Cidade do México. Bairro ‘Roma’. 1970-1971. Uma família
burguesa – um casal em ruptura, uma avó,
quatro miúdos, duas criadas e um cão. Apollo 13, 'Jesus Cristo Superstar', eleições e conflitos estudantis. A ordem é arbitrária desde que coloquemos
no centro familiar Cleo (Yalitza Aparicio), a criada gentil, atenta e carinhosa,
em torno da qual tudo gira. O realizador toma a pulso a parte de leão do filme,
desde a produção à direcção da fotografia, homenageando os afectos da infância.
O curioso é que este filme poderia até ser mudo, apenas com alguns
slides a negro esclarecendo uma ou outra frase do diálogo, em
vários tons conforme a proveniência dos falantes, caso a banda sonora aqui não fosse tão importante. O som é fundamental! Note-se o crescente
marulhar das ondas na cena fulcral, épica e climácica, da família junto ao mar
em Tuxpan acompanhando a tensão criada no salvamento. Ou o riscar estridente dos cromados
do Ford Galaxy. Ou a longa cena “silenciosa” na plateia do cinema quando Cleo
se vê abandonada pelo namorado Fermín (Jorge Antonio Guerrero) enquanto
decorrem as últimas cenas de «A Grande Paródia» (Gérard Oury, 1966). Ou no
final, enquanto ela sobe os dois pisos até ao terraço dos estendais ao som de
uma cidade que se esvai e os dois aviões sobrevoam a diagonal do céu, repetindo
a imagem que no início assistíramos, espelhada na água que vai encharcando o chão do
pátio.
Todas as cenas sonoras são estudadas, todos os enquadramentos, ponderados, todas as expressões e gestos, sentenciosos, todos os reflexos
medidos para que funcionem como retábulos ou ícones sucessivos, mudos, religiosos, medievais, ou como imagens de uma moderna história de animação ou quadradinhos nas páginas de alguma banda desenhada. As cabeças de cão embalsamadas,
as cenas do tiroteio lúdico, o incêndio florestal, o homem-bala que salta cruzando
o céu tal como os simbólicos aviões. Tudo sai de um expoente estético que, por vezes, soa
um tanto a truque ou tique e nos faz perder o olhar ou o ouvido, descolando-nos
da emotividade que, realmente, «Roma» contém.
Passamos 135 minutos de intensa cinematografia, esplêndidos
cenários, amorosas criaturas, uma banda sonora extraordinária, uma luminosidade
e silêncio sintomáticos, tudo a envolver uma soberba mãe mexicana. Yalitza Aparicio, Cleo.
jef, dezembro 2018
«Roma» de Alfonso Cuarón. Com Yalitza Aparicio, Marina de
Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Nancy García, Marco Graf, Daniela
Demesa, Jorge Antonio Guerrero, Andy Cortés, Fernando Grediaga, Veronoca
García. Realização, Produção, Argumento, Fotografia: Alfonso Cuarón. EUA /
México, 2018, Preto e Branco, 135 min.
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