sábado, 26 de março de 2016
Franco Atirador
Vil poeta que saudades trazes
deixando sólido o meu olhar perdido.
Por onde andas tu, distante fito,
que de ânsia nobre o desejo fazes?
Repousa longe, entre flores fugazes,
os cheiros e os rostos da aldeia pura.
Recorda o futuro de que são capazes
as pétalas quentes que a tua mão segura.
Aldeias puras só o passado sustenta,
e este só de palavras se ilumina.
Se, na verdade, as flores são a justa recompensa
por que certa distância o poema não fulmina?
jef, março 2016
segunda-feira, 21 de março de 2016
Agenda Plano
Que necessidade temos nós de fixar o tempo, contando os dias pelos dedos do firmamento ou, pelo muito contrário, fugir da terrível função que faz aproximar o esmeril do rebordo da clepsidra?
Deixemo-nos estar, por enquanto…
Com o sublinhado das tragédias ou das comédias do insólito.
Mnemónicas.
Tremores de terra.
Cavalos mortos nas inundações.
Inaugurações de pontes Salazar.
Revoluções e cravos.
Incêndios no Chiado.
Exposições à beira-Tejo.
Aviões cravados nos edifícios.
Uma cólica emocional.
Um exame difícil.
Uma tarde na praia até o Sol fugir.
Um beijo nocturno, à socapa.
A imagem do gato à janela em dia feliz.
A morte do pai.
Deixemo-nos estar, por enquanto…
Com o picotado que as seis patinhas articuladas deixam sobre
a areia. Recordações de quitina.
Ele vai apressado com o objectivo escondido, incólume, no
futuro. Talvez a fome, talvez o medo, talvez o amor.
Para trás, o vento faz alisar outras tantas impressões
digitais. Fundamental desaparecimento.
Por enquanto, deixemo-nos estar.
segunda-feira, 14 de março de 2016
Ondas Gravitacionais
Ondas Gravitacionais
[Ainda os planetas. Onde assentamos os passos e a gravidade.]
Escrevo a Mercúrio.
Como uma letra chinesa, Mercúrio é mais do que um vocábulo. É
um mito. E um mito é um símbolo, um sinal. Um modo de nos entendermos ou de nos
desentendermos.
Hg. Hidrargírio, prata líquida segundo os antigos. Número
atómico: 80. Massa atómica: 200,59. Invulgar elemento líquido quando a pressão
atmosférica e a temperatura são as que nos atingem. Diz-se romboédrico quando
cristaliza, em condições inauditas. Em tempos idos, gostou da arte de espelhar e
dos termómetros. Faz agonizar o ouro.
Planeta também é, a rodar sobre si e em torno da estrela. Elíptica
translação do mais pequeno planeta do nosso sistema. Diâmetro equatorial de
4.879,4 quilómetros. Tão perto vai do Sol que leva apenas 87,9 dias de
revolução sideral. Dos nossos dias entenda-se, dias da Terra, o terceiro
planeta. Pobre, que nem direito tem a nome divino.
Mercúrio é deus romano mas de brilho fosco quando olha por cima
do ombro e vê no espelho a sombra do grande grego, filho de Zeus e irmão de
Apolo, Hermes o seu nome. Deus do comércio, dos viajantes, das encruzilhadas.
Hermes, sim um grande mito a roubar rebanhos a seu irmão, a inventar harpas e
siringes. De caduceu em riste! Triste Mercúrio sempre com o outro na
comparação. Deus também, dos mercadores, dos ladrões.
Mesmo assim, leva as mensagens e traz notícias de Júpiter. Anuncia
guerras. Quantas vezes terão degolado o mensageiro das sandálias aladas pelo
sangue no punhal que o lacre transportou?
Mercúrio, deus-símbolo de uma posta-restante ancestral. Agora
privatizada.
Por essas e por outras, disse-me ele que não é bom olharmos
para trás pois podemos entender o que temos pela frente. Espelho fatal! Quem
consegue ver por cima do ombro o que já foi, presume que caminha sobre o que ainda
está por ser. Mas espreitar a rota do passado e ver a sombra de Hermes… O
abismo surge a qualquer instante, e o infinito, esse negro vão de escada a
esconder o que seremos, engolir-nos-á de modo instantâneo. O pudim do cosmos.
Mas o futuro, como tu, Mercúrio, é apenas um sinal, um
símbolo, qualquer coisa que apenas indica o desejo.
Uma letra chinesa sem possibilidade de identificação. Pelo
menos, por agora.
E a repercussão desse olhar na esquadria do espaço provoca
ondas que ficam a vibrar tempo demais. Essa atracção ou repulsão no espelho sideral
não deixa nada indiferente.
Por vezes é uma pequeníssima vibração imperceptível.
Mercúrio, falaram-te algum dia das Ondas Gravitacionais? O poder
das massas quando ultrapassam as leis comuns da gravidade e da junção energética.
Uma coisa que é ouvida agora mas que vem do antanho, quando a matéria-anti-matéria
de dois buracos negros se fundiram nos tempos que a memória não compreende. Como
um ralo de banheira centrifugado pela força de Coriolis, a deixar o pano das
abcissas e das ordenadas a tinir por muitos anos e bons.
Estranha a influência do passado que é o nosso futuro, por só
escutarmos as ondas neste momento preciso. Fantasia ou desejo de Einstein?
Mas se o desejo pode ser tudo, até representar a qualidade de
quem espera, então não representa o futuro, o desejo é o próprio futuro. Futuro
como qualidade de Esperança, não te parece?
Caríssimo Mercúrio, escrevo-te.
Coisa estranha essa de enviares mensagens que podem liquidar ou
exaltar o porvir do Cosmos. Esse perfume gravitacional que, de tão forte e
poderoso, altera até o modo como o eixo do Tempo se inclinará.
Quantas mensagens de batalha súbita enviaste através das
ondas do passado?
Quantas mensagens de lençóis trocados por Júpiter transportaste
tu sem a capciosa Juno saber?
Quantas marés gravitacionais estarão ainda para chegar?
Terás deixado no infinito alguma mensagem escrita pelo teu
próprio punho, Ó deus dos ladrões e dos sinais chineses por identificar? Talvez
de guerra ou traição…
Alguma de Amor, essa inequívoca lei da atracção universal das
massas?
Escuta, Mercúrio, o que Einstein nos diz:
«Na complexa estratégia gravitacional dos planetas, não basta
atrair, é fundamental influenciar!»
quinta-feira, 10 de março de 2016
Sobre o filme «Muito Amadas» de Nabil Ayouch, 2015
A vida é um cliché.
O filme até pode estar ensopado em clichés, mas deixa um
espectador, aquele que olha um filme com o coração e a memória, a reflectir em
como esta história é mesmo muito velha. Assim sempre repetem. Tão velha
como a humanidade e, por isso, tão literária. É uma história, para o bem e para
o mal, perene, sem julgamentos oficiais ou paternalismos evangélicos. Estas
mulheres são bonitas. Estas mulheres sofrem mas divertem-se muito! A Europa, Espanha, a Arábia
Saudita, Marrocos, talvez não sejam assim tão bonitos. Marraquexe é
inesquecível!
jef, março 2016
terça-feira, 8 de março de 2016
Sobre o filme «O Filho de Saul» de László Nemes, 2015
Tudo o que brilha! Tudo o que brilha!
Tudo o que falta está para além, para lá dos dois ou três
metros da exacta focagem. Tudo o que resta é a morte ou é a vida ou é essa
película indistinta que as separa. Desfocado. O horror é demasiado para ser
colocado directamente sob o olhar do espectador. O importante é estar perto,
muito perto. O importante é a resistência. Também a acção e os movimentos de
Saul Ausländer.
Auschwitz, Polónia, 1944. Os soviéticos avançam sobre Cracóvia.
Os fornos já não dão vazão à massa combustível e a morte a tiro nas valas
comuns é apressada e ineficaz. As cinzas atiradas às águas do rio é um método
desorganizado.
Contudo, existe um corpo que tentou resistir à fúria da «Solução
Final» e ao «Zyklon B». A esse corpo chamou Saul seu filho. Tudo o que falta a esse
corpo é a terra. Tudo o que pode ainda brilhar é a oração.
Mas a oração pode ser vã.
As palavras nela contida e a consciência do espectador não o serão.
Sobre o assunto, Claude Lanzmann, em «Shoah» (1985) e «Sobibor»
(2001), demonstrou que uma palavra focada pode honrar a vida ou a morte de 6.000.000
de imagens perdidas.
«O Filho de Saul» (Son of Saul / Saul Fia) de László Nemes, 2015. Com Géza Röhrig, Levente Molnár, Urs Rechn, Todd Charmont, Sándor Zsótér, Amitai Kedar, Uwe Lauer. Hungria / EUA, 107 min.
quinta-feira, 3 de março de 2016
Sobre o filme «Solaris» de Andrei Tarkovsky, 1972
Regressemos à Terra.
O oceano de Solaris anda nervoso. Sub-reptício, pela calada
da noite, retira personagens dos sonhos e confronta os homens com as suas
recordações mais fundas. Kris é visitado por Hari. E quem já morreu uma vez não
tem medo de morrer novamente. Hari volta uma e outra vez.
Estaremos preparados para tantas ressurreições? Estaremos
condenados à alucinação?
A consciência da alucinação será a própria loucura ou o seu inverso?
Remorso.
Fausto. Tolstoy. Dostoievsky. D. Quixote. Martin Lutero.
Sísifo. Bruegel, o velho.
Qual o nome completo de Deus?
Qual o verdadeiro sentido da vida?
Será a felicidade um dado obsoleto?
Amaremos mesmo o que tememos perder?
O melhor mesmo é regressar à Terra.
jef, março 2016
terça-feira, 1 de março de 2016
Sobre o filme «Andrei Rublev» de Andrei Tarkovsky, 1966
Neva na catedral.
Após a profanação do templo, os dois monges estetas angustiam:
«Não há nada mais horrível que ver nevar na catedral». E no espectador cala fundo
a evidência da liturgia do sublime, da substância arquitectónica da metafísica.
Nada mais há a dizer sobre o filme [e vem-me à memória outra obra onde a
crucificação de Cristo é igualmente colocada de modo tão avassaladoramente
espiritual que torna o acto artístico pura ideologia. Refiro-me a «O Evangelho
Segundo São Mateus» de Pier Paolo Pasolini, 1964. Dois anos separam os dois
filmes!]
Em «Andrei Rublev», logo no início, é-nos revelado: «Para
chegarmos à essência das coisas temos de encontrar a verdadeira palavra.» E
aqui notamos outras das demandas obsessivas de Tarkovsky – a busca de uma
linguagem artística tão pura que revele o cerne da verdade, sendo tal criação humana
dádiva pela sua própria criação. A verdade! Nada mais fácil de perseguir. Tão mais
difícil de tocar.
E quanto sofrimento leva a fundição de um sino perfeito?
Tamanha
abnegação e dor faz do fraco o mais forte. Do fraco será o reino da verdade porque tomou ele o amor como
fé e a terra como sangue. O que resta é dor.
[E beleza, acrescento eu!]
Repito, nada há a dizer sobre «Andrei Rublev».
jef, fevereiro 2016
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