sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Sobre a exposição «Lisboa Clichê» de Daniel Blaufuks. Museu de Lisboa, Palácio Pimenta, Pavilhão Preto, Lisboa, Fevereiro 2022.







«São fotografias tiradas em Lisboa entre o final da década de 1980 e o início dos anos 90. Das mais de 300 imagens publicadas em livro pela Tinta-da-china foram selecionadas cerca de 80.»

Aprendi com Daniel Blaufuks, na exposição «Léxico», em Vila Franca de Xira (Outubro, 2016) e, mais tarde, no livro «Não Pai» (Tinta da China, 2019) que o passado ou os seus estilhaços ou sombras, ficam de certa forma cristalizados dentro de nós, misturando os respectivos ecos com o que o espaço exterior nos vai impressionando; mas, igualmente, criando para o espaço que nos rodeia um vocabulário através do qual agora o justificamos. Contudo, com o tempo, esse vocabulário, esse léxico muda constantemente, assim como a cidade. Porém, tais ecos e estilhaços, as sombras do léxico ou da cidade, dentro de nós, revoltam-se e resistem à mudança. A esse espaço conservador muito íntimo da nossa visão do exterior, os dicionários dão o nome de Nostalgia.

A exposição utiliza a palavra, como o autor também explica, que anteriormente era dada à fotografia: “clichê”, num uso duplicado e irónico do vocábulo, quase corruptela etimológica.

São oitenta retratos de rostos ou ruas, imagens clichês de um passado público que ficou vincado também nas paredes de uma cidade inexistente. A cidade pode já não existir mas elas, as sombras e os ecos, as fotografias existem na realidade, presentes, nas paredes reais do museu. Também no véu concreto da nossa nostalgia.


jef, fevereiro 2022

 


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «O Professor Bachmann e a Sua Turma» de Maria Speth, 2021















Se existe um filme que justifica as 3 horas e 37 minutos de exibição, é este, pois devemos acompanhar as paisagens rural e urbana que se transformam e rodeiam a cidade de Stadtallendorf (Marburg-Biedenkopf / Hesse), bem no centro da Alemanha, durante um ano quase completo, digamos o ano lectivo que, segundo o calendário na parede da sala de aula, é o de 2016 /2017. Uma cidade industrial que desde há muito tem recebido imigrantes de todas as latitudes. (Pelos anos 30 do século passado, os motivos foram os piores.)

O tempo aqui é muito importante para que compreendamos efectivamente e  afectivamente a evolução daquela turma de não falantes de alemão como língua materna. Turcos, muitos turcos, russos, búlgaros, romenos, brasileiros… também para se entender a revolta, a timidez, o desenraizamento, mas também todas as outras questões que fazem parte do crescimento dos adolescentes dos 12 aos 16 anos.

O tempo para o professor Dieter Bachmann fazer da turma um ponto de compreensão, de tolerância e interajuda. Para ele se reformar. Também da professora Aynur Bal. Para ela estar quase a ter o bebé.

O filme mostra como o mundo cinematográfico não pode ser dividido por classes. Este é um documentário-não-documental. É um filme real e carinhoso sobre não uma turma mas o mundo inteiro. A realizadora Maria Speth toma nos braços, ternamente, aquele conjunto de actores-reais, de adultos que buscam também qualquer coisa no passado, de crianças que exigem do futuro, e vai transformar aquele ano lectivo numa obra de arte e demonstrar, sem sombra de dúvida, que a humanidade é una e indivisível.

(Sem esquecer a câmara de Reinhold Vorschneider, tão demorada na paisagem, com tanta acuidade e rapidez na sala de aula. Uma perfeição.)

Um dos grandes filmes de 2022, um verdadeiro serviço público que tem de ser visto agora mesmo, na altura em que se fala tanto de uma terceira (hedionda e absurda) guerra mundial.


jef, fevereiro 2022

«O Professor Bachmann e a Sua Turma» (Herr Bachmann und seine Klasse) de Maria Speth. Com Dieter Bachmann, Aynur Bal, Önder Cavdar. Argumento: Maria Speth, Reinhold Vorschneider. Produção: Maria Speth. Fotografia: Reinhold Vorschneider. Som: Oliver Göbel, Niklas Kammertöns. Alemanha, 2021, Cores, 217 min.

 

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «Caixa de Memórias» de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, 2021





É um interessantíssimo exercício de cinema sobre a adaptação ficcional de um conjunto de objectos provenientes dos arquivos e das recordações das duas realizadoras. Ou seja, a partir de gravações áudio e dos cadernos-diários escritos entre 1982 e 1988 por Joana Hadjithomas e das fotografias de Joana Hadjithomas, apresenta-se a história da avó Téta (Clémence Sabbagh), da mãe Maia (Rim Turki, em adulta, e Manal Issa, em adolescente) e da neta Alex (Paloma Vauthier), esta última que só conhece a sua vida em Montréal sem suspeitar o que Téta e Maia escondem no passado quando fugiram para o Canadá durante a guerra fratricida do Líbano, com Beirute a ferro e fogo.

Mas eis que chega, nas vésperas do Natal, uma caixa cheia de mais memórias que Alex não resiste a vasculhar às escondidas da mãe. E daí, dessa colagem de objectos, surge a primeira parte do filme com a crescente revolta de Alex pelo silêncio da mãe e da avó sobre o seu próprio país. Até que a revolta explode e o reencontro se dá. A partir desse momento, o filme volta ao passado mas já em filmagem sequencial, sem o mundo patchwork.

O que é notável neste melodrama é o facto de contar uma história muito complicada mas de um modo muito simples, a dois tempos e a dois cenários, sem cair na lamechice, sem dar um tom de autocomiseração, sustentada por actrizes maravilhosas. O filme até permite que uma história terrível e verdadeira se transforme, de certa forma, num filme popular e com um princípio (ou um final) redentor.

Que todos os filmes sobre os traumas civis de guerras ignóbeis assim fossem. Com uma lágrima e um sorriso por happy end.

 

jef, fevereiro 2022

«Caixa de Memórias» (Memory Box) de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige. Com Rim Turki, Manal Issa, Paloma Vauthier, Clémence Sabbagh, Hassan Akil, Rabih Mroue, . Argumento: Gaëlle Macé, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige. Produção: Luc Déry, Christian Eid. Fotografia: Josée Deshaies. Música: Charbel Haber e Radwan Moumneh. França, Líbano, Canadá, 2021, Cores, 100 min.

 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Sobre o livro «O Caminho do Burro» de Paulo Moreiras. Visgarolho, 2021










Tal como a capa bem nos diz, aqui se reúnem contos, 13, escritos entre 1996 e 2017, onde Paulo Moreiras vai escrevendo em jeito de laboratório de ensaio narrativo ou por simples prazer pela história breve. Por isso, não se pense encontrar aqui algum burro perdido, …«Platero e Eu», diria Juan Ramón Jiménez.

Aqui o burro não é burro nem teimoso, como explica o autor no prólogo. O inteligente animal seguia na frente dos homens, cientes da sua habilidade de caminheiro, pois certamente iria encontrar o melhor dos caminhos para ser marcado.

Do mesmo modo, Paulo Moreiras durante duas décadas trilhou esse modo peculiar de escrever pequenas narrativas para ler e sossegar à noite, entre um universo rural que se enraíza numa memória popular e erudita muito próprias; a fantasia que os antigos ermos florestais produzia nos sonhos e pesadelos dos viventes; os doces que nos conventos ancestrais saíam do tédio religioso; a atmosfera de um mundo urbano que, também ele, talvez já tenha desaparecido mas que deixou marca na tradição literária portuguesa.

Principalmente, um gosto próprio de lançar sobre a actual leitura o prazer das palavras caídas em desuso, dos regionalismos sonoramente atraentes, da vivacidade de nos levar até personagens com nomes que parecem vir de um outro mundo.

A leitura destas narrativas faz-me recordar tempos idos mas presentes, como ainda me faz homenagear «As Lendas e Narrativas» de Alexandre Herculano, «Os Contos Populares Portugueses» de Adolfo Coelho, os «Contos para os Nossos Filhos» de Maria Amália Vaz de Carvalho e Gonçalves Crespo, «Beco do Alegrete» de Armando Ferreira ou os «Casos do Beco das Sardinheiras» de Mário de Carvalho.

 

Os contos fazem uma bela história na literatura portuguesa.

 

jef, fevereiro 2022

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «A Pior Pessoa do Mundo» de Joachim Trier, 2021







Um filme que é uma tragédia que, a começar pelo título, quer ser tomada por comédia, dividida em mais de uma dezena de capítulos, um prólogo e um epílogo. A música, os decores, a leveza dos sorrisos, o rigor programático e pragmático das diversas cenas encadeadas quase que nos levam a crer que estamos numa daquelas visões woodyallenianas onde se desvenda a realidade através da sua caricatura ou da sua redenção. E Julie, que não será a pior pessoa do mundo, representa alguém (ou uma geração) com talento que vai adiando a verdadeira conclusão dos dias com receio da escolha final. Julie é uma espécie de Sören Kierkegaard procrastinadora que acabará sempre por não usufruir da resistência que a desilusão do erro ou a frustração do falhanço fornecem à vida corrente.

Julie é talentosa, bonita, jovial e alegre, mas desiste! Nos estudos, na profissão, nos amores.

Julie é maravilhosamente interpretada pela actriz Renate Reinsve que ocupa todo o ecrã e nos leva a crer, de modo encantado, que aquela é uma bela história iniciática de uma geração libertária e libertadora. Porém, não é de todo. E é nesse ponto que o filme se compromete, melodramaticamente, ao fazer confluir toda a série de desgraças sobre o belo sorriso (e as belas lágrimas) de Julie, a conquistadora, a sofredora.

Pois nem Julie é a pior das pessoas, antes pelo contrário, nem a sua geração alguma vez será rasca!


jef, fevereiro 2022

«A Pior Pessoa do Mundo» (The Worst Person in the World / Verdens Verste Menneske) de Joachim Trier. Com Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Maria Grazia Di Meo, Herbert Nordrum, Mia McGovern Zaini, Hans Olav Brenner, Nataniel Nordnes, Deniz Kaya, Vidar Sandem, Torgny Amdam, Thea Stabell, Rebekka Jynge. Argumento: Joachim Trier e Eskil Vogt. Produção: Andrea Berentsen Ottmar Fotografia: Kasper Tuxen. Música: Ola Fløttum. Noruega, 2021, Cores, 127 min.

 

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «Descerrando os Punhos» de Kira Kovalenko, 2021














Todo o filme se concentra no sorriso de Ada (Milana Aguzarova). Está ali a história inteira. A câmara filma muito próximo daquele rosto generoso onde o medo, o complexo e a entrega emocional se combinam sem deixar que o espectador se aperceba da paragem de autocarro onde ela espera alguém. O sorriso é transparente mas sempre velado. Ela esconde-o ou esconde-se atrás dele. Ada está rodeada pelo opressivo carinho, pela exigência afectiva ou mesmo por uma abusiva prisão domiciliária. Todos a vigiam. Em torno dela e do seu passado inundado de violência e de guerra, protegendo-a e oprimindo-a, circula o seu pai (Alik Karaev), os irmãos Akim (Soslan Khugaev) e Dakko (Khetag Bibilov) e até o proto-namorado Tamik (Arsen Khetagurov). Tudo em circuito fechado, numa pequena povoação da Ossétia do Norte, presa à tal câmara de filmar que não deixa respirar. Talvez demasiado atarefada, a câmara, em focar obsessivamente, repetidamente, pormenores estéticos, pequenos actos ou movimentos circulares: os carros, os ajuntamentos, as buscas, as fugas. Movimentos que precisariam de um maior campo de visão, talvez de uma mais ampla linha narrativa, maior diversificação estética, talvez menos sequências explicativas.

Contudo, o sorriso sofrido (e talvez libertado ou libertador) de Ada não deixará de nos acompanhar.

 

jef, fevereiro 2022

«Descerrando os Punhos» (Unclenching the Fists) de Kira Kovalenko. Com Milana Aguzarova, Alik Karae, Soslan Khugaev, Khetag Bibilov, Arsen Khetagurov, Milana Pagieva. Argumento: Kira Kovalenko, Lyubov Mulmenko, Anton Yarush. Produção: Sergey Melkumov, Alexander Rodnyansky. Fotografia: Pavel Fomintsev. Rússia, 2021, Cores, 97 min.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «A Filha Perdida» de Maggie Gyllenhaal, de 2021




Não fosse a pragmática e eficaz realização, a primeira saliente-se, de Maggie Gyllenhaal, que não nos deixa um minuto sossegados no interior do mal-estar extremo de Leda, a professora de literatura comparada que decide ir passar férias sozinha na ilha grega de Spetses.

Não fossem ainda as impressionantes interpretações de Olivia Colman (Leda, na actualidade) e de Jessie Buckley (Leda, a jovem mãe de duas meninas e estudante universitária); para além da beleza de Dakota Johnson (Nina, a mãe da menina que se perde na praia e a quem roubam a boneca preferida) e de Dagmara Dominczyk (Callie, uma familiar policial e desconfiada); e as interpretações dos saudosos Ed Harris (Lyle, o velho americano que entrega as casas aos turistas) e Peter Sarsgaard (o professor Hardy, por quem a jovem Leda se apaixona e por quem vai abandonar as filhas), e o filme resumir-se-ia a um monte de actos falhados e maldades inconsequentes que Sigmund Freud tinha dificuldade em explicar.

Ficaria o espectador apenas centrado num chorrilho de desagradáveis situações sobre a recusa maternal, a universal suspeita sobre o próximo, o ressabiamento por um passado mal resolvido e o princípio da maldade como modo de sublimar o trauma.

Ou talvez a minha memória cinematográfica ainda permaneça no enlevo desse poço sem fundo de ternura (e onde a recusa paternal é o centro de todo o afecto) que dá pelo nome de «Lua de Papel» (Peter Bogdanovich, 1973).

Aviso final: E nunca tirem férias nas praias gregas de Spetses!


jef, fevereiro 2022

«A Filha Perdida» (The Lost Daughter) de Maggie Gyllenhaal. Com Olivia Colman, Dakota Johnson, Jessie Buckley, Ed Harris, Peter Sarsgaard, Dagmara Dominczyk, Paul Mescal, Robyn Elwell, Ellie Mae Blake, Jack Farthing. Argumento: Maggie Gyllenhaal baseado no romance de Elena Ferrante. Produção: Charles Dorfman, Olivia Colman, David Gilbery, Maggie Gyllenhaal. Fotografia: Hélène Louvart. Música: Dickon Hinchliffe. EUA, Grã-Bretanha, Grécia, 2021, Cores, 121 min.

 


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «Coração Selvagem» de David Lynch, 1990























Longe de «Eraserhead» (1977) ou «Inland Empire» (2006), talvez um dos filmes de David Lynch onde o realizador se espraia sem pudor em todas as suas maiores dimensões: o humor, a fantasia, a moralidade, o erotismo, a exuberância dos decores e da música. As histórias cruzadas com um nexo desconexo. Assumindo a maior das suas dimensões – a comédia –, usa e abusa desse extravagante e delicioso modo de oferecer aos actores a liberdade de lançarem as personagens sobre a narrativa. Uma espécie de bailado burlesco. As personagens são a própria história como se se tratasse de um livro de contos fictícios, dilacerantes e muito divertidos. Um filme da Disney para crianças que não têm medo do escuro, do sangue, do perigo das estradas americanas ou do sexo. Com bruxas más e fadas madrinhas! Aqui nada falta!

História de amor indestrutível que todos desejam destruir (mas jamais conseguirão). A começar pela mãe-madrasta de Lula (Laura Dern), a extraordinária Marietta Fortune (Diane Ladd), que, desejando sexualmente o genro Sailor (Nicolas Cage), pretende a todo o custo matá-lo pois este terá assistido à morte (muito pouco acidental) do marido e pai de Lula, num incêndio provocado. Sailor, exibindo o seu casaco pele de cobra, símbolo da sua individualidade, por duas vezes é esperado à porta da prisão pela sua amada. Na última, cantar-lhe-á «Love Me Tender», conforme prometido. Até lá, os amantes inseparáveis serão confrontados com Bobby Peru (Willem Dafoe), Santos (J.E. Freeman), Johnnie Farragut (Harry Dean Stanton), Juana (Grace Zabriskie), Uncle Pooch (Marvin Kaplan) ou Perdita (Isabella Rossellini).

Um pouco de Fellini pela humanidade na extravagância. Um pouco de Coppola pelo colorido desabrido da imaginação. Um pouco de Tarantino pelo modo de construir uma peça única a partir do fundo de catálogo das colecções de revistas de aventuras pulp fiction.

jef, fevereiro 2022

«Coração Selvagem» (Wild at Heart) de David Lynch. Com Nicolas Cage, Laura Dern, Willem Dafoe, J.E. Freeman, Crispin Glover, Diane Ladd, Calvin Lockhart, Isabella Rossellini, Harry Dean Stanton, Grace Zabriskie, Sherilyn Fenn, Marvin Kaplan, William Morgan Sheppard, David Patrick Kelly, Freddie Jones, John Lurie, Jack Nance, Pruitt Taylor Vince. Argumento: David Lynch baseado no romance de Barry Gifford. Produção: Steve Golin. Fotografia: Frederick Elmes. Música: Angelo Badalamenti. EUA, 1990, Cores, 125 min.

domingo, 6 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «Albatros» de Xavier Beauvois, 2021

 



















Étretat, uma vila pacata à beira-mar na Normandia, onde ainda são descobertas munições esquecidas de uma guerra grande. Laurent (Jérémie Renier) é um atencioso pai de família e chefe de brigada da polícia local. Todos o conhecem e respeitam. Todos se conhecem. As ocorrências vão sendo controladas com a tranquilidade de uma pequena povoação. Laurent acaba de propor casamento a Marie (Marie-Julie Maille) e a filha de ambos, Poulette (Madeleine Beauvois), será uma espécie de madrinha amorosa. Nos tempos livres, Laurent veleja no “Albatros”.

Contudo, um jovem criador de gado vê-se em apuros com as exigências sanitárias por cumprir das autoridades veterinárias e descontrola-se. Acaba por fugir. Laurent monta o cerco mas as coisas não correm bem. Um disparo acidental, o primeiro tiro de uma vida profissional, coloca Laurent em desespero emocional e em fuga de um mundo que deixou de lhe pertencer.

O restante filme passar-se-á entre Laurent, o seu o barco “Albatros” e o oceano, tão implacável quanto apaziguador.

O melhor do filme é mesmo a credível e realista interpretação de Jérémie Renier (em uníssono com Marie-Julie Maille) envolvendo toda a comunidade numa espécie de policial humanista com laivos de George Simenon.

O pior do filme é uma espécie de arrogância estética ultra-romântica que transporta o filme até a um evitável final em happy-end melodramático, pontuado por um belo pôr de sol marítimo e um alvo vestido de noiva.


jef, fevereiro 2022

«Albatros» de Xavier Beauvois. Com Jérémie Renier, Marie-Julie Maille, Victor Belmondo, Madeleine Beauvois, Iris Bry, Olivier Pequery, Xavier Beauvois, Alexandre Lefrançois. Argumento: Xavier Beauvois, Frédérique Moreau, Marie-Julie Maille. Produção: Alejandro Arenas. Fotografia: Julien Hirsch. França, Alemanha, Bélgica, 2021, Cores, 115 min.

 

 

Sobre o filme «Lua de Papel» de Peter Bogdanovich, 1973























Uma ode ao cinema americano e à comédia dramática feitos pela estrada fora. Contém tanto de alegria e comovente inocência como de mordaz sátira política a uma América que (ainda hoje) deixa à flor da pele os ossos e o sangue de uma população que anda ao deus dará, martirizada, abandonada, sobrevivendo entre a espada da crença piedosa e a parede da manhosa extorsão.

Moses Pray (Ryan O’Neal) vende bíblias de luxo a recém-viúvas, dizendo que os defuntos as teriam acabado de encomendar, imprimindo-lhes à última hora os nomes das chorosas mulheres. Passando ele pelo funeral de uma antiga amante, vê-se a cargo com uma criança sem família próxima com a qual todos evidenciam as parecenças. Sobretudo o queixo. Moses deve levá-la sã e salva até uma longínqua tia. Ela é Addie Loggins (Tatum O’Neal) e rapidamente exige ser Addie Pray. Exige ainda 200 dólares de um negócio obscuro feito em seu nome. Sem mais, Addie demonstra sensibilidade e eficácia extremas para os negócios ambulantes de Moses.

Uma espécie de súmula profética da humanidade sob o encantador olhar fotográfico László Kovács. Entre Roosevelt, a Grande Depressão e a Lei Seca. Entre o Kansas e o Missouri. Entre «Bonnie e Clyde» (Arthur Penn, 1967) e «O Garoto de Charlot» (Charles Chaplin, 1921.

Um filme puro e inesquecível.


jef, fevereiro 2022

«Lua de Papel» (Paper Moon) de Peter Bogdanovich. Com Ryan O’Neal, Tatum O’Neal, Madeline Kahn, John Hillerman, P.J. Johnson, Jessie Lee Fulton, James N. Harrell, Lila Waters, Noble Willingham, Bob Young, Jack Saunders, Jody Wilbur. Argumento: Alvin Sargent com base no romance Joe David Brown «Addie Pray». Produção: Peter Bogdanovich, Francis Ford Coppola, William Friedkin, Frank Marshall. Fotografia: László Kovács. Guarda-roupa: Polly Platt. EUA, 1973, P /B, 102 min.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Sobre o filme «Memória» de Apichatpong Weerasethakul, 2021.
































Este filme foi entregue à actriz Tilda Swinton. Uma persona artística tão versátil e pura, quanto abstracta, no modo como veste cada uma das personagens. Aqui assume integralmente a pele de Jessica que anda em busca da réplica perfeita de um som, talvez estrondo, que a persegue em sonhos e no sono. Está na Colômbia e procura também a memória arqueológica e futurista desse objecto acústico que anseia por uma interpretação muito precisa. Deste modo, também a própria memória carece de um significado ou, talvez melhor, de uma transmissão psico-neurológica que a traga do passado para o presente.

Deixemo-nos ir sem mais delongas caminhando atrás da ansiedade de Jessica, essa Tilda Swinton que preenche o ecrã e nos faz divagar pelo interior do que não entendemos lá muito bem. Não interessa.

Fui, assim, também eu divagando por dentro da minha memória, relembrando Antonio Tabucchi que, numa das últimas edições de «Requiem» (Dom Quixote, 2007), disserta no final sobre a memória e refere como a voz do seu pai, falecido há pouco, regressa em sonho claro chamando por ele. Comoveu-me muito. Também o mesmo me sucedeu, escutando a voz do meu pai, calma mas deveras precisa, dizendo o meu nome como se quisesse que eu acordasse naquele momento. E acordou mesmo!

Também, entretanto, fui vogando até uma das mais belas composições de Laurie Anderson «The Beginning of Memory» (Homeland, 2010) quando nos conta a história de uma cotovia que voava em círculos numa antiga era antes da Terra existir, quando havia apenas ar e pássaros. Um dia, o seu pai morreu e a cotovia, sem terra, ficou com um dilema – onde enterrar o seu corpo? Por fim, encontrou a solução fazendo-o na parte de trás da cabeça. Assim nasceu, a Memória, diz-nos Laurie Anderson.

«Memoria» de Apichatpong Weerasethakul pode não ser o melhor filme abstracto do mundo mas fez-me contemplar Tilda Swinton e transportou-me até à memória que trago na parte de trás da cabeça, levando-me a Antonio Tabucchi, a Laurie Anderson, até ao meu pai.


jef, fevereiro 2022

«Memória» (Memoria) de Apichatpong Weerasethakul. Com Tilda Swinton, Elkin Díaz, Jeanne Balibar, Juan Pablo Urrego, Daniel Giménez Cacho Agnes Brekke, Jerónimo Barón. Argumento: Apichatpong Weerasethakul. Produção: Tilda Swinton, Apichatpong Weerasethakul, Paola Andrea Pérez Nieto. Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom. Som: Raúl Locatelli. Música: Cesar Lopez. Colômbia, Tailândia, França, Alemanha, 2021, Cores, 136 min.