Ciclo da Água
Serenas, as águas perdem-se sem que ninguém as oiça.
Felizes são os amores alheios.
Devotos, os monges recolhem-se na alienação.
Alegres, os amantes fantasiam.
A fêmea fabrica o ninho sem perceber porquê.
O cúmulo-nimbo provoca trovoadas magníficas.
O arquitecto deslumbra-se com a solução, semelhante a um
vitral visto numa igreja antiga.
Os vulcões activos aguardam. As placas geológicas por baixo
do oceano, idem.
O gato espreguiça-se obviamente. Obviamente, porco é morto.
A mãe, em repugnância, tenta tirar a última lêndea que o
filho apanhou na escola.
No vale, os animais vivem em sossego. A montaria é organizada
com entusiasmo.
O engenheiro olha para a esquadria certeira do nónio.
Absorto, o pintor faz recair toda a atenção sobre as tintas que está a escolher.
O escritor retira as palavras e não vê entrar a Primavera.
O advogado advoga. As vizinhas conversam.
Contra as expectativas, o filme esgota as salas onde é exibido.
O lagarto escolhe o lado quente da rocha.
O autocarro chega a horas e eu estou já na paragem.
Tranquilo, o cadáver despede-se das células e da alma,
aguarda os invertebrados.
O búteo dá um giro no céu sem qualquer propósito.
A Terra continua a rodar e a elipsar. Uns apanham sol, outros,
não.
A escultura parece estar a cair mas mantém-se ali há séculos.
A praia é um sinal abstracto e consentido de prazer.
As flores estão prontas a florir.
O frio é coisa dos termómetros.
Calmo o degelo.
A leitura é coisa dos anjos. A luz, as palavras, o olhar, os
centros nervosos, as sinapses, a compreensão total no laço da ideia. A alegria
para quem nunca pensou propriamente nela.
Será mesmo que o amor é coisa da imatéria?
Qual a matéria que a energia não transforma?
jef, abril 2016