terça-feira, 31 de outubro de 2017

Sobre o disco «Born to Die» de Lana Del Rey, Interscope / Polydor 2012
















Só agora me chega aos ouvidos «Born to Die».
Aplaudido, criticado, rechaçado, divinizado, suspeitado… Cinco anos depois, alguma história ficou da discussão? Não acredito.
Existe qualquer coisa envelhecida, algum pó ligeiramente cediço depositado sobre as 12 longas faixas que deixa fechados os ouvidos de quem as escuta, que as torna lineares. Esquecidas.
Figura vintage a lembrar os terríveis anos 50. Puros, belos, atómicos, frios e bélicos. Americanos. Um ar a tocar a desmilinguida colegial atrevidota, lábios carnudos, físicos, quase virtuais… Mas figuras não se escutam, apenas indicam.
A produção é mesmo muito boa de Emile Haynie, apesar de soar a limpa como água destilada. As canções escritas por Lana Del Rey, Tim Larcombe e Jim Irvin, envoltas em arranjos e orquestrações modelares, perfeitos, mas sem golpe de génio que faça distinguir umas das outras. Interessantes os arranjos do naipe de cordas de Larry Gold (talvez mesmo o mais interessante). Letras entre a depressão, o fora da lei, a droga, o amor transviado. Um toque de sangue e rosas adequadamente honesto. Canções irrepreensíveis para acompanhar a gama Classe E da Mercedes Benz ou a fragância “brand new old oak” da Lâncome. Já terão convidado Lana Del Rey para o genérico do mais recente, polido e de estilo, 007 –  agente preferencial da MI6?
As faixas vão tocando e acusam a minha ancestral memória auditiva e cognitiva, sempre errónea e errática, a fazer prevalecer o velho ouvido sobre a recente e linda Lana: Moloko & Róisín Murphy, Anita Lane, Anna Calvi, Julie Cruise, Kate Bush,… até Madonna ou Britney Sprears.
Mas, enfim, o facto é que continuo a ouvir «Born to Die» de Lana Del Rey… «Million Dollar Man» é uma boa canção!

jef, outubro 2017

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Sobre o filme «Blade Runner 2049» de Denis Villeneuve, 2017















Tenho de ser justo, «Blade Runner 2049» não é um mau filme, apenas tenho de esquecer que revi «Blade Runner: Perigo Iminente» de Ridley Scott (1982).
E o problema maior é que eu tenho esse filme bem vincado na memória. E o presente (futuro) deste segundo filme não merece o romantismo desfasado e anacrónico, belamente desfeado, para sempre marcado pela estilizada «replicant» Rachael (Sean Young) que devolve a vida humana ao humano «blade runner» Rick Deckard (Harrison Ford) quando se apaixonam e, por erro de fabrico, perde o prazo de validade ficando a desconhecer quando morrerá. Tal como os humanos.
Porque Ryan Gosling, o mais recente canastrão do cinema americano, não consegue levar o seu blade runner a nenhum confronto emocional com o espectador. Harrison Ford, que também nunca terá sido a nata do expressionismo, acabou por nos dar esse bruto contraponto com o inexplicável mau Roy Batty (Rutger Hauer), oferecendo à solidão desagregada de Los Angeles, suja e chuvosa, um desespero sem causa.  Mas isso era em 1982, com Ridley Scott, ao som de Vangelis. Agora o som é uma colagem mais barata de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer, e os cenários são todos plastificados pela nova tecnologia. Brilhantemente sujos, assepticamente húmidos.
Valha-nos as cenas no decrépito e amarelento casino, a morada de Rick Deckard, uma espécie de cenário construído por Wes Anderson.
Resta-nos também a interpretação de Robin Wright.
Porque terá a ficção científica no cinema de hoje de estar subjugada a estes efeitos especiais tão lisos e puros, que impedem os filmes de saltar por cima da moral de histórias à Walt Disney?
Por isso, continuo a defender a ficção científica de «Uma História de Amor» de Spike Jonze (2013) com Joaquin Phoenix e a voz de Scarlett Johansson.

Mas, no final, repito para ser justo, até estive bastante entretido durante os 163 minutos de «Blade Runner 2049».

jef, outubro 2017


«Blade Runner 2049» de Denis Villeneuve. Com Harrison Ford, Ryan Gosling, Ana de Armas, Jared Leto, Mackenzie Davis, Robin Wright, Dave Bautista, Sylvia Hoeks, Carla Juri, Barkhad Abdi, David Dastmalchian, Hiam Abbass. Música: Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer. EUA / Grã-Bretanha / Canadá, 2017, Cores, 163 min.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

História de Ninguém











História de Ninguém

Esta é a história do homem que previa. Não é a história do homem (João), vidente, a quem lançam moedas à porta do seu futuro jazigo. Também não é a história do desgrenhado (José) que, dizem, ter chegado numa nave supra-aérea para vir casar com uma mulher da Terra e montar escritório de futuros e coisas mais ou menos inexplicáveis em cartõezinhos que se distribuem à porta do metro da Rotunda-Marquês. Também não é a história do Joaquim que vendia chás, mezinhas e produtos químicos mal tirados de folhas secas ou da casca de árvores dúbias, mas também de um armazém de tintas e vernizes que o seu irmão mantinha numa garagem para além do aeroporto, para lá de Camarate. Também não é a história de Júlio, o homem que dizia ver coisas estranhas quando misturava benzina no abafado, coisas que vinham do outro lado, do hemisfério antípoda que anda sempre meio-dia adiantado. Também não é a história do homem com face de beato, cabelo encaracolado, de anjo, túnica de burel, olhar em alvo, apóstolo-posfeta, o décimo-quarto, que circulava falante ao fundo da Av. Roma, junto do gradeamento do Júlio de Matos. Esse chamava-se Jeremias. Esta é a história de Jaime que previa mesmo o futuro, organizando-o exaustivamente no calendário de bolso. O que Jaime esquecia é que um dia, num passo apressado, entre as gentes, dia de chuva, ao sair do autocarro, pasta a tiracolo, saco das compras, guarda-chuva na mão, a agenda onde guardava o futuro de bolso saltaria de vez para uma plácida poça de água e perder-se-ia para sempre.


jef, outubro  2017

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Sobre o filme «Bando à Parte» de Jean-Luc Godard, 1964

















Por 1964, andava Jean-Luc Godard apaixonado. Anna Karina (Odile), colegial e ingénua, encantada, insegura, provocadora, fazia retroversões de «Romeu e Julieta», era assediada ou assediava os seus dois amigos Arthur (Claude Brasseur) e Frantz (Sami Frey) que preparam um golpe de mestre: roubar um milhão de francos da casa de Mr. Stolz e da Tia Victoria. A casa de Odile.

«Bando à Parte» é um filme louco, com uma estrutura de escola nouvelle-vague-avant-garde, ou seja, com uma estrutura que segue apenas os ditames da irreverência juvenil, da extraordinária e lúcida rebeldia do realizador, que sai, aparentemente, à deriva atrás de Odile, de Frantz e de Arthur, dois anos depois da estreia do congénere «Jules e Jim» de François Truffaut.

Apesar de não ter lugar privilegiado ao lado dos seus super-irmãos «O Acossado» (1960) «O Desprezo» (1963), «Pedro, o Louco» (1965), Jean-Luc Godard apaixona-se realmente pelas três personagens, criando através deles e do seu movimento incessante, das cenas mais inesquecíveis da história do cinema: A lição de inglês “clássico-moderno”, a fantástica “morte” de Billy de Kid, o minuto de silêncio, a canção sussurrada no metro por Odile, a visita mais rápida ao museu do Louvre, ou essa mítica dança no café, enquanto os criados passam e o narrador (Jean-Luc Godard), que abre parêntesis mas não os fecha, vai narrando os sentimentos que os dançarinos têm uns relativamente aos outros.

Quem vê este filme não pode deixar de sentir-se dentro da juventude desabrida que sai pelos poros de uma tela quase abstracta, pela alegria com que os novos realizadores se deixavam levar pelos filmes negros americanos, com histórias de raparigas sedutoras, carros à desfilada por cima dos passeios, um milhão de dólares por aí, alguns revólveres bem oleados…

Quem vê «Bando à Parte» fica esclarecido quanto ao poder criativo do cinema e à sua esperança em mudar os códigos da arte e do mundo. Ou como o mundo desconstruído se revela a cada nova vaga do cinema.

jef, outubro 2017

«Bando à Parte» (Bande à Part) de Jean-Luc Godard. Com Anna Karina, Sami Frey, Claude Brasseur, Louisa Colpeyn, Danièle Girard, Chantal Darget, Ernest Menzer, Georges Staquet, Jean-Claude Rémoleux, Claude Makovski, Jean-Luc Godard (narrador), segundo o romance “Fool’s Gold” de Dolores Hitchens, música: Michel Legrand. França, 1964, P/B, 94 min.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Sobre o filme «Stop Making Sense» de Jonathan Demme & Talking Heads, 1984














Gosto muito de filmes musicais e gosto também de dizer que «Stop Making Sense» é um dos melhores filmes musicais de sempre. Talvez seja exagero mas os filmes que têm a música como núcleo são especiais e tocam-me no córtex de um modo abstracto, baralhado, surgem-me nos ouvidos e no coração, talvez nos pés, sem passar pelas sinapses.

Digo isto e logo surge a consciência castradora dos exageros e delírios. «West Side Strory / Amor sem Barreiras» (Jerome Robbins e Robert Wise, 1961); «My Fair Lady / Minha Linda Senhora» (George Cukor, 1964); «A Flauta Mágica» (Ingmar Bergman, 1976); «The Last Waltz / A Última Valsa» (Martin Scorsese, 1978)… E o meu coração balança mesmo muito e concorda que deve ser o Diabo a vir escolher!

Logo depois volto à primeira estaca. Porque «Stop Makins Sense» é muito mais do que toda a energia frontal dos Talking Heads, toda a filosofia de um palco amplo e em construção, sem paredes ou ameias onde, sozinho, apenas acompanhado por um falso leitor de cassetes a pilhas, David Byrne canta, trôpego e insano, «Psyco Killer».

Porque é muito mais do que um cenário a fechar-se sobre as personagens que surgem, uma a uma, canção a canção, palavra breve e sincopada, ritmo sobre a paranóia de «Heaven», como numa discoteca perdida onde os humanos se lançam contra a luz negra, intermitente e louca.

Eles chegam, alguns de fatos de palhaço cinzento e sério, extravagante, e abanam os membros para sacudir a melancolia, a nostalgia, a submissão, o senso psicadélico do corpo, enquanto a equipa técnica vai iluminando os corpos que, para entender o que dizem, têm de dançar. Como David Byrne sempre afirmou (e Gonçalo M. Tavares corroborará): «Burning Down the House».

Porque estamos em 1984 e já foram editados grande parte dos discos da música mais descentrada dos Talking Heads: «Found a Job». Porque os Tom Tom Club já tinham sido formados por Tina Weymouth e Chris Frantz, dentro e fora do espectáculo: «Genius of Love». Porque Brian Eno fazia muitos e bons estragos: «Once in a Lifetime».

Porque Jonathan Demme resolve cenicamente a quarta dimensão de um concerto que, deste modo, se tornou inesquecível, repetível, dando-lhe a visão de planos cortados e das palavras insubordinadas no interior da estratégia fundamental, romântica e futurista, dos Talking Heads.

jef, outubro 2017

«Stop Making Sense» de Jonathan Demme & Talking Heads. Com David Byrne, Tina Weymouth, Chris Frantz, Jerry Harrison, BernieWorrell, Alex Weir, Steve Scales, Lynn Mabry, Edna Holt. EUA, 1984, Cores, 84 min.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Sobre o filme «Através das Oliveiras» de Abbas Kiarostami, 1994













A longa cena final, esse percurso ansioso através das searas e das oliveiras ao som de um andamento barroco, em que Hossein, de balde e termos de chá na mão, segue Tahereh, de vaso de sardinheiras à ilharga, aguardando que esta dê um sinal da aceitação do seu amor, é de um desses momentos à Kiarostami, um instante magnânimo, que resume a justiça, a liberdade, a necessidade, a dúvida, lançadas pelo Cinema maior.

Ela orgulhosa, ele submisso. Ou, pelo contrário, ele impositivo, ela submetida a dogmas familiares e sociais. Seguem os dois, levados também pela rejeição do passado e da dor, trágica e pobre, que o terramoto de 1990 lançou sobre o Irão. Estão na região de Koker, a 350 km de Teerão, e o seu desejo de futuro é imenso. Não querem ser analfabetos. Querem estudar mesmo em tendas. Querem ter uma casa própria mesmo periclitante. Querem vestir-se de outro modo. Querem amar, apesar dos mortos e da derrocada, apesar da lei.

O Actor (Mohamad Ali Keshavarz), aqui realizador benévolo e paciente, anuncia ao espectador que estão a escolher a actriz para interpretar uma jovem que se casou um dia após o terramoto. Durante o intervalo das filmagens, rodeados de miúdos, pega num livro e faz-lhes perguntas que sairão no exame. Entre risos e realidade. E vasos de sardinheiras.

A Srª. Shiva (Zarifeh Shiva), anotadora, motorista, produtora, irrita-se porque Tahereh chega tarde e não quer usar um vestido tradicional de camponesa, também porque Hossein se recusa a ser pedreiro, a sua profissão anterior. No entanto, todos acatam, todos cumprem, todos guardam uma ponta de ressentimento. Todos guardam uma ponta de esperança. O futuro não é assegurado mas poderá dissolver um pouco a miséria dos antepassados.

Abbas Kiarostami, em «Através das Oliveiras», faz o que o modernismo de Visconti e Rosselini fez à realidade filmada devolvendo ao espectador a incerteza com que o grande teatro conforta (ou confronta) a vida. Ainda lhe coloca o livre arbítrio da interpretação de quem a contempla. Longínquo, entre as oliveiras, vemos Tahereh virar-se momentaneamente para Hossein, logo ele desata a correr em sentido contrário. Pode o Amor ter convencido Tahereh. Pode o desespero ter vencido Hossein. Quem tem o poder de decidir?

jef, outubro 2017

«Através das Oliveiras» (Zire Darakhatan Zeyton) de Abbas Kiarostami. Com Farhad Kheradmand, Mohamad Ali Keshavarz, Zarifeh Shiva, Hossein Rezai, Tahereh Ladanian. Irão / China, 1994, Cores, 103 min.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Sobre o filme «A Bela de Dia» (Belle de Jour) de Luis Buñuel, 1967















Se existe um filme a que os cinéfilos chamam «iconográfico» é «Belle de Jour». Porque o próprio filme debate a palavra «ícone» como símbolo, sinal, índex ou objecto sacro.

Não falamos em Buñuel sem pensar neste filme, que ele próprio esteve para rejeitar mas que o veio salvar, reservando-lhe o maior sucesso comercial.

Não falamos em Catherine Deneuve sem pensar em Séverine, a sempre etérea, circulando entre os dedos dos seus clientes escolhidos; olhando a misteriosa caixa oriental; silenciando dentro do caixão sob o qual o duque se ajoelha; sacrificando o professor masoquista com o chicote; andando nua sem nunca o estar, sem desmanchar o seu cabelo, sem nunca macular a chama da diva.

Não falamos da cinematografia mundial sem perceber que o filme é uma obra de fractura e agitação. Tem contornos muito cativantes porque são belos, muito imprecisos porque são indefinidos ou inexplicados, tão sintomáticos que representam uma época em que a arte e a cultura europeia tinham mesmo que mudar. Contudo este filme é tudo menos «datado». Outro termo muito «cinéfilo»!

Não pensamos em Psicanálise no cinema sem referir Hitchcock, claro!, mas também sem falar de Buñuel, de «Belle de Jour» e dessa forma de nunca sabermos se a libido e as aparições narrativas são fruto da acção do casal, do desejo, do sonho, dos traumas de infância de Séverine, ou de algum outro intuito mais abstracto do realizador. Porque não explicará ele o som dos guizos, o horror aos gatos, a morte da personagem após o duelo oitocentista, a cura de uma cegueira virtual num total desrespeito pelo fim moral do filme? Porque terminará assim com os cavalos de novo a guiarem uma suposta carruagem para parte incerta?

E a estreia dessa belíssima e impoluta prostituta Séverine / Belle de Jour, não será a suprema crítica ao charme discreto da burguesia e a um sistema tradicional de valores assegurados, quando estávamos precisamente a um ano do Maio de 1968, em Paris?

Um filme quase «objecto sagrado»!

jef, outubro 2017


 «A Bela de Dia» (Belle de Jour) de Luis Buñuel. Com Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre Clémenti, Francisco Rabal, George Marchal, François Maistre, Françoise Fabian, Marie Latour, Francis Blanche, Macha Meril, Muni, Bernard Musson, Iska Khan, Dominique Dendrieux. Segundo o romance de Joseph Kessel. França / Itália, 1967, Cores, 101 min.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Sobre o filme «O Sabor da Cereja» de Abbas Kiarostami, 1997



















«O Sabor da Cereja» volta a ser exibido em cópia restaurada 20 anos depois de receber a Palma de Ouro em Cannes. Abbas Kiarostami morreu o ano passado. Este é o mais belo, mais terno, mais irónico, mais humano, mas também mais inconclusivo epitáfio para a vida do realizador iraniano.

Mais belo, porque é impossível não sermos cativados pela sombra do homem que se orienta sobre a avalanche de poeira e pedra que é descarregada na cimenteira. O perfil de Badii (Homayoun Ershadi), enquadrado quase sempre pelo vidro luminoso do jipe, traz à memória qualquer coisa entre o egípcio, o helénico, o bíblico, enfim, o mesopotâmico…

Mais terno, porque nunca sabemos a causa das coisas, a razão do drama, coisa que devolve ao espectador a imaginação de todas as suas próprias memórias trágicas mas com um véu de suavidade apaziguadora sobre as nossas insolvências emocionais.

Mais irónico, pois ser salvo por um taxidermista é um facto único.

Mais humano, pois todo o Irão, todas as etnias, toda a pobreza, toda a questão religiosa, toda a dúvida, toda a avidez da morte como vida por mal viver, está contida a cada episódio… tal como lemos em «A Morte de Ivan Iliitch» de Lev Tolstói…

Mais inconclusivo epitáfio, porque a cena final é uma revelação quase académica, contém uma energia rejuvenescida em jeito de «pseudo-happy-end-deus-ex-machina» aparentemente suspensa entre a realidade e a ficção, entre o futuro que desejamos e o passado que ainda iremos a tempo de reconstruir.

jef, outubro 2017


«O Sabor da Cereja» (Ta'm e guilass) de Abbas Kiarostami. Com Homayoun Ershadi, Abdolhossein Bagheri, Afshin Khorshid Bakhtiari, Safar Ali Moradi, Mir Hossein Noori, Ahmad Ansari, Hamid Masoumi, Elham Imani. Irão, 1995, Cores, 95 min.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Sobre o disco «Caravanas» de Chico Buarque, Biscoito Fino / Discmedi, 2017













Chico Buarque tem uma perpétua voz de menino que ultrapassa o limite do horizonte e a idade. Não descura a melodia que cada palavra incrusta na orquestração. Procura o tema com a doçura política da poética não temendo resolver questões ditas «fracturantes» ou «modernistas» ou «facebookianas» com um naipe de cordas ou um vaipe de sopros ou um acordeão a tocar a valsa musette sobre a suprema união amorosa contra a suprema decisão do destino.
Basta ouvir a alegre e triste primeira faixa «Tua Cantiga».
Basta ouvir a desesperada e esperançosa última faixa «As Caravanas».
Quem nunca ficou preso a Chico Buarque nunca terá ouvido uma única cantiga a tocar na rádio, «não terá lido as rimas que o músico nunca escreveu, não se apaixonou pois ninguém nunca se apaixonou».
Chico Buarque em «Caravanas» volta a não ter idade e merece um prémio Nobel da Química do físico e do Corpo das palavras.


jef, outubro 2017

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O silêncio de Cassandra











A sinceridade do pálio
reserva na pele a febre 
E na curva da onda
no remanso do casco
o náufrago reflecte o triste Egeu
sofrimento distante pelo remorso
as costas viradas
ao vencido Aquiles
triunfante
à silenciada Cassandra
Chora o Mediterrâneo a culpa da água
e o azul da luz
e a guerra perdida
e as vestes em rasgos
do desvario de Hécuba
e da loba grávida
de uma cidade por nascer
Nua.

jef, outubro 2017

Sobre o livro «Casa na Duna» de Carlos de Oliveira, Assírio & Alvim 2004 (1943)

















Existe em Carlos de Oliveira o modo da perfeição que apetece reler e coleccionar.

Escrevia pouco, relia mil vezes os textos, retirando gralhas, emendando alguma obtusidade involuntária. Cuidava de obter a melhor paginação para as suas palavras que deviam ser cobertas pelas capas mais sóbrias, mais determinantes, diria, mais objectivas perante o seu querer estético.

Carlos de Oliveira angustiava-se pelo que não pôde dialogar e publicar no tempo do fascismo. Carlos de Oliveira lutava pelo estatuto da palavra certa.
Carlos de Oliveira era um esteta para o futuro, revoltado com o passado.

O seu espólio foi doado ao Museu do Neo-Realismo para o preservar, estudar e divulgar. A exposição, que até ao dia 29 de Outubro de 2017 ali se mostra, tem a capacidade de, em simultâneo, evidenciar o lado perfeccionista, de coleccionador e de lutador do poeta.

As edições realizadas do romance «Casa na Duna» são de um apuro reverente. A última realizada pela editora Assírio & Alvim, respeita o dogma e acrescenta na capa o pormenor de um desenho de sua autoria. Também vigoroso e singelo.

«Casa na Duna», na pureza sofrida de todas as personagens, pelos motes paisagísticos levados na poética dos pinhais arenosos da gândara, pela sequência dos curtos capítulos que cruzam o tempo e o espaço trazendo ao leitor a cadência certa de um épico clássico, pelo desfecho dramático que o aproxima da ópera romântica, é um livro que nos deixa o modo da leitura e a impaciência pelo acto próximo de perfeição do poeta. 

Para reler e coleccionar a nova idade dos velhos livros.

jef, outubro 2017

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Sobre o filme «Vitória e Abdul» de Stephen Frears, 2017















Diria que Stephen Frears tem um jeito especial para contar histórias. Sabe narrar como quer e quando quer. Desde «My Beautiful Laundrette», 1985. Está sempre a transgredir sem nunca infligir danos à estratégia narrativa. Um vago «sentimento» pessoal que eu estendo a toda a cinematografia inglesa. Façam o que fizerem, parece que transportam o peso da tradição e o riso da infracção.

A questão «vitoriana» na estrutura cultural e política da Grã-Bretanha é enorme, transcende a moral, a ideologia, transcende essa falsa verdade das castas e do snobismo. A questão «indiana», ainda mais. A questão «religiosa», pior.

Stephen Frears enlaça tudo e executa uma parábola que viaja de uma época para outra época, com um século de diferença. Realça as semelhanças estranhas de um estranho Ocidente: fala-se agora em Brexit, em estado islâmico, em xenofobia… Tudo parecido!

Fala-se agora menos em amizade plena, na compreensão de gerações e modos, nesse verdadeiro amor entre idades diversas que hoje é ainda o verdadeiro tabu afectivo.

E tudo condensado num relance, numa troca de olhares proibida entre Abdul Karim (Ali Fazal) e a rainha Vitória (Judi Dench), durante um apressado e mal-humorado almoço de Estado. Basta verificarmos a cena súbita em close-up do olhar em metamorfose da rainha para entendermos a mestria de uma actriz, essa graça subtil de Stephen Frears para agarrar a transgressão e fazer dela o mote de uma carreira cinematográfica ímpar.

Num simples «glimpse», entre a sombra e a aparição, um filme inteiro.

jef, outubro 2017

«Vitória e Abdul» (Victoria and Abdul) de Stephen Frears. Com Judi Dench, Ali Fazal, Tim Pigott-Smith, Eddie Izzard Olivia Williams, Michael Gambon. EUA / Grã-Bretanha, 2017, Cores, 112 min.