segunda-feira, 26 de julho de 2021

Sobre o disco «Peace or Love» dos Kings of Convenience, EMI 2021























Já em «Quiet Is The New Loud» (Source, 2001), os dois noruegueses Erlend Øye e Eirik Glambek faziam canções para não se ouvirem. Uma espécie de difícil suave-tourch-folk-songs-bossa-nova-simon-and-garfunkel-sufjan-stevens. Canções que até podiam não ter sido escritas. Ou melhor, que já foram escritas um milhão de vezes.

Mas a verdade é que a arte, em especial a arte popular, podia, toda ela, nem sequer existir. A Terra continuaria a rodar elipsando em torno do Sol. Contudo, ela é inevitável, mesmo imprescindível para que os humanos se mantenham vivos e vagamente alegres sobre o planeta.

E na verdade é que, vinte anos depois, os Kings of Convenience têm a falta de vergonha de voltar a gravar mais onze curtas e belas e inaudíveis canções, praticamente apenas acompanhadas à guitarra e cantadas nesse cativante harmónico-uníssono-vocal tal é a conjugação das tessituras de Erlend Øye e Eirik Glambek.

São todas essas voláteis características que fazem com que estes discos rodem permanentemente na minha aparelhagem.

Mas confesso que o que me fez ir a correr comprar o disco foi quando descobri que uma das minhas cantoras fazia por ali coro em duas canções: «Love Is A Lonely Thing» e «Catholic Country». A minha querida Leslie Feist!

 

jef, julho 2021

sábado, 24 de julho de 2021

Sobre o livro «A Mulher de Trinta Anos» de Honoré de Balzac, Colecção Horas de Leitura XIV. Guimarães Editores, 1960. Tradução de Jorge Reis.



 












«Entre esses dois corações há só um juiz possível. Esse juiz é Deus!

Deus que, muitas vezes, assesta a sua vingança no seio das famílias, e se serve eternamente dos filhos contra as mães, dos pais contra os filhos, dos povos contra os reis, dos príncipes contra as nações, de tudo contra tudo; substituindo no mundo moral os sentimentos pelos sentimentos, como as folhas novas na Primavera repelem as folhas velhas, agindo em vista de uma ordem imutável, de um fim que só ele conhece. Tudo vai para o seio de Deus, ou, melhor ainda, tudo para aí volta.»

 

Esta não será a visão de Deus escrita sem rodeios por Balzac. Esta é a sua visão política e social de um mundo que viu surgir a Revolução Francesa para se transformar, em pouco tempo, num império que impunha todas as novas velhas normas sociais.

Uma espécie de alegoria brilhante que se inicia em 1813, com a parada nas Tulherias das tropas de Napoleão, que seguirão para as fatídicas batalhas no centro da Europa, onde a jovem e coquete Júlia recusa as palavras do pai que a avisam do carácter pouco digno do garboso coronel Vítor d’Aiglemont, e que a tornará numa vigilante, seráfica, sedutora e reservada marquesa, mãe de cinco filhos. Júlia, mais tarde quase amante do Lorde Artur Grenville, quase amante de Carlos Vandenesse, quase mãe de Helena, esta que deverá partir oceano fora, escorraçada pela ausência do amor maternal.

Uma espécie de fábula sobre o desenvolvimento da beleza e da consciência feminina no interior de uma sociedade que a manieta e lhe rejeita a liberdade, a autonomia e o protagonismo. Uma grande novela que termina em 1844, quando a própria filha Moina, condessa de Saint-Hércen, recusa, por sua vez, ouvir as palavras de uma mulher de cinquenta anos, sobre a reputada leviandade do seu amante, Alfredo de Vandenesse.

O ciclo recomeça.

Balzac deseja, certamente, provocar a sociedade. Não é nada doce com a postura desgastada e pouco nobre de aristocratas, militares, políticos, ou notários. Não tem contemplação com os saltos narrativos que, quantas vezes deixam o leitor surpreso e incrédulo. Salta de episódio para episódio com o intuito de chegar a uma premissa, escondendo-a entre a folhagem da novela e da descrição, escondendo-se ele próprio, o narrador, entre as árvores da encosta para narrar a tragédia. Esconde por pudor e consideração as lágrimas da heroína anti-heroína, Júlia d’Aiglemont.

É essa a premissa política, a provocação literária e o triunfo de uma obra sobre a insubstituível condição feminina.

 

jef, julho 2021

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Sobre o filme «A Voz Humana» de Pedro Almodóvar, 2020
















Trinta minutos é pouco.

Claro que é impossível esquecer Anna Magnani filmada por Rossellini (L'Amore / La Voce Umana) nessa extraordinária recriação da peça de Jean Cocteau. Mas Tilda Swinton e Pedro Almodóvar não pretendem que alguém esqueça ou compare. Desejam um modo diverso de fazer teatro.

Tilda Swinton é, pelo seu lado, única a mover-se sem ruído pelo cenário construído à medida dos decores, do guarda-roupa, da luz, cores e definição estética da narrativa de Almodóvar. Cada espaço é uma cena e cada cena é construída entre muros, dentro do paralelepípedo do estúdio cinematográfico. Vazio. Como vazia é a espera pela chegada do amor ansiado mas definitivamente desaparecido.

Um truque de intimidade sem peias da criatividade de Pedro Almodóvar, a lembrar a técnica cénica e teatral de Federico Fellini em «O Navio» (1983). Tudo parece estar certo, límpido. Angustiante. Sem saída. Apesar do cão, do machado, do fogo. Da fuga e do luto finais.

Mas tudo surge ligeiramente apressado…

O que me parece é que o espectador, Jean Cocteau e Tilda Swinton mereciam mais tempo para levar a dor do abandono até à superfície iluminada da redenção.

Ou, então, era eu que precisava de mais tempo de cinema!


jef, julho 2021

«A Voz Humana» (The Human Voice) de Pedro Almodóvar. Curta-metragem. Com Tilda Swinton e o cão Dasch. Argumento: Pedro Almodóvar baseado na peça de teatro de Jean Cocteau. Produção: Agustín Almodóvar e Esther García. Fotografia: José Luis Alcaine. Música: Alberto Iglesias. Espanha, 2020, Cores, 30 min.

sábado, 17 de julho de 2021

Sobre o filme «O Amor às 3 da Tarde» de Éric Rohmer, 1972























Quando “lemos” os filmes de Éric Rohmer ficamos sem saber muito bem se devemos sorrir da tragédia comum do dia-a-dia, se angustiar com a comédia de um dia-a-dia que nos leva a um lugar não muito seguro.

Este filme é exemplo disso.

Ficamos ainda sem saber se é literatura o que ouvimos através dos pensamentos de Frédéric (Bernard Verley), homem de negócios bem instalado na vida, mulher e filho encantadores, que se satisfaz em morar nos arrabaldes de Paris, pois a concedida viagem de comboio de St. Cloud à Gare St. Lazare dá-lhe a oportunidade de ler um bom livro com a concentração que os jornais não lhe trazem.

Duvidamos se não estamos a assistir a uma peça de teatro dado o tamanho rigor na marcação das cenas, das entradas e saídas das personagens, do abrir e fechar constante de portas, dos sorrisos velados mas ostensivos quando surge no escritório de Frédéric uma amiga vinda de um passado que talvez ele deseje esquecer, Chloé (Zouzou), libertária e libertadora, sem amarras ou futuros sociais e familiares, procurando emprego, afecto amoroso e um pai para um filho que deve ter olhos azuis tal como os de Frédéric.

Ficamos sem saber, afinal, se a verdadeira personagem do filme não é aquela multidão de figurantes citadinos parisienses onde Frédéric gosta de mergulhar e surfar libertando-se das grilhetas da vida que escolheu, sedentária, segura, confortável, amigável, amorosa, mas universalmente entediante.

Um filme que nos prova com extremo humor, fria sabedoria e delicada estética o erro sistemático das nossas opções.

 

jef, julho 2021

«O Amor às 3 da Tarde» (L’amour, l’après-midi) de Éric Rohmer. Com Bernard Verley, Zouzou, Françoise Verley, Daniel Ceccaldi, Malvina Penne, Babette Ferrier, Françoise Fabian. Argumento: Éric Rohmer segundo romance «Contos Morais» do próprio. Produção: Pierre Cottrell, Barbet Schroeder. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Arié Dzierlatka. Guarda-roupa: Daniel Hechter-Vog. França, 1972, Cores, 93 min.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Sobre o filme «Outono Escaldante» de Valerio Zurlini, 1972.

 




















Não. Este filme não nos conta os amores impossíveis de Marcello em «La Dolce Vita» de Fellini (1960), nem a bela e improvável amizade entre Lorenzo e Aida de «A Rapariga da Mala» de Zurlini, realizado onze antes.

Não é a preto e branco, nem traz essa particular beleza deslumbrante que envolve o espectador adoçando a trágica perspectiva da vida e do amor. Apenas o aviso no verso de Goethe, como título: «La prima notte di quiete», a primeira noite de serenidade, a primeira noite de calma que a morte nos concederá. (Uma poesia única cilindrada pelo título português!)

Daniele Dominici (Alain Delon), professor substituto de literatura encanta-se pelo enigmático rosto de uma aluna, Vanina (Sonia Petrova). O seu casamento com Monica (Lea Massari) chega ao fim, o grupo de amigos vive noite fora, entre o álcool e o jogo de cartas a dinheiro. Há muito, a nobreza da família ruíra. O seu amor adolescente suicidara-se. Ele veste um eterno sobretudo pêlo-de-camelo. A povoação costeira de Rimini está envolta numa triste neblina, sempre cinzenta e doentia. A música de Mario Nascimbene e a fotografia de Dario Di Palma não deixam margem para dúvidas. Impedem o espectador de respirar fundo.

A beleza circunspecta e decadente, irónica e fatal de Alain Delon conclui o seu próprio epitáfio: «La prima notte di quiete». 

Um belíssimo eoperárico hino a inconclusão humana.


jef, julho 2021

«Outono Escaldante» (La Prima Notte di Quiete) de Valerio Zurlini. Director’s Cut. Com Alain Delon, Giancarlo Giannini, Sonia Petrovna, Renato Salvatori, Alida Valli, Adalberto Maria Merli, Nicoletta Rizzi, Salvo Randone, Lea Massari. Argumento: Enrico Medioli, Valerio Zurlini. Fotografia: Dario Di Palma. Música: Mario Nascimbene. Itália / França, 1972, Cores 132 min.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Sobre a peça «A Circularidade do Quadrado» de Dimítris Dimitriádis. Teatro da Polítécnica, Lisboa.




















Um facto é que andamos aos círculos em torno do Sol, percorrendo um recorrente ciclo de repetições como sempre fazem os dias que se sucedem às noites. Mas na realidade, a Terra não descreve circunferências mas elipses, e cada dia traz uma nova imperfeição, um novo erro, um novo desejo, uma nova correcção quantas vezes gorada.

Este é um texto premonitório de um futuro que se extingue na tentativa de voltar e chegar à verdade mais funda (ou mais banal) da vida, ao desejo de plenitude, à concretização do amor. Esse obscuro objecto do desejo, como diria Luis Buñuel.

São nove personagens à procura do seu corpo junto do corpo do outro. Por vezes homem, por vezes mulher. Uma espécie de partilha por partilhar, partilha negada pela inerente obsessão pela exclusividade do amor final. Amor fatal. Silêncios que prevalecem. Desejos que se negam. A utópica e abstracta ambição universal de felicidade.

Talvez no dia seguinte as coisas se repitam, as coisas se resolvam. Ou talvez não…

Vá, Andemos!


«A Circularidade do Quadrado» de Dimítris Dimitriádis Tradução José António Costa Ideias Com Hugo Tourita, Antónia Terrinha, Inês Pereira, Pedro Caeiro, Nuno Pardal, Simon Frankel, Bruno Vicente, Nuno Gonçalo Rodrigues e Vânia Rodrigues Cenografia e Figurinos Rita Lopes Alves Luz Pedro Domingos Encenação Jorge Silva Melo.

No Teatro da Politécnica de 23 de Junho a 17 de Julho (3ª a Sáb. às 19h00).

No CCB – Centro Cultural de Belém de 17 a 20 Junho de 2021.

 

terça-feira, 13 de julho de 2021

Sobre o filme «A Rapariga da Mala» de Valerio Zurlini, 1961

 









































Na sequência penúltima de cenas, sabemos que a história vai chegar ao fim. Estão ambos sentados na praia, Aida (Claudia Cardinale) lavou com o lenço a ferida de Lorenzo (Jacques Perrin), ela dá-lhe o primeiro beijo nos lábios como a encerrar uma longuíssima história de amizade, cumplicidade, compreensão, necessidade, interajuda. Uma história de amor maior. Depois dá-lhe um outro na face e assegura-nos que, afinal, a amizade é um ser muito mais complexo do que o amor. Ele tem 16 anos e está apaixonado, sem saber bem o que é isso, ela é cantora de baixo cabaré, é perseguida pela sua beleza, pela sua personalidade, pela sua intransigência moral, e escorraçada talvez pelos mesmos motivos. Não há volta a dar, o universo do amor está encerrado numa caixa de peias sociais e teias familiares. Sabemos que, no final, o comboio os afastará para sempre. Sabemos ainda que, caso não fosse um filme, jamais se esqueceriam um do outro.

Não existem no cinema dois beijos mais castos. Não haverá história mais terna de compreensão e ligação entre dois seres fadados para se separarem (ou para serem separados). Não há fotografia a preto e branco mais densa e certeira, de contornos mais nítidos sobre os olhares calados, trocados entre Aida e Lorenzo.

É impossível não nos apaixonarmos por Claudia Cardinale e Jacques Perrin, actores maiores.


jef, julho 2021

«A Rapariga da Mala» (La Ragazza con la Valigia) de Valerio Zurlini, Com Claudia Cardinale, Jacques Perrin, Luciana Angiolillo, Renato Baldini, Riccardo Garrone, Corrado Pani, Gian Maria Volontè, Romolo Valli, Elsa Albani. Argumento: Leo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Giuseppe Patroni Griffi, Valerio Zurlini. Fotografia: Tino Santoni. Música: Mario Nascimbene. Produção: Maurizio Lodi-Fè. Itália/ França, 1961, P/B, 120 min.

Sobre o filme «First Cow – A Primeira Vaca da América» de Kelly Reichardt, 2019























Kelly Reichardt é uma realizadora que cria objectos únicos, muito difíceis de esquecer. Oferece-nos uma espécie de imagem impressionista de uma América encantada-desencantada, bela, omnipresente, onde as personagens se movem entre a solidão e o aconchego, entre o olhar e a paisagem. No silêncio. Filmes que, todos eles, podiam ser mudos tal é a expressão emocional pela qual nos conta histórias incomuns de personagens muito comuns.

Quando vi «Wendy and Lucy» (2008) lembrei-me de «Sem Eira nem Beira» de Agnès Varda (1985). Logo que vi este, agora, recordei «Homem Morto» de Jim Jarmusch (1995).

Nunca mais deixei de associar Kelly Reichardt à brutal mas serena humanidade desses dois realizadores magnânimos.

«First Cow» tem uma epígrafe muito simples que resume poeticamente o filme inteiro. William Blake diz: «O pássaro constrói o ninho, a aranha a teia, o homem a amizade».

Cookie (John Magaro) é um cozinheiro sensível e atento que tem uma queda especial para os doces. King-Lu (Orion Lee) tem uma grande capacidade sonhadora para o negócio. Devem protecção recíproca por via da sobrevivência mas, acima de tudo, por simples amizade. Perdidos na fronteira do Oregon, vislumbram a chegada da primeira vaca com o primeiro leite, trazida para adoçar o chá do chefe de posto avançado fronteiriço (Toby Jones). E o negócio floresce.

O filme vem na sequência de outros belos filmes da realizadora «O Atalho» (2010) ou de «Certas Mulheres» (2016) mas traz este o ambiente afectuoso, simultaneamente triste e terno, dos tempos de crise no inóspito mundo dos bandeirantes americanos.

Um filme que se deve assistir com o tempo e com a pausa. Como se estivéssemos numa galeria silenciosa a admirar um quadro único.

 

jef, julho 2021

«First Cow – A Primeira Vaca da América» de Kelly Reichardt. Com Alia Shawkat, John Magaro, Orion Lee, Toby Jones, Gary Farmer, Scott Shepherd, James Lee Jones, Evie. Argumento: Kelly Reichardt e Jonathan Raymond, segundo o romance deste «The Half-Life». Fotografia: Christopher Blauvelt. Música: William Tyler. Produção: Neil Kopp. EUA, 2019, Cores, 122 min.

 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Sobre o livro «A Última Receita» de Torgny Lindgren, Cavalo de Ferro, 2008. Tradução de Mário Semião.



 













«Um jornal é um fenómeno espiritual. Todas as coisas espirituais são individuais e dinâmicas, são organismos vivos, são consciência e simultaneamente objectos da consciência. A essência do espírito consiste em ter-se a si mesmo como objecto. O espírito existe, segundo Kierkegaard, como um sonho dentro do Homem. Ter a responsabilidade por um jornal é ser responsável pelo espiritual, pelo profundamente humano.»

 

Suécia. Aldeia de Avabäck. Uma segunda-feira no início do Inverno de 1942. Alguém escreve uma história longa fantástica para um jornal cujo director acaba de lhe enviar uma carta a despedi-lo, alegando que o jornalista inventa a realidade.

Ele tenta escrever ao director explicando a veracidade da escrita e gostaria de ter citado Goethe: «Então as crianças e os adultos costumam transformar o nobre e o sublime em diversão, até mesmo em bufonaria – e de outro modo poderiam suportá-lo e tolerá-lo?»

A tuberculose avança e ele escreve sobre a história única da procura desenfreada pela melhor receita familiar de pölsa, uma iguaria tradicional feita de um guisado suculento e invernio de diversas carnes. Receita que se guarda no seio de cada família. A demanda meticulosa, quase científica, pela melhor das pölsas é encetada pela estratégica amizade entre um germânico vendedor de tintas, de origem suspeita, e um professor primário, de fino paladar.

«Com a pölsa tudo é possível. Está para lá da sociedade organizada e civilizada.»

E eles encontram-na.

E ele continua a escrever no lar onde está refugiado. E a autarquia diz que não pode gastar mais dinheiro com ele, que ele rejuvenesce escrevendo. Nem mais um papel. Mas ele contém todo o mapa da Suécia na cabeça. Também sabe como ninguém onde se encontra o filão de ouro dentro da ignota montanha Avaberg. E desenha-a. Tal como o teria feito o seu compatriota Nils Holgersson se não viajasse através da Suécia no dorso de um ganso, movido pela extraordinária Selma Lagerlöf.

Uma deliciosa aventura sobre a importância da filosofia, do jornalismo e da pölsa.

 

jef, julho 2021

terça-feira, 6 de julho de 2021

Sobre o livro «Perdeu-se Uma Mulher» de Raymond Chandler (1940), Livros do Brasil, Colecção Vampiro #118. Tradução de Mascarenhas Barreto. Capa: Lima de Freitas.














«Uma mão, que facilmente poderia ter localizado lá dentro, saiu da escuridão e, agarrando-me pelo ombro, comprimiu-me como se fosse uma massa. Em seguida, fez-me transpor a entrada e ergueu-me casualmente à altura de um degrau. Um rosto enorme fitou-me e a voz profunda e baixa do gigante disse-me calmamente:

– Com que então a meter o nariz onde não és chamado, hem? Deixa cá isto comigo, pá!»

Deste modo, o investigador particular Philip Marlowe é capturado (e cativado) pelo gigante Moose Malloy. Quase dois metros de altura, vestido à palhaço, chapéu de aba larga, lenço e gravata amarelos, calças de desporto, sapatos de crocodilo. Ambos olhavam para cima, para o andar onde parecia sobreviver o estabelecimento de diversão Florian’s.

É assim que começa o romance de Raymond Chandler «Farewell, My Lovely» cujo título português arrasta até à mais baixa planura: «Perdeu-se uma Mulher». Ainda mais injusto é o título pois Raymond Chandler parece sempre muito mais animado em despir (ou vestir) as personagens através das características emocionais que mais perturbam (ou atraem) o célebre detective. Quer sejam masculinas ou femininas, o romancista coloca-se sempre a meia distância analítica das personagens, descrevendo-as em pé de igualdade, andrógino e minucioso, deixando que Marlowe seja seduzido tanto por sedutoras vampes endinheiradas como por californianos efeminados, alcoólicos e falidos.

Afinal, Marlowe é um sentimental que tem um calendário com o auto-retrato de Rembrant, homem já idoso, segurando a paleta suja e envergando um camisão ainda mais sujo, olhando quem o olha com amargura e traços de alcool. Ali, sobre a mesa, a imagem mal impressa de Rembrant é o espelho de um Marlowe que, meio abandonado meio irónico, aguarda simplesmente o toque do telefone para se meter na próxima alhada.

Assim, por esse olhar ao mesmo tempo cínico e confiante, é descrita a inacreditável casa de Jessie Florian, profissional do gin, ou os ademanes do petulante Lindsay Marriott que pede ajuda para reaver um célebre colar de jade roubado à persuasiva Mrs. Grayle. A casa dos Grayle sai, aliás, de um manual de arquitectura e jardim enquanto os desfiladeiros sobre a costa californiana são como labirintos percorridos por personagens que espreitam através de cenários de Frank Lloyd Wright, Alfred Hitchcock ou David Lynch.

A história de «Perdeu-se uma Mulher» assenta muito mais nesse detalhe estético dentro do traço psicanalítico, na volúpia descritiva pelo pormenor extravagante, do que na simples estratégia da intriga que coloca Philip Marlowe no meio do caminho desesperado de Moose Malloy procurando a desaparecida Velma.


jef, julho 2021


sábado, 3 de julho de 2021

 






Bibliofilia

Descubram uma lombada para cada livro.


Insistam.

Esperem pacientemente.

Verão surgir uma encruzilhada para cada ombreira.


Talvez um cigarro atrás de certa orelha

Ou um tiro em dado pé.

 

Só um homem consegue colocar

uma ficção verdadeira em cada encruzilhada,

uma autêntica lombada em cada ombreira.


E, por fim, rir da sua

má criação.


jef, julho 2021