terça-feira, 30 de agosto de 2022

Sobre o disco «Le Jeu» de Balla, Music Mob 2003







Ali pela viragem do milénio houve uma revolução na música pop. Suave, discreta, divertida, descomprometida. A afinada maquinaria electrónica apoderou-se de todo o espólio musical até ali gravado e, de um modo dançável e libertário, esquecemos o “plágio” e passamos apenas a ouvir falar de “sampling”. Excertos, repetições, truncagens, adulterações, loops vindos da discografia universal para toda a discografia contemporânea e futura. Da colossal colecção de discos de DJ Shadow para a de Armando Teixeira, passando pela Europa germânica de Kruder & Dorfmeister & Rupert Huber ou pela francofonia de Dimitri from Paris.

Tudo se copiava, tudo se refazia, tudo se dançava.

Claro que as paixões de Serge Gainsbourg e Jane Birkin não escaparam ao roubo de Armando Teixeira, em 2003, mascarado de Balla, que copia sem dó nem piedade esse modo easy-listening-flavour-lounge-cool-breeze-portuguese-french-dancing-rooftop.

Sem dó nem piedade também é imitada a capa, o modo, a fórmula que já vinha a ser copiada pela americanizada nouvelle vague.

E fá-lo, lírico e brincalhão, com vigor, rigor, simplicidade e despretensão. Até encontramos uma faixa final escondida, revisitando um dos temas centrais do álbum. Maravilha!

O virar do século acabou. Já não volta. Felizmente. Outras ideias musicais estão a ser descobertas. Muitas delas passarão pelas máscaras criativas de Armando Teixeira (Balla, Knok Knok, Cidade Modular,…)

Felizmente, também, que em 2022 voltamos a colocar (e em loop) o disco «Le Jeu» e vamos preparar o nosso vermute.

jef, agosto 2022

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sobre o filme «A Morte de um Apostador Chinês» de John Cassavetes, 1976


























Só John Cassavetes consegue realizar um filme tão despudoradamente ternurento.

A história parece simples.

Após resolvida a última hipoteca sobre o clube de strip de los Angeles “Crazy Horse West”, Cosmo Vittelli (Ben Gazzara) resolve comemorar com as suas assistentes num clube de jogo ilegal. Perde à grande e para pagar a dívida insolúvel propõem-lhe um negócio obscuro e nocturno. Cosmo Vittelli é um sobrevivente a todos os níveis e não pode recusar tal encomenda. O resto é simples de prever.

Só que para a câmara de Mitchell Breit e Al Ruban (a música de Bo Harwood) e o génio de John Cassavetes o mais importante, de novo, está nesse enlace realista e em close-up com que envolve os actores. Ben Gazzara transforma-se em Cosmo Vittelli, ser de coração maior e sorriso inocente que tenta até ao último minuto tudo resolver, correndo sempre, fazendo ainda e no final que todos os seus amigos actores subam de novo ao palco do soturno clube de strip, para gáudio dos clientes ansiosos e alegria das suas strippers que actuam como crianças num jardim infantil comandadas pelo palhaço benevolente e cansado Mr. Sophistication (Meade Roberts).

A natureza humana em ponto de rebuçado e devoção carinhosa num filme muito negro.

Ben Gazzara é inesquecível. Tal como este filme nocturno e feérico.


jef, agosto 2022

«A Morte de um Apostador Chinês» (The Killing of a Chinese Bookie) de John Cassavetes. Com Ben Gazzara, Timothy Carey, Seymour Cassel, Robert Phillips, Morgan Woodward, John Kullers, Al Ruban, Azizi Johari, Virginia Carrington, Meade Roberts, Alice Friedland, Donna Gordon, Haji, Carol Warren, Kathalina Veniero, Yvette Morris, Jack Ackerman, David Rowlands. Argumento: John Cassavetes. Produção: Phil Burton, Al Ruban. Fotografia: Mitchell Breit, Al Ruban. Música: Bo Harwood. EUA, 1976, Cores, 109 min.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Sobre o filme «Rostos» de John Cassavetes, 1968




























Este filme sugere estar a ser filmado em movimento uniformemente acelerado.

O que, inicialmente, parece ser o visionamento de uma película em pré-lançamento público para aprovação de produtores e magnates controladores do cinema de Hollywood surge, após o genérico, numa brutal comédia “sexual” intimista e despudorada sobre a derrocada da confortável burguesia americana. Logo, tornar-se-ia um filme político (que também o é) se não fosse idealizado e filmado por John Cassavetes.

Sendo, assim, idealizado e filmado por Cassavetes, de câmara em punho (Al Ruban), rodando ininterruptamente entre os actores para lhes fixar as expressões, os risos, as rugas, torna-se um dos mais sensíveis filmes sobre uma derrocada, sim, mas do Amor. Estas personagens, absolutamente todas elas, tornam-se figuras principais de um abandono, fruto da violação das relações integras e das regras do afecto, deixando-as à beira de se perderem de si próprias por andarem perdidas dos outros que lhe são o sustento emocional.

Contudo, à medida que a câmara acelera, fixando os rostos sobre o conflito e a solidão próprios de almas em descalabro, John Cassavetes verte sobre elas uma ternura descomunal, um amor comovente, desvendando os sintomas em cada um daqueles rostos. John Cassavetes absolve o desespero, redime o adultério e, talvez, reduza finalmente o prazer pleno do sexo perante a necessidade primária demonstrada pelo ser humano de lhe passarem carinhosamente a mão pelo pêlo.

Que jamais se esqueçam os rostos de Richard Forst (John Marley), Jeannie Rapp (Gena Rowlands), Maria Forst (Lynn Carlin) ou Chet (Seymour Cassel), …

Por isso, este filme jamais será um filme político mas uma ode ecuménica à entrega do amor-próprio ao seu semelhante.


jef, agosto 2022

«Rostos» (Faces) de John Cassavetes. Com Gena Rowlands, John Marley, Lynn Carlin, Fred Draper, Seymour Cassel, Val Avery, Dorothy Gulliver, Joanne Moore Jordan, Darlene Conley, Gene Darfler, Elizabeth Deering, Ann Shirley. Argumento: John Cassavetes. Produção: John Cassavetes, Maurice McEndree, Al Ruban. Fotografia: Al Ruban. EUA, 1968, P/B, 130 min.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Sobre o livro «Tchékhov» de Anton Tchékhov. Antologia do Conto Moderno, Atlântida 1962. Selecção, tradução e prefácio de José Ferreira Monte.

 


 









Estes contos são maravilhosos. 

E mais extraordinários se revelam ao serem lidos, agora, quando já levo algumas décadas de existência e uns quantos livros lidos. Quando este século XXI, que deveria ser culto, clarividente e pacífico, não evitou uma inexplicada guerra entre a Rússia e a Ucrânia. (E, em simultâneo, verifico na Wikipédia que Anton Tchéchov nasceu em Taganrog uma cidade portuária russa situada ali mesmo perto da fronteira, no nordeste do mar de Azov.) Gosto de ler Tchékhov de modo anti-cronológico e tentar descobrir (ou inventar) nele referências bibliográficas soltas para as minhas leituras dilectas.

Tchékov parece virar do avesso a sociedade feudal russa do final do século XIX, repleta de castas, estratos, cerimónias e desequilíbrios. Conhecemos em pormenor os palacetes, as casas e os casebres; os chapéus, as sobrecasacas e as peúgas vermelhas; as repartições públicas, os círculos sociais e as refeições dos mais pobres; o trabalho dos servos, a bazófia dos novos ricos, a reverência subserviente perante a condecoração do superior. Também a zanga, o ódio e o amor pelo próximo.

Representado, por vezes, pelo lado circense e humorístico, usando a versão mais subtil do sarcasmo. Outras vezes a mais desabrida. Vejo em muitas daquelas personagens o lado Buster Keaton, Charlot ou Jacques Tati. Uma vertente do riso que, por vezes, devêssemos reprimir por também conter a face triste e nostálgica do ser humano. «O Gordo e o Magro» com que abre o volume é verdadeiramente cinematográfico!

Os dois contos passados no tribunal são hilariantes: «O Delinquente» e «A Modorra» tocam as raias da fantasia e da quase comovente e real “surrealidade”. Lembrei-me muito das crónicas «Levante-se o Réu» de Rui Cardoso Martins.

«Grischa» é um conto “infantil” e psicanalítico, olhando a sociedade rica de um menino de dois anos e oito meses pelos olhos inexperientes da criança quando sai pela primeira vez à rua pela mão da ama.

«Espíritos Curiosos (dos anais de uma cidade)» revela o quase tudo urbano sobre o que na realidade é o quase nada. Paira por ali os Monty Phyton.

«O Feliz Mortal», onde a solidariedade humana dá a bênção ao noivo bêbado mais feliz do mundo.

«Um caçador» é o conto mais triste e melancólico da colectânea, sobre a condição feminina. Lembrei-me de Maria Judite de Carvalho ou Maria Ondina Braga. Também é o conto onde a elevada urbanidade literária se liga à irrevogável sensibilidade caridosa com que o autor sempre molda as personagens.

Tal como o mais citado (e extenso) texto «A Dama do Cãozinho». A aura de fim de ciclo social em confronto com a arreigada vontade de sobrevivência emocional. A modernidade e a consciência, a revolta no interior social e, paradoxalmente, a ânsia por não destruir o velho dogma familiar. A mesma tonalidade das inesquecíveis peças: «A Gaivota», «Tio Vânia» ou «As Três Irmãs».

Os contos de Tchékhov, é o puro prazer consciente da leitura.

 

jef, agosto 2022

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Sobre o filme «Marx Pode Esperar» de Marco Bellocchio, 2021



















Expor as reais e eternas cicatrizes deixadas na família pelo suicídio de um irmão gémeo, na flor da idade, forte e bonito, mas encarcerado numa espécie de véu depressivo entre a devoção familiar e a falta de auto-estima, de força de vontade, de crença no dia que virá.

Camillo Bellocchio morre com 29 anos de idade cobrindo com a penumbra de arrependimento e remorso toda a família. Em especial o seu irmão gémeo, Marco, o realizador, que vai descrevendo como aquela grande tribo e os seus desenlaces trágicos lhe marcaram a carreira cinematográfica. Nascidos os dois poucos dias depois da invasão da Polónia pela Alemanha, em 1939, Marco Bellocchio vai também narrando a história de Itália do fim da guerra e do referendo em 1946 que deliberou o fim da monarquia italiana e o exílio de Humberto de Saboia em Cascais, passando pelas revoltas estudantis marxistas-maoistas nos anos sessenta. Marco tenta levar Camillo para as lides revolucionárias da ditadura do proletariado e do maoismo a que Camillo contrapõe: «Marx pode esperar!»

É um filme-documentário realista muito fora do comum sobre a sinceridade catártica de uma família que jamais pode superar ou sublimar um drama incontornável e inolvidável.

O próprio suicídio encerra um respeito silencioso pela dor interior e inexplicável do suicida mas também pelo sofrimento incalculado dos que, em seu redor, lhe sobrevivem.

Contudo, e apesar de ser um filme importantíssimo sobre uma substância implacável, falta-lhe um qualquer grão narrativo que nos deixa a alguns centímetros do fulcro emocional. Pelo menos, foi o que me aconteceu. Eu que choro por tudo e por nada.


jef, agosto 2022

«Marx Pode Esperar» (Marx Può Aspettare / Marx Can Wait) de Marco Bellocchio. Com Alberto Bellocchio, Letizia Bellocchio, Marco Bellocchio, Maria Luisa Bellocchio, Piergiorgio Bellocchio, Pia Bareggi, Elena Bellocchio, Pier Giorgio Bellocchio, Francesco Bellocchio, Gianni Schicchi, Giovanna Capra, Virgilio Fantuzzi, Luigi Cancrini, Pavel Zelinskiy. Argumento: Marco Bellocchio. Produção: Beppe Caschetto, Simone Gattoni. Fotografia: Michele Cherchi Palmieri, Paolo Ferrari. Itália, 2021, Cores, 96 min.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Sobre o filme «Estrada Fora» de Panah Panahi, 2021.



















É difícil classificar racionalmente este filme. Digamos que só o coração nos levará a uma das suas múltiplas chaves emocionais. Podia dizer-se ser uma comédia, se não fosse tudo tão trágico. Também o podíamos colocar no sector dos filmes musicais, pois aqui também se canta desabridamente. Ou, então, levar-nos-ia a colocá-lo junto aos filmes on the road já que se trata de uma família em viagem pelas inóspitas (e lindas!) paisagens iranianas junto à fronteira com a Turquia. O destino é-nos desconhecido, não pode haver telemóveis mas existe uma cadelinha doente e o pai (Hasan Madjuni) vai com uma perna engessada e uma latente dor de dentes. A mãe (Pantea Panahiha) tenta não chorar e guarda um caracol do cabelo do filho mais velho (Amin Simiar) que conduz a viatura com um semblante cada vez mais trágico. O irmão mais novo (Rayan Sarlak) é híper-activo, canta, berra, esperneia e beija o chão que, para ele, é qualquer coisa de sagrado.

Classificá-lo-íamos também como filme de cowboys que percorrem o deserto, quando numa longa cena junto ao rio, pai e filho conversam, desconversando e silenciando, e o pai atira a segunda maçã para a água para poder partilhar o único fruto com o filho.

Ou, então, vê-lo como uma fantasiosa alegoria cinematográfica ao tão ali citado “deslumbramento cósmico” de «2001, Odisseia no Espaço» (Stanley Kubrick, 1968).

Nada neste filme nos é narrado directamente. Tudo é descrito como peças soltas para que a intuição do espectador as junte dentro de si, como um jogo, e construa o seu próprio riso, a sua própria amargura.

A câmara surge em modo distante, fixa, quase alheada da beleza do que observamos. Vinda de longe. Mesmo quando o automóvel se move, a câmara suspende a respiração face às personagens que permanecem num risível controlo-descontrolo (histérico ou melancólico) ao caminhar para a inevitabilidade do destino. E esse destino é também a inevitabilidade do beco sem saída de uma sociedade madrasta. Sim, é o beco sem saída socio-político de um país chamado Irão. Contudo, a descomunal dimensão emocional e afectiva deste filme só nos revela a universalidade do cinema.

Há muito que não via um filme político tão ternurento.


jef, agosto 2022

«Estrada Fora» (Jaddeh Khaki / Hit the Road) de Panah Panahi. Com Pantea Panahiha, Hasan Madjuni, Rayan Sarlak, Amin Simiar. Argumento: Panah Panahi. Produção: Mastaneh Mohajer, Jafar Panahi, Panah Panahi. Fotografia: Amin Jafari. Música: Peyman Yazdanian. Irão, 2021, Cores, 93 min.

 

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Sobre o livro «Um Cemitério para Lunáticos ou Uma Nova História de Duas Cidades» de Ray Bradbury. Cavalo de Ferro, 2020 (1990). Tradução de Miguel Romeira.


 









Eis a definição de Hollywood e do seu cinema, segundo este livro:

«Foi um enorme alívio poder discutir tamanha parvoíce inane e ridícula; só mesmo uma loucura assim para curar a minha loucura galopante. De facto, trabalhar em cinema é como fazer amor com uma gárgula, ocorreu-me. Acordamos e damos por nós nas garras de um pesadelo de mármore e então pensamos: “Mas que raio estou eu a fazer aqui?!” Isto é só gente a mentir e a fazer caretas. Tudo por causa de um filme que, depois, vinte milhões de pessoas correrão a ver, ou do qual fugirão a correr!»

Um jovem argumentista, tão promissor quanto medroso e inseguro é chamado, através de uma nota anónima, ao muro que separa os estúdios da Maximus Films do cemitério contíguo. Será à meia-noite da noite de Halloween de 1954. Porém, o horrível facto observado é, por medo, silenciado e apenas confidenciado ao seu grande amigo e colega de liceu, o genial aderecista Roy Holdstrom. Um facto que relembra um terrível acidente de viação ocorrido ali mesmo, vinte anos atrás.

Com uma graça incrível e uma aceleração de narrativa única, o autor presta homenagem à sua Hollywood, espampanante, delirante e grotesca, regressada dos tempos do cinema mudo, quando as fotografias das divas eram autografadas em delírio. É como um livro para crianças que não tenham medo do escuro, de cemitérios, de monstros ou túneis misteriosos.

Ray Bradbury nunca deixa as personagens à deriva, tratando-as com carinho e devoção, quase com comovente comoção familiar: Elmo Crumley, o detective com jardim tropical, a nadadora Constance, Henry, o cego farejador, o Fritz Wong, de monóculo à Fritz Lang, Maggie Botwin, a exímia costureira de pedaços de película. Também lugares comoa  Green Town ou a Venice, California. Todos saem da imensa ternura de Bradbury, revisitando espaços e figuras de «A Morte É um Acto Solitário» (1985).

Um extraordinário livro de aventuras a meio caminho da conclusão do filme «Cristo e César» e o início da rodagem de «Os Mortos Chegam Depressa». Ou seja, um filme rodado entre a «Sunset Boulevard» (Billy Wilder, 1950) e a «Mulholland Drive» (David Lynch, 2001), onde apenas por acaso não participam os produtores de «Quem Tramou Roger Rabbit?» (Robert Zemechis, 1988).

O melhor livro de férias para divertir os amantes do cinema clássico americano (e mundial).


jef, agosto 2022