis. Produção: Ewa Puszczynska e James Wilson. Fotografia: Lukasz Zal. Música: Mica Levi. EUA / Reino Unido / Polónia, 2023, Cores, 104 min.