domingo, 30 de dezembro de 2018

Sobre o filme «Girl: O Sonho de Lara» de Lukas Dhont, 2018














Digamos que «Girl» é um filme improvável.

É também um filme discreto que foge aos clichés que se esperariam ao abordar um dos temas da moda, ditos, sabe-se lá por que razão, fracturantes. Ainda por cima, sobre a realidade biográfica de um jovem.
Assim, «Girl» é um filme também sério, sensível, bipolar.

Bipolar, pois Lara deseja tanto ser rapariga como ser bailarina clássica, apesar das dificuldades da transformação hormonal, apesar das características morfológicas do corpo de rapaz. O realizador Lukas Dhont dá muito mais forma ao esforço exigido a uma jovem bailarina do que à preparação médica, colocando em primeiro lugar a tenacidade superior de uma vontade e o enquadramento amoroso de uma família exemplar.

Sério, pois apesar de ser um filme político sobre a aceitação social do esforço de transformação de um adolescente, centra-se no tónus muscular exigível, dando corpo à angústia tão desesperada quanto melancólica pela ansiada mudança. Os reais suor, sangue e lágrimas de Lara nos ensaios (passo eu o cliché) são ultrapassados pela extraordinária sensibilidade emocional do actor Victor Polster, explorada sem nunca sentirmos a câmara tocar a fronteira fácil do voyeurismo mórbido. Sim, Victor Polster merece um prémio!

«Girl», nessa dualidade da transformação de um corpo pela violência do bailado e pela violência sexual que a adolescência sempre obriga, concluído com um unhappy–happy end, é acima de tudo um filme de um novo e terno “realismo”.

jef, dezembro 2018
                                       
«Girl: O Sonho de Lara» (Girl) de Lukas Dhont. Com Victor Polster, Arieh Worthalter, Oliver Bodart, Katelijne Damen e Tijmen Govaerts. Argumento: Angelo Tijssens. Holanda / Bélgica, 2018, Cores, 109 min.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Sobre o filme «Roma» de Alfonso Cuarón, 2018














Cidade do México. Bairro ‘Roma’. 1970-1971. Uma família burguesa  – um casal em ruptura, uma avó, quatro miúdos, duas criadas e um cão. Apollo 13, 'Jesus Cristo Superstar', eleições e conflitos estudantis. A ordem é arbitrária desde que coloquemos no centro familiar Cleo (Yalitza Aparicio), a criada gentil, atenta e carinhosa, em torno da qual tudo gira. O realizador toma a pulso a parte de leão do filme, desde a produção à direcção da fotografia, homenageando os afectos da infância.

O curioso é que este filme poderia até ser mudo, apenas com alguns slides a negro esclarecendo uma ou outra frase do diálogo, em vários tons conforme a proveniência dos falantes, caso a banda sonora aqui não fosse tão importante. O som é fundamental! Note-se o crescente marulhar das ondas na cena fulcral, épica e climácica, da família junto ao mar em Tuxpan acompanhando a tensão criada no salvamento. Ou o riscar estridente dos cromados do Ford Galaxy. Ou a longa cena “silenciosa” na plateia do cinema quando Cleo se vê abandonada pelo namorado Fermín (Jorge Antonio Guerrero) enquanto decorrem as últimas cenas de «A Grande Paródia» (Gérard Oury, 1966). Ou no final, enquanto ela sobe os dois pisos até ao terraço dos estendais ao som de uma cidade que se esvai e os dois aviões sobrevoam a diagonal do céu, repetindo a imagem que no início assistíramos, espelhada na água que vai encharcando o chão do pátio.

Todas as cenas sonoras são estudadas, todos os enquadramentos, ponderados, todas as expressões e gestos, sentenciosos, todos os reflexos medidos para que funcionem como retábulos ou ícones sucessivos, mudos, religiosos, medievais, ou como imagens de uma moderna história de animação ou quadradinhos nas páginas de alguma banda desenhada. As cabeças de cão embalsamadas, as cenas do tiroteio lúdico, o incêndio florestal, o homem-bala que salta cruzando o céu tal como os simbólicos aviões. Tudo sai de um expoente estético que, por vezes, soa um tanto a truque ou tique e nos faz perder o olhar ou o ouvido, descolando-nos da emotividade que, realmente, «Roma» contém.

Passamos 135 minutos de intensa cinematografia, esplêndidos cenários, amorosas criaturas, uma banda sonora extraordinária, uma luminosidade e silêncio sintomáticos, tudo a envolver uma soberba mãe mexicana. Yalitza Aparicio, Cleo.

jef, dezembro 2018
                                                                      
«Roma» de Alfonso Cuarón. Com Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Nancy García, Marco Graf, Daniela Demesa, Jorge Antonio Guerrero, Andy Cortés, Fernando Grediaga, Veronoca García. Realização, Produção, Argumento, Fotografia: Alfonso Cuarón. EUA / México, 2018, Preto e Branco, 135 min.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Sobre o livro «Abraços» de André Ruivo, STET – livros & fotografias + the inspector cheese adventures, 2018






















Existem dois artistas meus amigos que utilizam o modo (ou a grata mania) dos “cadernos” como experiência técnica ou classificação estética para as respectivas publicações. Um modo classificativo de lineu que organiza desorganizando as respectivas obras. É tão clássica e académica quanto infantil e lúdica.

Esses artistas são Gonçalo M. Tavares e André Ruivo.

André Ruivo edita agora «Abraços», finalmente em A4, capa cor-de-rosa em pausa, agrafo negro. Um formato que aguardávamos com alta e benéfica ansiedade. Nem todas as páginas estão preenchidas, nem todas as páginas contêm amplexos a 4 cores, como antes se dizia. Nem todas as páginas são brilhantes e envernizadas. Nem todas as páginas são tomadas pela cor macia da grafite deslizando sobre a rugosidade do papel OR, um papel tão bom para dobragens e abraços.

Mas todas são híper-românticas e comoventes. Excelentes para a sobrevivência vital e a acalmia da alma tanto quanto a dopamina, a seratonina, a adrenalina, todos esses alcalóides ou neuro-qualquer-coisa que se libertam quando abraçamos verdadeiramente alguém que se ama.

O caderno «Abraços» de André Ruivo é irresistível. 

Desarma qualquer um. Ou seja, pacifica qualquer um.

Viva a seratonina que se liberta em cada abraço!

jef, dezembro 2018

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Sobre o filme «Um Verão de Amor» de Ingmar Bergman, 1951















«Sommerlek est le plus beau des filmes», disse Jean-Luc Godard. Depois escreveu mais, muito mais. Parece que Bergman não apreciou muito o estilo, o pedestal, o ‘elogio-elegia’ mais do autor do que de análise ao filme.

A realidade é que «Um Verão de Amor» é uma obra de uma beleza arrasadora e com uma construção narrativa perfeita onde a mestria de Bergman está contidamente à solta. Um enorme flash-back conta a história de dois amigos que se tornam amantes numas férias de Verão. Marie é uma Maj-Britt Nilsson luminosa e sombria que percorre a mesma ventosa floresta, agora invernosa, o mesmo palacete envolto numa poalha dourada de um Verão eternamente cristalizado na memória. O diário de Henrik (Birger Malmsten), escrito nesse Verão, separa as águas deste melodrama cujo final o transforma, afinal, numa espécie de epopeia triunfante, em poema épico e deslumbrante.

O filme move-se num mundo tão romântico e desabridamente libertador como num mundo povoado de penumbras e presságios, como a cultura greco-latina gostava de emoldurar os seus dramas.

A tia de Henrik (Mimi Pollak), jogando o xadrez de Bergman com o padre (Gunnar Olsson), lança-lhe uma praga, quase lei. Erland, o tio de Marie (Georg Funkquist), propõe uma longa viagem onde a construção de muros se torna eficaz. Elisabeth, a tia de Marie (Renée Björling) , lança um véu de censura e silêncio sobre a sala. Uma ave de rapina pia. Tudo é clássico. Tudo é romântico.

Copellius (Stig Olin) director do teatro, surge na sombra nocturna, mascarado de palhaço, e diz a Marie que só se consegue viver destruindo os muros. Marie desmaquilha-se ao espelho e confessa em voz-off que estranhamente se sente feliz. O bailado «Copelia» de Delibes vai começar.

«Um Verão de Amor» é irresistivelmente soberbo.

jef, dezembro 2018

«Um Verão de Amor» (Sommarlek) de Ingmar Bergman. Com Maj-Britt Nilsson, Birger Malmsten, Alf Kjellin, Annalisa Ericson, Georg Funkquist, Stig Olin, Mimi Pollak, Renée Björling, Gunnar Olsson, Christopher Lee. Fotografia: Gunnar Fischer. Música: Erik Nordgren, Delibes, Tchaikovsky. Suécia, 1951, P/B, 96 min.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Sobre o filme «Sorrisos de uma Noite de Verão» de Ingmar Bergman, 1955














Nunca se entende muito bem se as comédias de Bergman falam do amor, se da morte. Não são propriamente comédias negras, mas são altas comédias onde o laivo de tristeza pelo irrecuperável ou pelo intangível sustém cada palavra, cada gesto estudado, cada esgar. Se existe um realizador dramático, no sentido da tragédia grega ou da comédia shakespeariana, ele é Ingmar Bergman. Tudo parece ser o que deve parecer, tudo será o que o espectador, mais ou menos atento, sentirá ou quiser.

A pedido de sua filha Desirée Armfeldt (Eva Dahlbeck), actriz e amante em simultâneo do advogado Fredrik Egerman (Gunnar Björnstrand) e do conde-militar Malcolm (Jarl Kulle), a Madame Armfeldt (Naima Wifstrand), transportada ao colo da cama para a mesa, juntará os amantes durante alguns dias. Ao jantar, todos se sentam frente da anfitriã e beberão o vinho baptizado com gotas de leite de mulher e de esperma de cavalo. O elixir da verdade do amor, infalível!

Claro, também ali se encontram a condessa Charlotte Malcolm (Margit Carlqvist), o filho do primeiro casamento de Frederik, Henrik Egerman (Björn Bjelfvenstam) e a jovem madrasta deste, Anne Egerman (Ulla Jacobsson). Além, desse objecto de desejo, Petra, a criada de Anne (Harriet Andersson).

Os dados da reconciliação estão lançados. Porém, eles têm diversas faces e a do amor, para os apaixonados, contempla a do castigo. Felizes os amantes que vivem sem paixão e, por isso, não serão castigados. É essa a luminosa e sombria conclusão a que chegam Petra e o criado (Gösta Prüzelius) enquanto pretendem fugir um do outro e trocam juras permanentes de casamento.

Feliz o Amor por ser finito, infeliz a morte por infinita.
Delicadas, as noites de Verão que contêm os três sorrisos.

«Sorrisos de uma Noite de Verão» é um dos mais belos, divertidos, intrigantes  e melancólicos filmes de Ingmar Bergman.

jef, dezembro 2018

«Sorrisos de uma Noite de Verão» (Sommarnattens leende) de Ingmar Bergman. Com Ulla Jacobsson, Eva Dahlbeck, Margit Carlqvist, Harriet Andersson, Gunnar Björnstrand, Jarl Kulle, Åke Fridell, Björn Bjelfvenstam, Naima Wifstrand, Jullan Kindahl, Natorp Malla, Birgitta Valberg, Bibi Andersson, Gösta Prüzelius. Fotografia: Gunnar Fischer; Música: Erik Nordgren. Suécia, 1955, P/B, 108 min.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

«A Ceia de Natal» na Igreja de São Roque, em Lisboa















«A Ceia de Natal» é o título do 15º Auto de Natal organizado pela Irmandade da Misericórdia de São Roque. A belíssima Igreja no Largo Trindade Coelho acolhe-o. Acolhe-nos.

Avisam-nos ao início, sob um céu luminosos de pássaros coloridos que o tema é, precisamente, a casa cujo tecto é o firmamento e as paredes ausentes, o refúgio. A ceia é imaginada. Os nomes, passando a fronteira e mudando a língua, perdem a força e a identidade. Um mundo de refugiados sem refúgio. (O nosso velho Mundo actual!) Tal como São José e Nossa Senhora grávida em busca de estalagem, fugindo de Herodes.
(E o Gabriel Anjo corre atrás dos respectivos sapatos…)

Quem escreve é Ana Lázaro, quem representa as aves são as muitas idades, desde os passarinhos mais pequeninos (do Parque Infantil de Santa Catarina) até aos mais velhos (do Centro de Dia do Alto do Pina), no coro, no altar. Cantam, dançam, encantam-se e encantam-nos na consciência divertida da amizade e da solidariedade.
É mesmo muito comovente! E muito bonito!

Hoje à tarde, 17 de Dezembro de 2010, pela Igreja de São Roque em Lisboa, haverá nova récita!
Ainda vão a tempo!

(nota: ao longo do programa que contém a dramaturgia, podemos ir aprendendo a fazer passarinhos de papel!)


jef, dezembro 2018

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Sobre o livro «O Relatório de Brodie» de Jorge Luis Borges. Quetzal, 2013 (1970). Tradução de António Alçada Baptista.















«O exercício das letras é misterioso. Aquilo que opinamos é efémero e opto pela tese platónica da Musa e não pela de Poe, que razoou, ou fingiu razoar, que a feitura de um poema era uma operação da inteligência. Não deixa de me admirar que os clássicos professassem uma tese romântica e que um poeta romântico adiantasse uma tese clássica.»

Borges assim razoou, e contra ele próprio escreveu, no prólogo breve que antecede e apazigua, sem “esclarecer”, estes onze contos, ímpares e díspares entre si, onde a imaginação e a ignomínia colocam o leitor, direi melhor, o ouvinte, numa posição de amável ferocidade, pois quem escreve o toma por cúmplice e quase padrinho destas somíticas, por sucintas, notas da vida das palavras.

O espaço não tem espaço. Situa-se algures na grande América Latina, entre a Argentina, o Chile ou o Brasil, os pampas e os gaúchos, gente de garra e farpa, faca e sangue. Pouca fala, muito embuste. Num tempo sem tempo onde a história era ouvida e re-ouvida, alterada e acrescentada ao sabor dos pontos e dos contos por quem ia passando.

Quem lê pode nem ficar interessado em esclarecer o facto de as personagens que narram e escutam virem do limbo da pura ficção ou serem sonegadas de uma realidade tão mágica quanto cruel.

Aqui aprende-se a ler, ultrapassando a barreira da fantasia, sem alguma vez colocar em causa o princípio da beleza da prosa e o espírito breve do sonho e da tragédia.

jef, dezembro 2018

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

«Djon África» de João Miller Guerra & Filipa Reis, 2018














Existe em «Djon África» qualquer coisa de profundamente genuíno, de cinema empírico, desse cinema que corre atrás das personagens que são actores, que são, eles próprios, figuras reais que ali (aqui) transformam a sua verdade com plasticidade e encanto.

A história é simples e urgente, comum. É o mote para seguirmos a viagem de Djon África, John Tibars, Miguel Moreira, afectuoso e desengonçado, puro e sensível, trabalhador eventual na construção civil, nascido numa vaga e extensa Lisboa. Ele deseja conhecer o pai cabo-verdiano que esteve preso e depois (talvez) tenha regressado para a cidade da Praia, em Santiago.

Os realizadores João Miller Guerra e Filipa Reis deixam-se cativar pelo fluir da sinceridade de um povo, pelo modo de todos os personagens-figurantes se entregarem à câmara como se entregam à vida, ao funaná, à festa, ao grogue. Simplesmente assim, sem nunca fazer dogma da Música de um dos países mais musicais do mundo; sem a presunção de querer, mais ainda, embelezar aquelas paisagens eruptivas e maravilhosas; sem querer elevar aristocraticamente a vocação intuitiva de um Povo, em jeito da política turística de “Verde Gaio / António Ferro”.

É muito bom irmos pendurados atrás da vaneta que nos dirige até às praias do Tarrafal ou acompanharmos o humor enlouquecido e solitário de Bitori Nha Bibinha. Tudo corre bem, afastando-nos tanto do nefasto documentarismo, como do teatral e genial Pedro Costa («Casa de Lava», 1994). Contudo, no final, não existe o golpe de mestre, a centelha de fulgor, o tal segredo que nos deixa em equilíbrio instável como quando assistimos às obras maiores do cinema.
Falta-lhe aquele “panache” como diria, por fim, Cyrano de Bergerac!

jef, dezembro 2018
                                                                     
«Djon África» de João Miller Guerra & Filipa Reis. Com Bitori Nha Bibinha, Isabel Muñoz Cardoso, Miguel Moreira, Patricia Soso. Brasil / Portugal / Cabo Verde, 2018, Cores, 96 min.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

«Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões» de Hirokazu Kore-eda, 2018



























Hirokazu Kore-eda transforma as suas ficções filmadas em parábolas sobre a infância, o abandono, a família, a lei cega e a sociedade “eficaz mas injusta”. Quase todas as suas fábulas são olhadas de uma perspectiva que vem de baixo, feita de pormenores de cenários, lapsos de encenação, inícios de conversa, traços e rictos que sugerem, perturbam e, por fim, conduzem até à moral terminante a citada parábola ou fábula.

Em «Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões», o facto de serem todos ladrões de bairro com o lema «roubamos sim, mas a loja não pode ir à falência», segundo o pai de família Osamu Shibata (Lily Franky) parece da menor importância. São bem sucedidos, a loja também. Mais forte é a opinião da avó Hatsue Shibata (Kirin Kiki) que afirma ser melhor uma família escolhida por nós pois assim as expectativas não serão goradas.» As crianças são envoltas em carinho e cumplicidade. Roubam muito bem, também. A família é unida e não importa se a casa é um tugúrio filmado entre os ângulos do Inverno expressionista e a luz do Verão impressionista. Uma família tão unida que Shota Shibata (Jyo Kairi) fica enciumado quando o pai Osamu encontra a pequena irmã Yuri (Miyu Sasaki) transida de frio e a leva até ao calor do lar. Shota tem dificuldade em chamar pai a Osamu.

Tudo corre bem até Shota se deixar apanhar com um saco de laranjas e partir uma perna.

Todos se protegem e mentem para libertar o semelhante amado do ónus que a sociedade lhes impôs. A culpa e o perdão são olhados como o são na natureza dos animais. Não existem. A culpa que a justiça cega os fez carregar vem de actos moralmente ilibados pela sobrevivência. Neste filme todos são crianças e animais abandonados numa sociedade veloz. Logo são, por isso, inimputáveis.

A libertação pela mentira e o afastamento pelo amor impossível estão resumidos nas últimas cenas de forma muito ‘shakespeariana’. Muito bela.

A feroz ternura deste filme, que tem tanto de contagiante e romântico como as pinturas de Henri Rousseau, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes.

jef, dezembro 2018
                                                                      
«Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões» de Hirokazu Kore-eda. Com Kirin Kiki, Sakura Ando, Mayu Matsuoka, Lily Franky, Sôsuke Ikematsu, Jyo Kairi, Miyu Sasaki, Yôko Moriguchi, . Japão, 2018, Cores, 121 min.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Sobre o livro «Estuário» de Lídia Jorge. Dom Quixote, 2018


 













Um livro de entradas múltiplas e histórias cruzadas. Um livro muito humano no que respeita a soluções adiantadas e dúvidas concluídas. Não as apresenta. Cada um que interprete a solução, a dúvida, o desfecho para este mundo com as armas e o grau de optimismo de que dispõe.

Uma ficção que se debruça sobre a realidade actual, aquela que um dia se situará no centro científico dos historiadores. Uma ficção que exibe o trunfo da fantasia como móbil para a salvaguarda do futuro. Uma realidade feita, ela própria, de ficções, metáforas, interpretações, afectos e julgamentos.

A história do armador Manuel Galeano e da sua família, iniciada com a de Edmundo Galeano, o filho mais novo, a copiar, como treino da sua mão carente, os versos da «Ode Marítima» de Álvaro de Campos, terminando com a cópia dos primeiros versos da «Ilíada» de Homero. A primeira ode revela o desejo de partir de casa, fugir do solo férreo, em busca desenfreada e louca do nada marítimo, do nada futuro. A segunda ode é o inverso, é a defesa do solo e da pátria à força da lâmina e do sangue, para conquistar a integridade do povo, da família e do amor.

Faz todo o sentido.

Por todas as razões e ao longo do romance, a família Galeano vai ficando reunida (ou aprisionada) no casarão vindo do bisavô, em Lisboa, no Largo do Corpo Santo. À beira Tejo. A casa é um porto de abrigo, mas também navio encalhado, até esquife.

Charlote aguarda, unida ao seu filho David, o termo do Amor maior, mas interrompido, com Amadeu Lima. Sílvio busca o paradeiro do “Imortal”. Alexandre lança ao rio, envergonhado, garrafas com desejos espirituais. João Vasco procura refúgio para a família russa, por nascer. Mas sobre todos, a figura tutelar, muda, quieta, mas de dedo em riste e brincos de pérola, de Tatiana. A matriarca vive na suite real envolta em livros e exibindo o poder agregador de clã.

E o mundo a colapsar, e a ria a transbordar de plástico, e o campo de refugiados de Dadaab do ACNUR, entre o Quénia e a Somália, que continua a insustentar vidas humanas… Um estuário delta e desértico que desagua sem água nem mantimentos.

Edmundo escreverá o livro?

Charlote salvará a memória da sua história de Amor?
«Quem disse alguma vez que os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo, troçou da inteligência alheia. (…) Na verdade, os limites do seu mundo não coincidiam com os limites impostos pela sua linguagem» (pp. 165). Diz ela.

As linguagens podem andar desfocadas dos mundos. É a questão pela qual a ficção literária luta eternamente, correndo à frente ou no encalço da realidade e da consciência. Assim foi para Álvaro de Campos, assim foi para Homero. Assim é para Lídia Jorge.

jef, dezembro 2018

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Sobre o filme «Dovlatov» de Aleksey German Jr., 2018





















Este filme tem características inusitadas.

É a história do escritor e jornalista russo Sergei Dovlatov (Milan Maric) durante a primeira semana de Novembro de 1971, quando ele vive uma espécie de crise existencial, sonhando com ditadores a beber pina coladas e campos de prisioneiros enlameados. Está agora com a mãe (Tamara Oganesyan) num apartamento colectivo, afastado da mulher Elena (Helena Sujecka) e da filha Katya (Eva Herr) para quem quer comprar uma boneca grande. Não tem motivação para escrever pois não será publicado até ser admitido na Associação de Escritores Soviéticos. Precisa de se insinuar no meio, pedir favores e escrever uma ode triunfal sobre o trabalho num estaleiro naval. Mas não cede. Sente-se perdido entre a família, os amigos, o livro que deseja escrever e o poema que tem de escrever.

Até aqui o filme parece correr (infelizmente) como o esperado, sabendo que o escritor se exilou nos Estados Unidos, onde faleceu em 1990, tendo-se tornado depois um dos mais famosos autores da sua geração.

Porém, o que se torna muito cativante, mesmo extraordinário, no filme é esse modo “close-up” de olharmos os exteriores nevados como se fossem os interiores onde o escritor se move, sempre com um olhar intuitivo e um sorriso entristecido mas complacente. A câmara gira quase sem espaço para respirar, ora num ambiente frio e cinzento dos estaleiros onde filmam duplos dos grandes escritores russos falecidos, ora num ambiente morno e ocre, entre o fumo do tabaco, a bebida e o jazz de clube. Assim vamos assistindo à angústia e à desistência quando o acto da escrita se aproxima, mas também à tenaz resistência de um grupo de intelectuais que se vê apartado da liberdade e da sua plena vocação artística.

E existe um humor e amor latentes que intensificam os laivos trágicos de um percurso fatídico. Os decores são perfeitos, a fotografia é de Lukasz Zal (o tal de «Guerra Fria» 2018, e «Ida» 2013, de Paweł Pawlikowski). A música e o som, imperdíveis.

Ler Sergei Dovlatov será necessário. «O Ofício» foi editado este ano pela Antígona.

E esse tom de esperança inusitado que sai do filme é talvez dado pela convicção de que a Liberdade e a Democracia são assuntos por princípio em perigo mas que podem ser sempre resgatadas pela resistência, pelo amor ao próximo e pela criação artística.

jef, novembro 2018
                                                                      
«Dovlatov» de Aleksey German Jr.. Com Milan Maric, Danila Kozlovsky, Helena Sujecka, Artur Beschastny, Elena Lyadova, Tamara Oganesyan. Argumento: Aleksey German Jr., Yulia Tupikina. Fotografia: Lukasz Zal, Som: Ivan Gusakov, Decoração: Elena Okopnaya. Rússia / Polónia / Sérvia, 2018, Cores, 126 min.