quinta-feira, 15 de maio de 2025

Sobre o filme «Bird» de Andrea Arnold, 2024

 


























Natureza aprisionada. No início, Bailey (Nykiya Adams) observa as aves através das grades de uma passagem para peões. Ela filma com o telemóvel tudo o que voa, gaivotas, moscas, borboletas. Depois projecta as imagens na parede riscada da sua espécie de quarto. É a sua liberdade solitária. Do outro lado da cortina, dorme o irmão, Hunter (Jason Buda). Mais à frente o pai, Bug (Barry Keoghan) com a sua noiva. Bug tem uma espécie de oportunidade de negócio com a aquisição de um sapo alucinogénio que baba quando ouve Coldplay.

Baley representa o ponto de fuga, adulto e responsável, também as linhas de convergência num horizonte tão inóspito quanto libertário. A câmara corre desesperadamente atrás da história e dos movimentos das personagens até estacionar frente à indómita perseverança de Baley. Aí parece que a respiração se sustém para poder observar os animais e observar-nos.

Bird (Franz Rogowski) aparece do nada num campo em pousio onde os cavalos pastam. Também ele desaparecerá na vacuidade do tempo, feito anjo da guarda. Ele apenas tenta descobrir uma certa origem desaparecida. Exactamente o oposto do que se passa com Baley, que vive rodeada de camadas sobrepostas de família, conhecidos, desconhecidos. Por isso, Bird e Baley se reconhecem e se amarão. Apesar de tudo, é essa a palavra certíssima a ser utilizada.

Por fim, a conclusão parece tender para a inconclusão, ou antes, para a destruição violenta final. Contudo, o que acharíamos ser um filme realista sobre a Inglaterra frugal e fatal em jeito de Ken Loach ou Mike Leigh, termina como uma fantasia (epifania) necessária para que a unidade cósmica tenha o seu ponto de fuga e a esperança na reunião familiar, as respectivas linhas de convergência!

Por tudo isso, enquanto o genérico final vai correndo sem explicações ou categorias de participação, em cada canto do bairro todos cantam (pelos Blur): “it really, really, really could happen” (‘The Universal’)

 

jef, maio 2025

«Bird» de Andrea Arnold. Com Nykiya Adams, Franz Rogowski, Barry Keoghan, Jason Buda, Frankie Box, Jasmine Jobson, James Nelson-Joyce, Jason Williamson, Sarah Beth Harber, Rhys Yates, Joanne Matthews, Kirsty J. Curtis, Calum Speed, Andrew Richard Bryant. Argumento: Andrea Arnold. Produção: Lee Groombridge, Juliette Howell, Tessa Ross. Fotografia: Robbie Ryan. Música: Burial. Guarda-roupa: Alex Bovaird. Grã-Bretanha / Dinamarca / França /EUA, 2024, Cores, 119 min.

 

terça-feira, 13 de maio de 2025

Sobre o filme «O Ano Novo Que Não Aconteceu» de Bogdan Mureşanu, 2024



 




















Afinal, na Roménia, o 25 de Abril aconteceu no dia 20 de dezembro de 1989. Eis um facto que serve de mote tenso ou conclusão alegre a todo o filme. Uma história social, política e familiar entre a nostalgia, a opressão e a esperança. Nada nos é explicado a priori e todas as diversas personagens centrais, ou núcleos familiares, surgem em simultâneo, sequencialmente e sem aviso prévio. Suspeitamos que todas estão relacionadas, porque é um filme romeno na esteira de outros vindos de décadas atrás, onde a tragédia não deixa de conter algum laivo de comicidade no interior: «12:08 A Este de Bucareste» (Corneliu Porumboiu, 2006), «A Morte do Senhor Lazarescu» (Cristi Puiu, 2005). Logo de início, enquanto a radio do carro toca uma canção, duas personagens falam em surdina de uma suposta resistência clandestina. Também falam de um recente caso de repressão violenta com vítimas em Timişoara. Uma estação pública de televisão grava o programa de final de ano mas a vedeta feminina acaba de desertar para o estrangeiro e vai ter de ser substituída sem grande espalhafato mas com um grau de ansiedade cada vez maior. Uma criança escreve ao pai Natal e pede como presente para o pai a morte do “Tio Nick”. Dois estudantes seguem de carro clandestinamente, equipados e com dinheiro, para mergulharem na fronteira do Danúbio. Um prédio será demolido mas a velha inquilina recusa-se a abandonar o apartamento. Um censor teme que o telefone esteja sob escuta, e deve vigiar as toupeiras que o regime introduziu no meio universitário.

Toda a história se encaminha para o dia certo, todos se vêem no fio da navalha. Nós acompanhamos o entrelaçar das histórias num minucioso trabalho de argumento. Começamo-nos a interessar por todos os personagens, a entender os seus dramas, a torcer por que tudo acabe rápido e os deixe em paz. Acabamos por gostar de todos.

Chega o dia da grande parada dos trabalhadores frente à varanda onde discursará o grande líder quando parece que tudo está à beira de sucumbir. Porém, nós continuamos a escutar o longo cadenciar de tercinas do Bolero de Ravel como sinal final de esperança.

É comovente a sequência final de cenas de arquivo onde a alegria popular se expande e a nossa memória recorda emocionalmente uma das primeiras revoluções na segunda metade do século XX – o 25 de Abril de 1974.

(Muita atenção à aos decores, ao guarda-roupa, à banda sonora.)

 

jef, maio 2025

«O Ano Novo Que Não Aconteceu» (Anul nou care n-a fost) de Bogdan Mureşanu. Com Adrian Vancica, Iulian Postelnicu, Emilia Dobrin, Nicoleta Hancu, Marian Adochitei, Virgil Aioanei, Afrodita Andone, Mircea Andreescu, Iulian Burciu, Florin Calbajos, Mihai Calin, Doru Catanescu, Sorin Cocis, Marius Damian, Elvira Deatcu, Ioana Flora, Ada Gales, Floriela Grapini, Manuela Harabor, Ilinca Harnut, Vlad Jipa, Mircea Lacatus. Argumento: Bogdan Mureşanu. Produção: Bogdan Mureşanu, Viorel Chesaru e Vanja Kovacevic. Fotografia: Boroka Biro e Tudor Platon. Guarda-roupa: Dana Anghel. Roménia, 2024, Cores, 103 min.

domingo, 11 de maio de 2025

Sobre o disco «Scars and Ashes» de Decline and Fall. Bleak Recordinds, 2025.


 











Podemos tomar este disco como a afirmação de um percurso desejado, amado e coeso através do princípio libertário dos Decline and Fall. Pesquisar nos arquivos do passado a eterna sustentação da criação no presente. Simples e complexo ao mesmo tempo, porque vão directamente vasculhar aos meus próprios arquivos (Ah, Joy Division! Ah The Durutti Column!) 

O futuro é simplesmente uma consequência e este LP é o futuro lógico e consequente dos dois EP, «Gloom» e «Pulse», editados pela banda em 2024. Digamos que a partir do negro que toda da luz absorve expande-se esta ópera electro-pop-punk sobre a viagem ao interior emocional de um coração que busca e se perde, mas também em torno do nosso quarto fechado – como se estivéssemos a revisitar a «Viagem à Volta do Meu Quarto» (Xavier de Maistre, 1795).

Dois actos, nove faixas, que terminam, um, com a expressa vontade do regresso a casa mesmo que todos os caminhos sejam enviesados e se dirijam a uma outra cidade, no final do lado A (“Rome”); o outro, com o belo e talvez possível reconforto no seio de um amor, no final do lado B (“Whenever Your Eyes Glow”).

Um álbum tão íntimo e obscuro quanto luminosamente sinfónico.

Ao mesmo tempo, um álbum muito fácil de entender, quase viciante.

A capa reproduz duas peças do artista plástico Paulo Romão Brás.

 jef, maio de 2025


quinta-feira, 8 de maio de 2025

Sobre o filme «Carta de Amor» de Kinuyo Tanaka, 1953


 



















Guerra, livros e cartas de amor.

O primeiro filme realizado pela actriz Kinuyo Tanaka. Não sendo possível esquecer os espaços geométricos, restritos, interiores do Japão de Yasujiro Ozu, o filme surge modernista com a exigência cénica de outros espaços, os espaços exteriores. Espaços livres e arborizados, profundidade de campo poético, um modo de colocar a intimidade do amor e da amizade sob o foco amplo do ambiente público, mesmo que esse cenário aponte para a solidão e indique a paixão reprimida, o desejo adiado, a culpa intrínseca.

A guerra terminara, o Japão perdera, a América ocupara e impusera um ritmo e um estilo de vida, para além de soldados famintos de companhia. O emprego escasseava, o dinheiro fugia mas os produtos americanos eram cobiçados: os tais soldados com dólares e modernas revistas.

Dois irmãos partilham uma casa. O melancólico Reikichi (Masayuki Mori), repatriado de guerra, faz traduções encomendadas pelo irmão Hiroshi (Juzo Dozo), um fura-vidas que compra e vende livros e não pára até conseguir um quiosque para estabelecer o seu próprio negócio. Não compreende por que é que o irmão nunca sai de casa. Este guarda no bolso uma velha carta de amor, recebida durante a mobilização e, na carteira, uma antiga fotografia de quem a enviara.

Reikichi, entre a multidão que enche as ruas e os comboios de Tóquio, procura insistente alguém. Contudo, esse alguém não surge mas nessa busca acaba por encontrar um velho amigo de infância Naoto (Jukichi Uno) que lhe propõe um estranho emprego: escrever cartas de amor em inglês aos soldados americanos que partem, pedindo-lhes dinheiro para aquelas que eles deixaram no Japão.

Entre aquelas que encomendam as cartas, surge uma voz que conta uma história que parece ser diferente, uma voz de alguém que Reikichi reconhece mas que não chega a ver de quem é.

(Ela é Michiko, a actriz Yoshiko Kuga.)

Esta é uma história sobre a condição feminina e as cicatrizes incuráveis que a guerra deixa na cultura e na vida de uma cidade. A história de uma magnífica amizade, de um amor indissolúvel. A definição da dignidade feminina, do remorso e do eterno e exigido perdão.

Se o genérico inicial mostra o deslumbramento de uma pintura fugaz sobre o papel e a escrita japonesa, as cenas finais traçam de modo peremptório a superioridade cinematográfica de Kinuyo Tanaka.


jef, março 2025

«Carta de Amor» (Koibumi) de Kinuyo Tanaka. Com Masayuki Mori, Yoshiko Kuga, Jukichi Uno, Juzo Dozo, Chieko Seki, Shizue Natsukawa, Kyoko Anzai, Yumi Takano, Kikuko Hanaoka, Harumi Kajima, Ichiro Kodama, Ryuzo Oka, Toshikazu Hara, Sayoko Ono, Chiyoko Kuni, Akiko Kamishiro, Naoko Kubo, Sanae Mitsuoka, Yôko Mihara, Yôko Fujikawa, Junko Mizuho, Teru Harumi. Argumento: Keisuke Kinoshita segundo o romance de Fumio Niwa. Produção: Ichiro Nagashima. Fotografia: Hiroshi Suzuki. Música: Ichiro Saito. Japão, 1953, P/B, 94 min.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Sobre o livro «Pôr-do-Sol» de André Ruivo. The Inspector Cheese Adventures, 2025



 




«Clair de Lune» foi composto por Claude Debussy no início do século passado inspirado no poema de Paul Verlaine. Uma obra ondulante e sonhadora sobre a eterna tristeza que nunca deixa de dançar por entre o segredo nocturno das árvores. Em tom menor. Digamos que é uma faixa maravilhosamente escondida no final do novo livro do pintor de ocasos André Ruivo.

Um parágrafo escrito em modo expressamente pós-romântico, debilmente lírico, inspirado ele na contra-capa final deste «Pôr-do-Sol». Dentro, dez obras que desenham a melancolia abstracta com que a tarde termina, o sol final se insinua e a perspectiva vazia da noite chega. A espera dolorosa e eterna pelo clarear possível da aurora. O sol é infinitamente teimoso em desaparecer.

Não direi que os desenhos são a preto e branco, pois o traço muito denso, escuro e linear está inscrito em suave cartolina de cor da pérola. Pelo meio, as teias nevróticas da aranha mostram os seus vértices pontiagudos. Vá, talvez seja apenas uma momentânea sesta nocturna compensada com uma pequena ajuda química. Talvez um sonho, uma janela aberta. Uma lágrima.

São histórias muito simples, talvez mesmo dramáticas, o que neste livro de 18 x 18 centímetros o artista plásticos André Ruivo nos está a contar.

E nós contamos com ele.


jef, maio 2025

terça-feira, 6 de maio de 2025

Sobre a apresentação do # 8 de «A Morte do Artista». Biblioteca Palácio Galveias, 17 de Maio de 2025, 16h00. Lisboa.



 







Hoje em dia, e quem sabe talvez mesmo ontem em dia, muitos andam para aí a falar da boca para fora (e do seu porta-moedas para dentro). Por isso, veio-nos à ideia apelidar assim o volume #8 de «A Morte do Artista».

Como chegámos até aqui é difícil de explicar pois o ritmo editorial é desenfreado e louco. Uma revista por ano!

Relata o editorial no seu início:

«Escrever um texto a oito mãos seria tarefa fácil para um polvo, caso os polvos dominassem a arte da escrita. Tratando-se de bichos homens, em oito mãos contam-se 40 dedos, mais do que as letras do alfabeto, cada um deles com disponibilidade para pressionar o teclado (uns com mais destreza do que outros, pois está claro). Além disso, é preciso acrescentar um mínimo de quatro cérebros, cada um mais teimoso do que o outro, pois sabe-se que, sem estes, as mãos ficam penduradas, sem saber onde se meter…»

Desta feita, e atrás do já referido tema «Da Boca para Fora», chamámos 11 escritores que na sua opinião e ficção se juntaram a nós com todo o seu bel-prazer. Afinal, a ficção é a maior e a melhor das verdades. Uma verdade que todos desejamos que seja a razão imaginada de uma felicidade comum.

A saber.

Hélia Correia é a nossa querida artista consagrada que nos conta a história «Estar a mais». Uma espécie de profecia sobre a robótica do novo corpo e a sensualidade abstracta do novo espírito.

Julieta Monginho narra uma viagem sentimental, emocional e estratégica de uma separação em modo turístico.

Em «Verdes» Margarida Fonseca Santos fala-nos de uma pintora que olha o colorido da botânica com a sensibilidade familiar de uma casa que está prestes a desaparecer.

João Nuno Azambuja transcreve o seu apócrifo evangelho sobre a leviana palavra de Deus «Fiat Lux».

Fernando Ramalho revela-nos algumas páginas secretas dos «Cadernos da Aliança Operária».

Ricardo Marques segreda-nos ao ouvido a poética de um «Tríptico da

boca para fora».

Karl Seglem traz-nos a poesia do gelo norueguês no sopro de «Os ventos contínuos».

Ozias Filho desvenda-nos a carícia da palavra dita pelos lábios açucarados de «Marshmalow».

Rui Môço conta-nos afinal um segredo húmido. O que em silêncio diz o diálogo entre dois corpos «Da boca p’ra dentro».

Manuel Abrantes escreve sobre a história fantástica de um romance «Inesquecível».

João Aveiro Pereira fala-nos em «Da boca para fora» da conturbada vida laboral de um jobem cumpridor.

Por fim, Miguel Jesus escreve uma carta de amor a Hélia Correia - «Querida Hélia».

Pelo meio, os mais mentirosos, os artistas mais moribundos, reunidos: Fernanda Cunha, Manuel Halpern, Paulo Romão Brás e este que assina João Eduardo Ferreira, compõem o modo gráfico e reescrevem sobre a imagem ou a ideia de um diálogo entre papagaios dorminhocos; a lição de nos sentirmos a sós dentro de nós próprios; ou de um inesperado graffiti daltónico; de um veneno como definidor de uma relação com futuro incerto; de um modo artístico e plástico “Espuma, Ruído e Atonia (2020-2025”; ou sobre a ideia individual de um candidato que toma o princípio privado do seu futuro pelo fundamento do colectivo eleitoral.

E, assim, mais uma vez em Maio, o mês dos malmequeres, dos milagres, das mulheres e dos homens, também da liberdade, da democracia e das eleições, «A Morte do Artista» #8 será lançada aos quatro ventos, pólens e alegrias na Biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa, no dia 17 de Maio, pelas 16h00. Haverá drama, convívio, refrescos e bolinhos.

Venham de lá para cá! Para a mais bela Biblioteca Palácio Galveias!

Não faltem!


jef, maio 2025

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Sobre o concerto de Decline and Fall, Cine-Teatro Turim, Lisboa, 2024






 


















(fotografia de Rute Leonardo)



(fotografia de Rute Leonardo)




(fotografia de Paulo Romão Brás)







Na noite do dia 3 de maio de 2025, descemos ao negro Cine-Teatro Turim para celebrar com os Decline and Fall o desvendar do que estará por trás da porta fechada, o que se esconde para lá do nevoeiro, aquilo que a cortina de água no vidro vai deformando.

É o primeiro concerto. As 80 cadeiras de veludo vermelho fazem de contraponto visceral ao negro do palco, talvez ao cabedal negro do público. Um público que sabia e ansiava pelo que iria assistir, comovida (ou inebriada) pela celebração colectiva. Afinal, é sempre na família que se revela não o vermelho do veludo das cadeiras mas o do coração.

Ali estavam no palco pequeno mas ampliado pelos vídeos de Rui Veiga que aprofundavam a abstracção sonora: Armando Teixeira, Ricardo S. Amorim e Hugo Santos. Uma caixa de música ou caixa de ressonância para esse ambiente ectro-romântico chegado dos EP «Gloom» e «Pulse» (2024) e do recente LP «Scars and Ashes» (2025). Começando pelo denso caminhar sinfónico de «As All Ends» até a versão de «Warm Leatherette» regressado, cinquenta anos depois, dos The Normal com aquele quase demente refrão. 

Pois é evidente, e contrariando a canção que abre último álbum, nada assim acabará. Nem punk “sinfónico”, muito menos gótico “progressista”. Qualquer classificação arrepia e irrita, quase agonia, para além de não termos tempo de procurar a prateleira certa onde os colocar. A nossa memória deve agora esquecer. É necessário escavar as camadas emocionais do xisto estratificado ou do granito eruptivo para ir encontrar o pulsar encarnado dos corações dos Decline and Fall. Ao vivo, fica mais audível e visível: eles buscam o passado para o ir declarar à parede volátil do futuro. 

Lá nos encontraremos!


jef, 3 de maio de 2025