sábado, 30 de abril de 2016

Reflexo urbano












Há qualquer coisa no reflexo
(ali, sobre o asfalto molhado)
que nos diz que aquilo está para além do que se vê,
está para além de nós.
Aquilo que ali está vai para além do que se acredita.
E nós mantemos os pés juntos como se eles garantissem que aquilo que se vê ali na rua,
espelhado na água da noite,
é o que jamais será
(reflexo de prédio e meio e luminárias urbanas em simetria),
reflexo de nós.
Mas talvez seja esse além do acreditar,
essa ideia perene do improvável palpável
que nos mantenha os pés juntos,
e garanta a alegria instável de suspeitar que o centro de gravidade
continuará em geometria linear com a base de sustentação
do futuro.

jef, abril 2016

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Sobre o filme «Arsenal» de Aleksandr Dovzhenko, 1929



















O movimento tomado como alma. 
Dizem certas correntes da espiritualidade que a alma está contida no olhar (fotografias à parte, que a sonegam!). Os 87 anos deste filme assim indicam nesse expressionismo extravagante e poético, nesse desconexo pretexto narrativo, nesse humor a extravasar a tragédia e o drama. O desastre ferroviário a lembrar o futuro dos filmes catástrofes com o concertina a escorregar moribunda pelo plano fora. O operário desmobilizado (Semyon Svashenko) a gritar: «O maquinista sou eu!» Os planos diagonais, as figuras a desapareceram na cena, os esgares caricaturais e burgueses na Assembleia a serem combatidos pela exigência do poder soviético. A cavalgada desenfreada sobre a neve para poderem enterrar condignamente o herói morto em glória. A imobilidade de quem  já não tem força, não resiste ou colabora. A insurreição reprimida.
Esse poema máximo do operário em greve que dá o peito às balas e não morre. A essência da alma de um homem invencível pelas suas ideias e pela sua acção.
E os olhares a extravasarem a alma…
A reinvenção estética e libertária de um cinema que acabara de ser inventado!

jef, abril 2016

«Arsenal» de Aleksandr Dovzhenko. Com Semyon Svashenko, Amvrosi Buchman, Georgi Khorkov, Dmitri Erdman. Ucrânia, 1929, P/B, 90 min.

terça-feira, 19 de abril de 2016

E Zeus deixará cair a máscara


















Saber pelo mal que existe
o bem que nos faremos.
Se o vento nas tabuas persiste,
segredo de rãs e alfaiates,
sobre o rio perene, ele de prece servirá.
Oremos então.
Leda ama, o cisne se revela,
nocturno e branco
silhueta do Deus.
A água e o amor, sombra de sua vela,
a rocha húmida, viciada de luar.
É o pequeno céu que desafiamos,
da flor exígua que se entrega,
seremos nós a buscá-la:
ranúnculo, alga, semente a vogar como provir
na ténue corrente,
no exíguo firmamento,
a dificuldade das constelações
derrotada pelo diálogo da madrugada.
Conquistamos assim o que é escuro
e de estranha luz do entendimento o faremos.
Castor e Polux nascerão.
O futuro será nosso, o bem também.
E Zeus deixará cair a máscara.

jef, abril 2016

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Sobre o filme «A Lição» de Kristina Grozeva e Petar Valchanov, 2014








Contra-relógio.
Não sei se é fácil organizar a ansiedade mas Nade (Margita Gosheva), professora de inglês, mantém a vida na justa parcimónia da razão. É cuidadosa na sua apresentação na escola. É meticulosa a apanhar os papéis do chão. É justa na avaliação e face ao comportamento dos alunos. Mas a sociedade (a familiar e a outra) está contra ela. Tem de correr para que a vida não descambe. E tudo está contra quem menos tem, quem menos pode. Nade luta até ao fim para que o lado justo prevaleça e que a humilhação social se mantenha dentro das exigíveis baias.
A meticulosa correria contra a adversidade sugere outros filmes, outros actores, outras circunstâncias. A maravilhosa Gena Rowlands em «Gloria» de John Cassavetes, 1980. A incansável Marion Cotillard em «Dois Dias, uma Noite» de Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2014. E claro e não comparando mas simbolizando, Lamberto Maggiorani como Antonio Ricci de «Ladrões de Bicicletas» de Vittorio De Sica, 1948.
O cinema serve (também) para sublinhar a Verdade.
«A Lição» é uma parábola estética sobre a condição humana, por isso o final é quase irónico por interrompido. O confronto do olhar entre os dois ladrões vale a conclusão moral que deixa no espectador. Um quase sorriso de vencedora.
Quanto custa organizar a ansiedade?
Qual o preço cobrado actualmente pela dignidade?
[«Lava Jato / Panama Papers» 0 - «A Lição» 100]

jef, abril 2016

«A Lição» (Urok) de Kristina Grozeva e Petar Valchanov, 2014. Com Margita Gosheva, Ivan Burnev, Ivanka Bratoeva, Ivan Savov, Deya Todorova, Stefan Denolyubov. Bulgária / Grécia, Cores, 111 min.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Sobre o filme «A Infância de Ivan» de Andrei Tarkovsky, 1962











A génese e a tese.
Para entender a dimensão bíblica ou homérica do cinema de Andrei Tarkovsky, no sentido de narrativa infinita (diria José Tolentino Mendonça), observemos as personagens encarnadas pelo actor Nikolai Bourliaev. Ivan, em «A Infância de Ivan» 1962 e Boris em «Andrei Rublev» (1966). Na realidade, a mesma figura infante, órfã e adulta, tornando todos os mais velhos que se lhe aproximam espectadores infantis e receptores inseguros da sua dádiva absoluta, sem hipótese de retorno. Digamos «dádiva cristã». Ivan sofre de sonhos, quatro memórias da absoluta perda maternal. Contudo, Ivan transforma-as em direito de ser batedor-espião junto da frente soviética contra o avanço nazi. Ele recusa ir para a academia, deseja continuar a combater na frente de batalha. Apenas exige tal paga. Mais nada quer. Ivan é o Herói, o órfão-guerreiro, protegido entre os oficiais soviéticos, exaltando nestes o lado mais puro e maternal, talvez carente. Também o choro convulsivo e catártico de Boris, a criança-sineiro, nos braços de Andrei Rublev é um simétrico da Pietá.
Em «A Infância de Ivan», Andrei Tarkovky inicia essa génese-tese estética a que podemos chamar luta pela Redenção contra a Violência, o Abandono e o Exílio. 
O perdão de Cristo, o exílio de Ulisses.
Simultaneamente, o nosso próprio exílio, o nosso próprio perdão.

jef, abril 2016


«A Infância de Ivan» (Ivanovo Detsvo) de Andrei Tarkovsky., Valentin Zoubkov, Evgeny Zharikov, Stepan Krylov, Nikolai Grinko, V. Malgavina, Irma Tarkoskaia, Andrei Mikhalkov-Kontchalosvky. 1962, P/B, 95 min.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

A Traição, a Intimidade, o Conceito. A Sombra das Mulheres. Continuação.













A Traição, a Intimidade, o Conceito.

Retalio a retaliação vincada no perspicaz texto II de Fernanda Cunha, sobre o filme de Phillippe Garrel.

«Na minha perspectiva, coloca a tónica da história não na intimidade de ambos mas na intimidade de cada um dos protagonistas, em separado. O que interessa não é o motivo da traição mas o que acontece depois disso.» Cunha dixit.
http://enquantooazinhoarde.blogspot.pt/2016/04/a-sombra-das-mulheres.html

E concordo.

O que assistimos é à traição (ou traições, neste caso) olhada pelo lado oposto de quem a sofre ou pratica. Em espelho explicativo-amoralizador, acentuado pela voz-off de Louis Garrel. 

A amante de Pierre, Elisabeth, deparara-se com Manon (mulher de Pierre) a traí-lo na esplanada de um café e isso deixa-a em modo «confrangido». Representa talvez a desilusão pela «integridade moral» do seu amante. É mais respeitado «o homem que trai» do que «o homem que é traído». [O facto visto do lado das mulheres (ou pelas mulheres) mudará de figura.]

Manon, quando confrontada pelo marido com o adultério que pratica, imediatamente se retrai e acaba com o namoro. Apesar de todas as suspeitas, Manon protela a confrontação pelo adultério do marido.

Pierre não deixa Elisabeth mas esta, como amante, «perde «interesse».

Manon e Pierre passam a viver separados mas a sombra alheia permanece em ambos.

Não será a traição (ou «engano», para usar uma espécie de sofisma branqueador) a quebra irreversível da confiança entre duas almas?
Quanta dessa confiança partilhada se apelidará de «intimidade»?
Nessa intimidade «dupla» onde se situa as duas intimidades individuais envolvidas, de que fala Fernanda Cunha?

Qual o conceito moral imposto ao indivíduo pela sociedade ou pela cultura desta perante o «adultério»?
Não será abuso chamar a essa imposição social «preconceito»?

[Já não estou a perceber nada… o melhor é voltar a ver o raio do filme!]

jef, abril 2016


«À Sombra das Mulheres» (L'Ombre des Femmes) de Philippe Garrel. Com Clotilde Courau, Stanislas Merhar, Lena Paugam, Vimala Pons. França / Suiça, 2015, P/B, 73 min.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Ciclo da Água










Ciclo da Água

Serenas, as águas perdem-se sem que ninguém as oiça.
Felizes são os amores alheios.
Devotos, os monges recolhem-se na alienação.
Alegres, os amantes fantasiam.

A fêmea fabrica o ninho sem perceber porquê.
O cúmulo-nimbo provoca trovoadas magníficas.
O arquitecto deslumbra-se com a solução, semelhante a um vitral visto numa igreja antiga.
Os vulcões activos aguardam. As placas geológicas por baixo do oceano, idem.
O gato espreguiça-se obviamente. Obviamente, porco é morto.
A mãe, em repugnância, tenta tirar a última lêndea que o filho apanhou na escola.
No vale, os animais vivem em sossego. A montaria é organizada com entusiasmo.
O engenheiro olha para a esquadria certeira do nónio.
Absorto, o pintor faz recair toda a atenção sobre as tintas que está a escolher.
O escritor retira as palavras e não vê entrar a Primavera.
O advogado advoga. As vizinhas conversam.
Contra as expectativas, o filme esgota as salas onde é exibido.
O lagarto escolhe o lado quente da rocha.
O autocarro chega a horas e eu estou já na paragem.
Tranquilo, o cadáver despede-se das células e da alma, aguarda os invertebrados.
O búteo dá um giro no céu sem qualquer propósito.
A Terra continua a rodar e a elipsar. Uns apanham sol, outros, não.
A escultura parece estar a cair mas mantém-se ali há séculos.
A praia é um sinal abstracto e consentido de prazer.
As flores estão prontas a florir.
O frio é coisa dos termómetros.
Calmo o degelo.
A leitura é coisa dos anjos. A luz, as palavras, o olhar, os centros nervosos, as sinapses, a compreensão total no laço da ideia. A alegria para quem nunca pensou propriamente nela.

Será mesmo que o amor é coisa da imatéria?
Qual a matéria que a energia não transforma?


jef, abril 2016

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Sobre o filme «À Sombra das Mulheres» de Philippe Garrel, 2015















Comédia romântica.
O problema desta comédia de costumes é que é triste. E eterna.
Pierre (Stanislas Merhar) é casado com Manon (Clotilde Courau). Pierre engana Manon com Elisabeth (Lena Paugam). Manon engana Pierre. Pierre tenta realizar um filme sobre a Resistência Francesa com a ajuda de Manon. E fica assim quase tudo dito.
Esse quase tudo é contado em planos simples, a preto e branco. A narrativa acelerada e amoralizada pela voz off (Louis Garrel). A banda sonora de Jean-Louis Aubert sublinha a indolência do estio.
Phillippe Garrel não filma a infame guerra de sexos, plagiada desde sempre pelos textos de palco onde a força e a intuição do sexo fraco sempre vencem, a bem da moral. O realizador narra o desencanto do tempo a fluir pelas pessoas. A distracção mais do que traição, o desconsolo resignado mais do que terna paixão ou desgosto arrebatado. Terá Freud investigado a Pulsão do Tédio?
O problema desta comédia romântica é que é um drama sobre quase nada. Um drama sobre vidas remediadas, sem empregos razoáveis, sem casas razoáveis, sem amores razoáveis. 
Uma comédia importante sobre o vazio e o falso. 
Vendo bem, criatividade de tradutor à parte, Phillippe Garrel filma muito mais sobre «A Sombra das Mulheres» do que «À Sombra das Mulheres».

jef, abril 2016

«À Sombra das Mulheres» (L'Ombre des Femmes) de Philippe Garrel. Com Clotilde Courau, Stanislas Merhar, Lena Paugam, Vimala Pons. França / Suiça, 2015, P/B, 73 min.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Sobre o filme «O Rolo Compressor e o Violino» de Andrei Tarkovsky, 1960.










Em defesa da Academia.
Pode ser este um filme de fim de curso. Pode ser uma obra feita à medida das leis que a aprendizagem e o treino exigem, fruto das circunstâncias e das condições do mundo e da vida. Mas a Academia existe para definir os modos de descobrir e recriar o mundo e a vida.
Existe nele uma definição muito clara, digamos meteorológica, de identificar os objectos e os encontros, uma definição quase muda, quase só olhares e intenção de cumprir a estratégia da luz. Como em Jacques Tati e Yasujiro Ozu [também contemplados há pouco neste Cinema Nimas]. Mas já aqui a «hipersensibilidade» da banda sonora [a música de Viatcheslav Ovtchinnikov] e os planos de água e as linhas a cruzarem o ecrã. Uma esperança latente na esquadria dos enquadramentos, na emancipação feminina e da infância, na emancipação dos afectos e do cinema, na emancipação da Identidade e do Socialismo.
Uma ode à independência da personalidade.
Um filme que se vê como se folheia um livro infantil.
Um filme que acarinha a Academia.

jef, abril 2016

«O Rolo Compressor e o Violino» (Katok I Skrypka) de Andrei Tarkovsky. 1960. Com Igor Fomchenko, V. Zamanski, Nina Arkanelskaya, Marina Adjoubei. URSS, 1960, Cores, 55 min.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

















Sobre o Grande Prémio de Conto «Camilo Castelo Branco» (C.M. Vila Nova de Famalicão / APE) atribuído a Mário de Carvalho por «A Liberdade de Pátio». Terça-feira, 25 de Novembro, 19h15. Biblioteca das Galveias, Lisboa.

Hoje, vá lá conhecer a razão, apeteceu-me escrever sobre os meus escritores, aqueles que passam a vida a ampliar o Mundo, mas também pagam ao fisco e fazem muitas contas. As de cabeça e as outras.

Hoje, prefiro pensar no prémio que darão no dia 25 de Novembro ao livro «A Liberdade de Pátio» de Mário de Carvalho. Sim, é sabido, a minha leitura é devota à escrita deste autor [uso aqui a palavra com o significado de «dedicada» e não de «consagrada», pois de sagrados está o Inferno (e o DCIAP) cheio.] E se, algum dia, eu fosse compelido a escrever uma tese qualquer escolheria por tema as quatro direcções que levam os contos curtos de Mário de Carvalho. Desde «Contos da Sétima Esfera» (1981), onde tais os azimutes surgem livres e desarrumados, até a «O Homem do Turbante Verde» (2011), onde o autor resolve distribuí-los com a parcimónia dos capítulos. 

A minha tarefa estaria bastante facilitada. Bastaria seguir o rumo dos recipientes. A saber:
(1) consciência do Mundo e da Política
(2) consciência do Belo e da Estética
(3) consciência da Liberdade narrativa e do Realismo
(4) consciência da Imaginação, da Fantasia e do Humor.

A realidade é que, mais tarde, em 2013, o pequeno conto que dá título ao livro «A Liberdade de Pátio» vem apresentar os quatro factores rigorosamente multiplicados (e.g.):

(a) o confinamento inexplicado a que a sociedade vota o professor e a sequente kafkiana liberdade pátio.
(b) o rigor estético e gráfico com que o velho guarda rabisca a carvão a escrita cantada dos melros.
(c) O círculo perfeito que o texto descreve seguindo as viagens do encarcerado, levando-nos a uma cadeia infinita de penas e prisões, sugerindo o ciclo infinito dos pesadelos recorrentes.
(d) O uso imaginário de masmorras (à Alexandre Dumas), alternando o lúgubre antro repleto de invertebrados parasitas à sugestão de lautas refeições oitocentistas, onde a hipócritas mesuras e falsas mordomias só a transferência de penitenciária é oferecida. Tudo lhe dão nada lhe dando...

Pelo que ficou escrito, hoje, prefiro reler «A Liberdade de Pátio». Um conto perfeito! [para uma tese por escrever].
E confesso ainda, neste espaço, nem público nem privado, que guardo por folhear alguns livros de Mário de Carvalho (e de outros dos meus escritores). Guardo-os como reserva moral para os dias de tempestade.

jef, Novembro 2014