«Entre
esses dois corações há só um juiz possível. Esse juiz é Deus!
Deus
que, muitas vezes, assesta a sua vingança no seio das famílias, e se serve
eternamente dos filhos contra as mães, dos pais contra os filhos, dos povos
contra os reis, dos príncipes contra as nações, de tudo contra tudo;
substituindo no mundo moral os sentimentos pelos sentimentos, como as folhas
novas na Primavera repelem as folhas velhas, agindo em vista de uma ordem
imutável, de um fim que só ele conhece. Tudo vai para o seio de Deus, ou,
melhor ainda, tudo para aí volta.»
Esta
não será a visão de Deus escrita sem rodeios por Balzac. Esta é a sua visão
política e social de um mundo que viu surgir a Revolução Francesa para se
transformar, em pouco tempo, num império que impunha todas as novas velhas
normas sociais.
Uma
espécie de alegoria brilhante que se inicia em 1813, com a parada nas Tulherias
das tropas de Napoleão, que seguirão para as fatídicas batalhas no centro da
Europa, onde a jovem e coquete Júlia recusa as palavras do pai que a avisam do
carácter pouco digno do garboso coronel Vítor d’Aiglemont, e que a tornará numa
vigilante, seráfica, sedutora e reservada marquesa, mãe de cinco filhos. Júlia,
mais tarde quase amante do Lorde Artur Grenville, quase amante de Carlos
Vandenesse, quase mãe de Helena, esta que deverá partir oceano fora,
escorraçada pela ausência do amor maternal.
Uma
espécie de fábula sobre o desenvolvimento da beleza e da consciência feminina
no interior de uma sociedade que a manieta e lhe rejeita a liberdade, a
autonomia e o protagonismo. Uma grande novela que termina em 1844, quando a
própria filha Moina, condessa de Saint-Hércen, recusa, por sua vez, ouvir as
palavras de uma mulher de cinquenta anos, sobre a reputada leviandade do seu
amante, Alfredo de Vandenesse.
O
ciclo recomeça.
Balzac
deseja, certamente, provocar a sociedade. Não é nada doce com a postura desgastada
e pouco nobre de aristocratas, militares, políticos, ou notários. Não tem
contemplação com os saltos narrativos que, quantas vezes deixam o leitor
surpreso e incrédulo. Salta de episódio para episódio com o intuito de chegar a
uma premissa, escondendo-a entre a folhagem da novela e da descrição,
escondendo-se ele próprio, o narrador, entre as árvores da encosta para narrar
a tragédia. Esconde por pudor e consideração as lágrimas da heroína
anti-heroína, Júlia d’Aiglemont.
É
essa a premissa política, a provocação literária e o triunfo de uma obra sobre
a insubstituível condição feminina.
jef,
julho 2021