quarta-feira, 31 de julho de 2019

Sobre a exposição «Blank» de Irma Blank. Culturgest, Lisboa. 29 Junho – 8 Setembro 2019. Curadoria de Johana Carrier e Joana P.R.Neves.

















O verbo principal. Talvez o vazio, o silêncio, o branco, o inexistente na vez dele. Como se Penélope costurasse a manta ao longo do tempo ouvindo em fundo uma máquina de escrever apenas com algumas consoantes. ‘Hdjt’ ou ‘Ljr’. Palavras que se tornam eternas na sua incompreensão e nos devolvem o fundamento inicial da linguagem e da literatura como a mais terna abstracção humana. O som que se ouve é temporalmente inconsequente. A leitura que a autora faz dos seus ‘poemas gráficos’ só ao presente diz respeito. Mas isso é mais tarde, em 2000. As palavras retidas pela superfície reflectora do metal. «Global Writings» (2000-2016).

Ou os riscos azuis da esferográfica que se adensam no centro circular. Tal linha de um novelo perdida em suave estrutura de poliéster. Infinito poema elegia epopeia. «Avant-testo» (1998-2006).

Ou os livros costurados à mão, papel pergaminho e tinta-da-china, doces, mansos. «Transcrizioni, Aussagen / testimonianze», 1976.

Até desaguarmos num mar azul de grandes telas verticais, enormes páginas com várias linhas como ondas que vão e vêm segundo a pacificação da leitura sonolenta de cada um dos leitores.

Irma Blank (nascida em 1934 na Alemanha) tem um trabalho minucioso e raro, quase de relojoaria, diria fino, feminino, exaustivo, de copista. São páginas múltiplas que, justapostas, presas por finos alfinetes, exploram toda a nossa atenção. Notas de rodapé, pé de página, bibliografia, chamadas de capítulo. Tudo começado em um ondular de letras trémulas «Eigenschriften» (1968) que se vão estilizando em linhas simples mas afirmativas e concretas «Gehen-Second Life» (2008). Meio século depois.

Irma Blank não responde. Apenas tenta a pergunta universal.
Irma Blank não pergunta. Apenas questiona por que terá o Esperanto falhado?
Irma Blank propõe olharmos no fundo de cada uma das nossas buscas, de cada palavra sem sentido, através da pausa da nossa visão que tenta dar sentido a essa palavra principal. Inicial.

Ou seja.
«Blank».
Só visto. Só sentido.

jef, julho 2019

terça-feira, 30 de julho de 2019

Sobre o filme «A Filha do Engano» de Luis Buñuel, 1951

















O filme é uma daquelas comédias dramáticas musicais que começa quando Don Quintin (Fernando Soler), esforçado caixeiro-viajante mas sem sucesso, amável marido e pai de família, descobre a esposa na cama com outro. Expulsa-a escadas a baixo e coloca a filhinha, que não é sua, à porta de uma família pobre que a adopta. Don Quintin torna-se num ressabiado e malévolo dono de um casino, bar, cabaret de nome «O Inferno» que gosta de tomar ‘café solo’ sem leite nem gente por perto, excepto se acompanhado pelos dois acólitos ‘meio-palhaços’ Angelito (Fernando Soto “Mantequilla”) e Jonrón (Nacho Contla). Afinal Marta (Alicia Caro) é mesmo sua filha, enamora-se pelo educado garagista Paco (Rubén Rojo) de quem espera um filho. É claro que tudo vai dar um maravilhoso trabalhão a reconciliar no final de apenas 80 minutos. Mas Buñuel fá-lo com extraordinário sentido cénico e princípio estético.

A bem notar:

a)     a cena inicial até que a lâmpada se apaga por falta de pagamento da electricidade, acompanhada pela extraordinária música de Manuel Esperón;
b)    a cena operática de repúdio da adúltera na escadas;
c)     a cena de antologia quando o pistoleiro, pistola em riste, exige que a roleta premeie o número escolhido («Ui! Ui!») e, mais tarde, já no gabinete de Don Quintin, a sair por trás do sofá sob restos de mobiliário;
d)    a estreia de Jovita (Lily Aclemar) no cabaret é maravilhosa;
e)     A entrada do clero no casino e nos bastidores, entre a fuga desesperada das dançarinas-coristas, só podia ter sido inventada por Buñuel.

Que bela tarde de cinema, a ver um dos filmes realizados (tão bem!) por Buñuel e que ele designava por ‘alimentícios’ pois tinha contas a pagar.

jef, julho 2019

«A Filha do Engano» (La Hija del Engaño) de Luis Buñuel. Com Fernando Soler, Alicia Caro, Rubén Rojo, Fernando Soto “Mantequilla”, Nacho Contla, Amparo Garrido, Lily Aclemar, Alvaro Matute, Roberto Meyer, Conchita Gentil Arcos. Argumento de Luis e Janet Alcoriza baseado na zarzuela ‘Don Quintin el Amargao’ de Carlos Arniches e José Estremera. Fotografia: José Ortiz Ramos; Música: Manuel Esperón. Produção: Oscar Dancigers / Ultramar Films. 1951, México, P/B, 80 min.

Sobre o filme «Nazarín» de Luis Buñuel, 1958











A meio da sua demanda pelo ascetismo, despojamento e caridade, o ostracizado padre Nazário (Francisco Rabal), sentado entre a suicida e meia-louca Beatriz (Marga López) e a prostituta e assassina Andara (Rita Macedo), suas devotas seguidoras, vai deixando passear um caracol na sua mão enquanto afirma que as ama de igual modo. Em claro modo casto mas que a sociedade e a igreja, atavicamente preconceituosas, não compreendem ou admitem.

Em muitos textos se refere que a peregrinação daquele homem entre mendigos, prostitutas, doentes, operários, prisioneiros ou sacerdotes, se aproxima da vida de Cristo ou do delírio de Dom Quixote. Acrescento que também poderá ser comparado a São Francisco.

Todas as questões levantadas neste filme são essenciais e colocam a dúvida sobre cada acto, a consciência em cada tomada de decisão: as perguntas da refugiada febril Andara são justas mas nós não escutamos as respostas; o ícone de Cristo na igreja ri com escárnio de Nazário; Andara coloca Santo António na fogueira mas salva o Menino Jesus; na aldeia pestilenta a moribunda rejeita o amor de Cristo e roga pelo amor do seu companheiro; o anão ama Andara mas comporta-se como traidor; na prisão, o ladrão afirma que tanto ele, do lado mau, como o padre Nazário, do lado bom, não chegarão a lado nenhum…

Não existe filme mais cristão e menos apostólico romano. Toda a dúvida está contida na mente humana, mesmo a de um crente, mesmo em Cristo que pergunta no final por que terá sido abandonado, por isso, aqui, Nazário-Cristo recusa mas por fim aceita a piedosa oferta de uma fruta enquanto ouve os tambores da morte e caminha exausto em direcção ao castigo.

Um filme que precisa ser visto muitas vezes para ser compreendido muitas vezes.

jef, julho 2019

«Nazarín» de Luis Buñuel. Com Francisco Rabal, Marga López, Rita Macedo, Ignacio López Tarso, Ofelia Guilmáin, Luis Aceves Castañeda, Noé Murayama, Rosenda Monteros, Jesús Fernández, Aurora Molina, Pilar Pellicer, Antonio Bravo, Edmundo Barbero, Raúl Dantés, Ada Carranco, David Reynoso. Argumento: Luis Buñuel, Julio Alejandro, Emilio Carballido, baseado no romance homónimo de Benito Pérez Galdós. Fotografia: Gabriel Figueroa; Música: Macedio Alcalá (tema ‘Dios nunca Muere’ (órgão)) e tambores de Calanda. Produção: Manuel Barbachano Ponte. 1958, México, P/B, 94 min.

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Sobre o filme «Uma Mulher Sem Amor» de Luis Buñuel, 1951















Rosario (Rosario Granados) é mãe extremosa de Carlitos e esposa devota do antiquário Carlos (Julio Villareal). Vive recatadamente sem o amar até se apaixonar por Julio (Tito Junco), engenheiro que traz de volta à casa paterna Carlitos quando este foge após ter sido acusado de ter roubado na escola. Rosario recusa-se a fugir com Julio quando o marido adoece… Assim principia o melodrama centrado na belíssima actriz Rosario Granados, filmado à pressa em 20 dias, remake, plano a plano, do filme francês «Pierre et Jean» de Andrè Cayatte (1943) segundo o conto de Guy de Maupassant, segundo Luis Buñuel.

Sobre o filme Luis Buñuel ainda diz: «É o pior de todos os meus filmes».

Todos dizem mal mas, agora, olhado quase 70 anos depois, apesar de se reconhecer que não contém um único dos símbolos buñuelianos: de animais, apenas umas trutas; de carne, sangue, desejos e cenas oníricas, ainda menos… repito, apesar de tudo, ainda poderemos torcer a coisa e ver nele uma história criticamente burguesa, sobre a submissão total feminina ao estatuto social do pai todo poderoso que, inclusive, ajuda a esconder o adultério para manter a família incólume ao preconceito alheio.

Na última cena, a viúva, perto da lareira, coloca a fotografia do amante e volta ao seu tricot… Uma imagem terrível que simboliza esses longínquos anos 50 do século passado. Rosario Granados lembrou-me Julianne Moore em «Longe do Paraíso» (Todd Haynes, 2002) e isso reconciliou-me com o dramalhão!

jef, julho 2019

«Uma Mulher Sem Amor» (Una Mujer Sin Amor) de Luis Buñuel. Com Rosario Granados, Julio Villareal, Joaquin Cordero, Xavier Loyá, Tito Junco, Jaime Calpe, Elda Peralta, Eva Calvo. Argumento: Jaime Salvador e Luis Buñuel, baseado no conto ‘Pierre et Jean’ de Guy de Maupassant. Fotografia: Raul Martinez Solares; Música: Raúl Lavista. Produtor: Internacional Cinematográfica / Sergio Kogan. 1951, México, P/B, 82 min.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Sobre o filme «Quem Tramou Roger Rabbit?» de Robert Zemeckis, 1988


































Sempre tive um afecto muito grande por este filme. De tempos a tempos, revejo-o e fico a pensar no que mais gosto nele.
Sou fã de Bob Hoskins (1942-2014), um daqueles actores muito sérios e convictos que fazem as melhores comédias nunca enjeitando a norma de que o melhor papel secundário faz o melhor filme e ofusca, por norma, o trabalho do actor principal. Tal como Gene Hackman. Neste caso, Bob Hoskins é o centro de uma comédia, digamos musical e ‘animada’, que sempre me recorda o deslumbramento infantil que senti quando vi «Mary Poppins» (Robert Stevenson, 1964).
Um papel extraordinariamente difícil, realizado contra cenários de papel e ausência, de um detective, Eddie Vailant, encalhado na Hollywood furiosa de 1947, entre o álcool e a memória de seu irmão, Teddy Vailant, detective também ele, morto às mãos de uma criatura de olhos vermelhos e voz aguda.
Eddie Vailant deve descobrir se a sensual Jessica Rabbit (Kathleen Turner, Betsy Brantley) está mesmo a trair o esposo apaixonado Roger Rabbit (Charles Fleischer) com o dono da Cidade dos Cartoons, Marvin Acme (Stubby Kaye). Contudo, logo depois, as mortes sucedem-se e o misterioso Juiz Doom (Christopher Lloyd), com as suas demoníacas doninhas, aproxima-se munido da verde e terrível poção de acetona para punir e diluir os desenhos criminosos…

Mas talvez o que mais me entusiasme é essa aparição de Jessica Rabbit a cantar «Why Don’t You Do Right» (com a impressionante voz de Amy Irving) perante a inveja devota ou o ciúme reverente da maravilhosa Betty Boop (Mae Questel)… ou então o duelo de pianos (com a Rapsódia Húngara #2 de Franz Liszt) entre o Pato Donald (Tony Anselmo) e o Daffy Duck (Mel Blanc)… ou a curta metragem inicial que opõe Roger Rabbit e o Baby Herman (Lou Hirsch)…

Não sei bem classificar essa centelha de emotiva reconciliação entre a latente agressividade dos bonecos da Warner e a aura delicodoce dos da Walt Disney. Gosto de entrar na Cidade dos Cartoons e pensar que aquela fantasia tola contém a realidade que me sustém durante os instantes em que a estou a ver e se prolonga, memória dentro, até nova exibição.

jef, julho 2019

«Quem Tramou Roger Rabbit?» (Who Framed Roger Rabbit) de Robert Zemeckis, 1988. Com Charles Fleischer (Roger Rabbit), Kathleen Turner, Betsy Brantley (Jessica Rabbit), Christopher Lloyd (Juiz Doom), Lou Hirsch (Baby Herman), Bob Hoskins (Eddie Valiant), Alan Tilvern (R.K. Maroon), Stubby Kaye (Marvin Acme), Richard LeParmentier (Lt. Santino), Tony Anselmo (Pato Donald), Mel Blanc (Daffy Duck), Mae Questel (Betty Boop). Produção: Robert Watts e Frank Marshall / Walt Disney Animation Studios, Touchstone Pictures, Amblin Entertainment, Silver Screen Partners. Música: Alan Silvestri. EUA, 1988, Cores, 100 min.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Sobre o filme «O Bruto» de Luis Buñuel, 1953

















O que poderia ser um filme político (e é) sobre a ganância do velho, rico e insensível, D. Andrés (Andrés Soler), proprietário de uma ‘vila’ onde vivem paupérrimas famílias de operários, e que ele deseja expulsar à viva força policial, ainda sobre a oposição colectiva dos moradores, liderada pelo operário Carmelo (Roberto Meyer), afinal transforma-se num melodrama pungente, carnal e sanguinário, sobre a paixão de Pedro ‘El Bruto’ (Pedro Armendáriz) – o algoz carniceiro contratado por D. Andrés para expulsar os moradores – por Meche (Rosita Arenas), filha de Carmelo que entretanto morreu à conta dos maltratos infringidos pelo próprio El Bruto. Pelo meio, está Paloma (Katy Jurado), a jovem e fogosa esposa do patrão e proprietário, apaixonada pela força viril de El Bruto, mas que, pela violência do ciúme, o denunciará à polícia.

Tudo, na realidade, poderia ser um mero melodrama de faca e alguidar, série B, terceira categoria, não fosse um filme de Luis Buñuel. Filmado no tempo recorde de 18 dias.
Não tivesse a magnífica luz fotográfica de Agustín Jiménez.
Não tivesse a simbologia carnal do mestre, quando Paloma, após coser um botão na camisa de El Bruto para que ele não mostrasse a desejada força, o morde no peito; e, depois, El Bruto pede para a infantil Meche lhe retire uma arma da omoplata espetada ali pelos seus perseguidores (como a um touro).
Não estivessem lá os eternos ícones dos animais. Escondido no quintal de Meche, El Bruto estrangula uma galinha para que o cacarejar não o denunciasse e, dias depois, ela descobre em casa uma caixa onde, bucolicamente, uma gorda galinha pastoreia meia dúzia de pintainhos. No acto final, um galo negro, sinal de morte, olha nos olhos de Paloma após esta ter consumado a denúncia e assistido à morte pela polícia do seu apaixonado.
Não contivesse esse furor humorístico concedido a D. Pepe (Paco Martinez), o acamado pai velho do velho D. Andrés, que ainda vai roubar rebuçados após a morte do seu filho.
Não nos levasse por uma agitada teia de palavras, imagens e cenários, que nos prende de imediato, não nos deixa respirar, lembrando a rapidez cénica de certas sequências dos filmes de Jean Renoir.

«O Bruto» é uma grande ópera, expressionista e romântica mas de que o próprio Luis Buñuel não gostava.

jef, julho 2019

«O Bruto» (El Bruto) de Luis Buñuel. Com Pedro Armendáriz, Katy Jurado, Rosita Arenas, Andrés Soler, Paco Martinez, Roberto Meyer, Glorita Mestre, Beatriz Ramos, Paz Villegas, José Muñoz, Diana Ochoa, Ignacio Villalbazo, Jaime Fernández. Argumento: Luis Buñuel, e Luis Alcoriza. Fotografia: Agustín Jiménez; Música: Raul Lavista. Produtor: Sergio Kogan. 1953, México, P/B, 81 min.


terça-feira, 23 de julho de 2019

Sobre o filme «As Aventuras de Robinson Crusoe» de Luis Buñuel, 1953


















O mais divertido deste filme, de sumptuosas cores e cenários minuciosos, é o facto de Luis Buñuel, não desvirtuando o romance de aventuras de Daniel Dafoë, conseguir colocar lá dentro todo o seu modo intuitivamente psicanalítico de fazer cinema. Robinson Crusoe (Dan O’Herlihy) é um homem que passa a maior parte dos 30 anos, 2 meses e 19 dias (o que é que isto me está agora a fazer lembrar…) sozinho – e nós com ele –, aprendendo a fazer tudo aquilo que não sabia (ou se recusava) a fazer. Para além, da caça e da recolecção, a maioria tarefas femininas. Desejando ouvir a voz humana (que o papagaio grita) mas que o fiel cão, o amoroso gato e todos os outros milhentos animais não reproduzem mas que ele acarinha. Afugentando os pesadelos recalcados de um pai que o castiga por imprudência e desobediência. Reouvindo-se no eco do vale com as palavras bíblicas gritadas a um Deus magnânimo mas castigador, numa das cenas mais fortes do filme. Estranhando o espantalho de vestes femininas que adejam ao vento como se o chamassem (ou o repudiassem). Percorrendo as praias de um 'México' luxuriante de sombrinha de sol, barretinho de pele e vestes únicas. Um quase palhaço, louco e benévolo.

Até que, já quase no final, chega um Sexta-feira (Jaime Fernández) airoso e belo, divertido, gentil e submisso, que uma vez até se veste com os velhos vestidos femininos e usa um colar de moedas de ouro. Sexta-feira é inteligente, deixa logo o canibalismo, está pronto a partilhar todas as tarefas com o seu amo e chega a fazer uma prelecção sobre a frágil omnipotência divina face às tentações do diabo. Como era de prever, Sexta-feira torna-se muito amigo de Robinson Crusoe e este nem se dispensa de o deixar fumar o seu cachimbo.

Por fim, chegada a hora de regressar a Inglaterra, Robinson Crusoe pergunta a Sexta-feira se, verificando que os costumes sangrentos da Europa não são moralmente diversos dos da sua tribo canibal, ainda deseja partir com ele. E lá seguem os dois de viagem…

Buñuel é o cineasta que melhor traduz a diversão explícita, o humor implícito e a sexualidade latente, através da sugestão, da parábola e da metáfora.

jef, julho 2019

«As Aventuras de Robinson Crusoe» (The Adventures of Robinson Crusoe) de Luis Buñuel. Com Dan O’Herlihy, Jaime Fernández, Felipe de Alba, José Chávez, Emilio Garibay, Chel López. Argumento de Hugo Butler (Philip Roll) e Luis Buñuel sobre a obra de Daniel Dafoë, Fotografia: Alex Phillips (eastmancolor), Música: Anthony Collins e Luis Hernández Bretón, Décors: Edward Fitzgerald e Pablo Gálvan.1953, México / EUA, Cores, 89 min.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Sobre o filme «Ele» de Luis Buñuel, 1953

















No fim da missa, Quinta-feira Santa, o padre lava, limpa e beija demoradamente os pés a vários rapazes. A cena é lenta e o acto parece impregnado de humildade litúrgica. Depois a câmara roda e toca os pés, quase envergonhados, de uma bela e jovem devota. Então, a perspectiva altera-se e tudo, afinal, está a ser visto pelo olhar libidinoso de Francisco Gálvan (Arturo de Córdova), acólito da igreja, homem rico e respeitado, solitário, 45 anos. Os pés são os de Gloria (Delia Garcés), vinte anos mais nova mas noiva de Raul. Porém, Francisco está loucamente apaixonado, pela primeira vez na vida, e está habituado a conseguir tudo. O casamento é realizado mas na noite de núpcias Glória percebe quem é Francisco e a paranóia a que os ciúmes o podem levar.

Poder-se-ia dizer que estamos perante as intrigas de Alfred Hitchcock («A Casa Encantada» 1945, «Difamação» 1946, «A Mulher que Viveu duas Vezes» 1958, «Psico» 1960) tendo em conta a rapidez da trama envolvendo a insegurança das vítimas e o poder dos algozes sobre elas, o suspense, a ansiedade, o medo. Mesmo a música de Luis Hernández Breton com muito de Bernard Herrmann, mesmo os cenários sumptuosos, as escadarias tortuosas, as sombras inquietantes… Mas o filme é de Luis Buñuel, o mestre que não resiste em colocar nuvens obscuras de poeira a sair de quartos de arrumos; agulhas que atravessam buracos de fechadura; sinos fálicos que obrigam a confissões e ao desespero da queda; cordas e linhas que são preparadas sadicamente para sodomizar a vítima; pancadas obsessivas no corrimão da escada; um criado que se insinua muito mais do que um criado apenas…

Buñuel também não teme em seguir, mais uma vez, a sua intuição, explicando pela fantasia inconclusiva a realidade que quantas vezes não assenta numa solução lógica.

Uma obra-prima que termina, ziguezagueando, condensando num só todos os possíveis finais.

jef, julho 2019

«Ele» (Él) de Luis Buñuel. Com Arturo de Córdova, Delia Garcés, Luis Beristáin, Aurore Walker, Manuel Dondé, Carlos Martinez Baena, Fernando Casanova, Rafael Banquells. 1953, México, P/B, 92 min. Argumento: Luis Buñuel, e Luis Alcoriza sobre a novela de Mercedes Pinto. Fotografia: Gabriel Figueiroa; Música: Luis Hernández Breton.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Sobre o livro «O Que Eu Ouvi na Barrica das Maçãs» de Mário de Carvalho, Porto Editora, 2019














Este livro de Mário de Carvalho está, para mim, leitor que gosta de agrupar temas, entre dois dos livros do autor que os meus coração e atenção guardam entre os relidos: «Quem Disser o Contrário É Porque Tem Razão» (2014) e «A Liberdade de Pátio» (2013). E não será por acaso. O terceiro capítulo «Oficiando» completa e sublinha, entre a paródia séria e advertência literária, muito do que o livro de 2014 já tinha feito pela leitura, que se deseja cada vez mais atenta, e a escrita, cada vez mais concisa e consciente. Os restantes três, sobre uma possível ficção, uma provável intervenção, uma inevitável e justíssima memória, fazem-me lembrar os textos curtos, quase fábulas, com homens, bichos, palavras e aventura, que integram o melhor da literatura ‘curta’ portuguesa.

Chamaria a estes últimos ‘contos’, retirar-lhes-ia a data e a vocação efémera de ‘actualidade’ que o jornalismo impõe a estes textos de perspectiva multi-semanal. Afastaria ainda a índole pessoal que a persona do escritor deve impor enquanto cronista, ajustaria o ‘abstracto temporal’ da publicação em livro e atirar-me-ia à leitura sem olhar para o relógio. Assim fiz.

Pois estes textos induzem à pausa para reflectir porque nos reflectem, à busca em dicionários para buscar significados, aos mais rápidos priberans e googles na pesquisa de referências e origens. Porque nos colocam no centro das questões primeiras: por que ler? Por que escrever? Por que estar por aqui e a esta hora?

Se não parecesse a alguém ofensivo, gostaria de dizer que Mário de Carvalho tem, nestes textos, alguma coisa de bobo, dos verdadeiros, belos caricaturistas, dos que dizem, através de uma graça inteligente e amável, a crítica que o rei nem sequer imaginou aceitar, ou de padre, dos melhores, dos que aparecem em «Roma, Cidade Aberta» de Rossellini, que apontam, ajudam acerrimamente a ponderar, mas não julgam.

Pena é que o prefaciador, entre desculpas temporais e reverências solícitas, não tenha conseguido enaltecer a irreverente pulsão juvenil do autor e a futura carga de responsabilidade política e moral a que estes ‘contos’ obrigam agora a nossa leitura.

jef, julho 2019

sábado, 13 de julho de 2019

Sobre o livro «Cinco Meninos, Cinco Ratos» de Gonçalo M. Tavares. Bertrand, 2018. (Caderno 40 – ‘Mitologias’)
















O grupo de livros reunidos em ‘Mitologias’, que inclui «A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado» (2017) e este, representa a estrutura ideológica, simbólica e narrativa, do universo contemporâneo de Gonçalo M. Tavares. A total liberdade concedida ao leitor para juntar, interpretar e construir um mundo feito em peças de um jogo que se inicia muito lá atrás, no universo literário popular (e oral) do imaginário de lobos esfaimados, homens violentos e crianças à deriva.

Aqui, a fábula começa com uma voraz e enorme avestruz, deriva por lobos e termina em ratos mortos a tiro. Existe uma tal velocidade que enlouquece por se concentrar num comboio que poderá transportar o povo inteiro ou aqueles que inutilmente são marcados pois possuem a cabeça bem perto do chão. Notam-se bem. Existe uma igreja com área de apenas 2,59 metros quadrados e um padre que é lento se visto de frente e rápido, como um nómada, se olhado pela nuca. Existem quatro irmãozinhos que perderam uma quinta menina, ainda bebé. Ou será esta última que perdeu antes os quatro irmãos. Quem andará mais perdido? Questão colocada de modo especial já em «Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai» (2014).

A cada página, o livro questiona o leitor, refazendo o silogismo, reparando a lógica, desestabilizando o princípio do paralelismo das linhas do caminho-de-ferro mas juntando-as mais à frente num sistema cartesiano xx’ / yy’. Um jogo de cabra-cega contra o da batalha naval. Ainda o jogo das cadeiras: quem ficará de fora? Quem terá os olhos vendados? Um sistema semelhante foi usado no final de «Uma Viagem à Índia» (2010) para redistribuir a leitura das palavras-chave pelas 10 tabelas-cantos.

Através destes personagens e situações, mais ilógicas que loucas, poderemos encontrar todos os temas da obra de Gonçalo M. Tavares, ficando a liberdade de os interpretar à nossa maneira:

Holocausto. Doença Mental. Doença Física. Humilhação. Poder. Técnica Controlo. Protecção. Matemática. Jogo. Medo. Confiança. Crescimento. Morte… 

Façamos nós, leitores, a nossa própria história, pois ela está lá toda e conta connosco. Conta com a nossa diversão e a nossa consciência.

jef, julho 2019