O grupo
de livros reunidos em ‘Mitologias’, que inclui «A Mulher-Sem-Cabeça e o
Homem-do-Mau-Olhado» (2017) e este, representa a estrutura ideológica, simbólica e
narrativa, do universo contemporâneo de Gonçalo M. Tavares. A total liberdade
concedida ao leitor para juntar, interpretar e construir um mundo feito em
peças de um jogo que se inicia muito lá atrás, no universo literário popular (e oral) do imaginário de lobos esfaimados, homens violentos e crianças à deriva.
Aqui, a
fábula começa com uma voraz e enorme avestruz, deriva por lobos e termina
em ratos mortos a tiro. Existe uma tal velocidade que enlouquece por se
concentrar num comboio que poderá transportar o povo inteiro ou aqueles que inutilmente
são marcados pois possuem a cabeça bem perto do chão. Notam-se bem. Existe uma
igreja com área de apenas 2,59 metros quadrados e um padre que é lento se visto
de frente e rápido, como um nómada, se olhado pela nuca. Existem quatro irmãozinhos
que perderam uma quinta menina, ainda bebé. Ou será esta última que perdeu antes os
quatro irmãos. Quem andará mais perdido? Questão colocada de modo especial já
em «Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai» (2014).
A cada
página, o livro questiona o leitor, refazendo o silogismo, reparando a lógica,
desestabilizando o princípio do paralelismo das linhas do caminho-de-ferro mas
juntando-as mais à frente num sistema cartesiano xx’ / yy’. Um jogo de
cabra-cega contra o da batalha naval. Ainda o jogo das cadeiras: quem ficará de fora? Quem terá os olhos vendados? Um sistema semelhante foi usado no final de «Uma
Viagem à Índia» (2010) para redistribuir a leitura das palavras-chave pelas 10
tabelas-cantos.
Através
destes personagens e situações, mais ilógicas que loucas, poderemos encontrar
todos os temas da obra de Gonçalo M. Tavares, ficando a liberdade de os
interpretar à nossa maneira:
Holocausto.
Doença Mental. Doença Física. Humilhação. Poder. Técnica Controlo. Protecção. Matemática.
Jogo. Medo. Confiança. Crescimento. Morte…
Façamos nós, leitores, a nossa
própria história, pois ela está lá toda e conta connosco. Conta com a nossa diversão e a nossa consciência.
jef,
julho 2019
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