No fim da missa,
Quinta-feira Santa, o padre lava, limpa e beija demoradamente os pés a vários
rapazes. A cena é lenta e o acto parece impregnado de humildade litúrgica.
Depois a câmara roda e toca os pés, quase envergonhados, de uma bela e jovem
devota. Então, a perspectiva altera-se e tudo, afinal, está a ser visto pelo
olhar libidinoso de Francisco Gálvan (Arturo de Córdova), acólito da igreja, homem
rico e respeitado, solitário, 45 anos. Os pés são os de Gloria (Delia Garcés),
vinte anos mais nova mas noiva de Raul. Porém, Francisco está loucamente
apaixonado, pela primeira vez na vida, e está habituado a conseguir tudo. O
casamento é realizado mas na noite de núpcias Glória percebe quem é Francisco e
a paranóia a que os ciúmes o podem levar.
Poder-se-ia dizer que estamos
perante as intrigas de Alfred Hitchcock («A Casa Encantada» 1945, «Difamação»
1946, «A Mulher que Viveu duas Vezes» 1958, «Psico» 1960) tendo em conta a
rapidez da trama envolvendo a insegurança das vítimas e o poder dos algozes
sobre elas, o suspense, a ansiedade, o medo. Mesmo a música de Luis Hernández
Breton com muito de Bernard Herrmann, mesmo os cenários sumptuosos, as
escadarias tortuosas, as sombras inquietantes… Mas o filme é de Luis Buñuel, o
mestre que não resiste em colocar nuvens obscuras de poeira a sair de quartos de
arrumos; agulhas que atravessam buracos de fechadura; sinos fálicos que obrigam
a confissões e ao desespero da queda; cordas e linhas que são preparadas sadicamente para
sodomizar a vítima; pancadas obsessivas no corrimão da escada; um criado que se
insinua muito mais do que um criado apenas…
Buñuel também não teme em
seguir, mais uma vez, a sua intuição, explicando pela fantasia inconclusiva a realidade que quantas vezes não assenta numa solução lógica.
Uma obra-prima que termina, ziguezagueando,
condensando num só todos os possíveis finais.
jef,
julho 2019
«Ele» (Él) de Luis Buñuel. Com Arturo de
Córdova, Delia Garcés, Luis Beristáin, Aurore Walker, Manuel Dondé, Carlos
Martinez Baena, Fernando Casanova, Rafael Banquells. 1953, México, P/B, 92 min.
Argumento: Luis Buñuel, e Luis Alcoriza sobre a novela de Mercedes Pinto.
Fotografia: Gabriel Figueiroa; Música: Luis Hernández Breton.
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