sexta-feira, 19 de julho de 2019

Sobre o filme «Ele» de Luis Buñuel, 1953

















No fim da missa, Quinta-feira Santa, o padre lava, limpa e beija demoradamente os pés a vários rapazes. A cena é lenta e o acto parece impregnado de humildade litúrgica. Depois a câmara roda e toca os pés, quase envergonhados, de uma bela e jovem devota. Então, a perspectiva altera-se e tudo, afinal, está a ser visto pelo olhar libidinoso de Francisco Gálvan (Arturo de Córdova), acólito da igreja, homem rico e respeitado, solitário, 45 anos. Os pés são os de Gloria (Delia Garcés), vinte anos mais nova mas noiva de Raul. Porém, Francisco está loucamente apaixonado, pela primeira vez na vida, e está habituado a conseguir tudo. O casamento é realizado mas na noite de núpcias Glória percebe quem é Francisco e a paranóia a que os ciúmes o podem levar.

Poder-se-ia dizer que estamos perante as intrigas de Alfred Hitchcock («A Casa Encantada» 1945, «Difamação» 1946, «A Mulher que Viveu duas Vezes» 1958, «Psico» 1960) tendo em conta a rapidez da trama envolvendo a insegurança das vítimas e o poder dos algozes sobre elas, o suspense, a ansiedade, o medo. Mesmo a música de Luis Hernández Breton com muito de Bernard Herrmann, mesmo os cenários sumptuosos, as escadarias tortuosas, as sombras inquietantes… Mas o filme é de Luis Buñuel, o mestre que não resiste em colocar nuvens obscuras de poeira a sair de quartos de arrumos; agulhas que atravessam buracos de fechadura; sinos fálicos que obrigam a confissões e ao desespero da queda; cordas e linhas que são preparadas sadicamente para sodomizar a vítima; pancadas obsessivas no corrimão da escada; um criado que se insinua muito mais do que um criado apenas…

Buñuel também não teme em seguir, mais uma vez, a sua intuição, explicando pela fantasia inconclusiva a realidade que quantas vezes não assenta numa solução lógica.

Uma obra-prima que termina, ziguezagueando, condensando num só todos os possíveis finais.

jef, julho 2019

«Ele» (Él) de Luis Buñuel. Com Arturo de Córdova, Delia Garcés, Luis Beristáin, Aurore Walker, Manuel Dondé, Carlos Martinez Baena, Fernando Casanova, Rafael Banquells. 1953, México, P/B, 92 min. Argumento: Luis Buñuel, e Luis Alcoriza sobre a novela de Mercedes Pinto. Fotografia: Gabriel Figueiroa; Música: Luis Hernández Breton.

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