Estes contos são maravilhosos.
E mais extraordinários
se revelam ao serem lidos, agora, quando já levo algumas décadas de existência e
uns quantos livros lidos. Quando este século XXI, que deveria ser culto, clarividente
e pacífico, não evitou uma inexplicada guerra entre a Rússia e a Ucrânia. (E,
em simultâneo, verifico na Wikipédia que Anton Tchéchov nasceu em Taganrog uma
cidade portuária russa situada ali mesmo perto da fronteira, no nordeste do mar
de Azov.) Gosto de ler Tchékhov de modo anti-cronológico e tentar descobrir (ou
inventar) nele referências bibliográficas soltas para as minhas leituras dilectas.
Tchékov parece virar do avesso a sociedade feudal russa do
final do século XIX, repleta de castas, estratos, cerimónias e desequilíbrios. Conhecemos
em pormenor os palacetes, as casas e os casebres; os chapéus, as sobrecasacas e
as peúgas vermelhas; as repartições públicas, os círculos sociais e as
refeições dos mais pobres; o trabalho dos servos, a bazófia dos novos ricos, a
reverência subserviente perante a condecoração do superior. Também a zanga, o ódio e o
amor pelo próximo.
Representado, por vezes, pelo lado circense e humorístico,
usando a versão mais subtil do sarcasmo. Outras vezes a mais desabrida. Vejo em
muitas daquelas personagens o lado Buster Keaton, Charlot ou Jacques Tati. Uma
vertente do riso que, por vezes, devêssemos reprimir por também conter a face
triste e nostálgica do ser humano. «O Gordo e o Magro» com que abre o volume é
verdadeiramente cinematográfico!
Os dois contos passados no tribunal são hilariantes: «O Delinquente» e «A Modorra» tocam as raias da
fantasia e da quase comovente e real “surrealidade”. Lembrei-me muito das
crónicas «Levante-se o Réu» de Rui Cardoso Martins.
«Grischa» é um conto “infantil” e psicanalítico, olhando a
sociedade rica de um menino de dois anos e oito meses pelos olhos inexperientes
da criança quando sai pela primeira vez à rua pela mão da ama.
«Espíritos Curiosos (dos anais de uma cidade)» revela
o quase tudo urbano sobre o que na realidade é o quase nada. Paira por ali os
Monty Phyton.
«O Feliz Mortal», onde a solidariedade humana dá a bênção ao
noivo bêbado mais feliz do mundo.
«Um caçador» é o conto mais triste e melancólico da
colectânea, sobre a condição feminina. Lembrei-me de Maria Judite de Carvalho ou
Maria Ondina Braga. Também é o conto onde a elevada urbanidade literária
se liga à irrevogável sensibilidade caridosa com que o autor sempre molda as personagens.
Tal como o mais citado (e extenso) texto «A Dama do
Cãozinho». A aura de fim de ciclo social em confronto com a arreigada vontade
de sobrevivência emocional. A modernidade e a consciência, a revolta no
interior social e, paradoxalmente, a ânsia por não destruir o velho dogma
familiar. A mesma tonalidade das inesquecíveis peças: «A Gaivota», «Tio Vânia»
ou «As Três Irmãs».
Os contos de Tchékhov, é o puro prazer consciente da leitura.
jef, agosto 2022
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