Se
existe um filme a que os cinéfilos chamam «iconográfico» é «Belle de Jour».
Porque o próprio filme debate a palavra «ícone» como símbolo, sinal, índex ou
objecto sacro.
Não
falamos em Buñuel sem pensar neste filme, que ele próprio esteve para rejeitar
mas que o veio salvar, reservando-lhe o maior sucesso comercial.
Não
falamos em Catherine Deneuve sem pensar em Séverine, a sempre etérea, circulando
entre os dedos dos seus clientes escolhidos; olhando a misteriosa caixa
oriental; silenciando dentro do caixão sob o qual o duque se ajoelha; sacrificando
o professor masoquista com o chicote; andando nua sem nunca o estar, sem
desmanchar o seu cabelo, sem nunca macular a chama da diva.
Não
falamos da cinematografia mundial sem perceber que o filme é uma obra de
fractura e agitação. Tem contornos muito cativantes porque são belos, muito imprecisos
porque são indefinidos ou inexplicados, tão sintomáticos que representam uma
época em que a arte e a cultura europeia tinham mesmo que mudar. Contudo este
filme é tudo menos «datado». Outro termo muito «cinéfilo»!
Não pensamos em Psicanálise no cinema sem referir Hitchcock, claro!, mas também sem falar de
Buñuel, de «Belle de Jour» e dessa forma de nunca sabermos se a libido e as
aparições narrativas são fruto da acção do casal, do desejo, do sonho, dos
traumas de infância de Séverine, ou de algum outro intuito mais abstracto do
realizador. Porque não explicará ele o som dos guizos, o horror aos gatos, a
morte da personagem após o duelo oitocentista, a cura de uma cegueira virtual
num total desrespeito pelo fim moral do filme? Porque terminará assim com os
cavalos de novo a guiarem uma suposta carruagem para parte incerta?
E
a estreia dessa belíssima e impoluta prostituta Séverine / Belle de Jour, não
será a suprema crítica ao charme discreto da burguesia e a um sistema
tradicional de valores assegurados, quando estávamos precisamente a um ano do
Maio de 1968, em Paris?
Um filme quase «objecto sagrado»!
jef,
outubro 2017
«A Bela de Dia» (Belle de Jour) de Luis Buñuel.
Com Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre
Clémenti, Francisco Rabal, George Marchal, François Maistre, Françoise Fabian,
Marie Latour, Francis Blanche, Macha Meril, Muni, Bernard Musson, Iska Khan,
Dominique Dendrieux. Segundo o romance de Joseph Kessel. França / Itália, 1967,
Cores, 101 min.
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