quinta-feira, 1 de julho de 2021

Dos ulmeiros de Miguel Torga

 








Da alma da paisagem. Do bosque no quintal.

O ulmeiro Ulmus minor Miller

 

«S. Martinho de Anta, 31 de Março de 1961 - Enxertia. Perdeu-se em mim uma vocação de silvicultor, o que explica muitos suspiros que dei e muitos versos que fiz nas matas de Portugal e do mundo. Já no tempo da escola o meu grande dia era sempre o da Festa da Árvore, lamentavelmente apagado do calendário pedagógico, e que ainda hoje recordo com emoção. As raízes que eu aconcheguei à terra, diante dos olhos paternais do senhor Botelho! À medida que os anos foram passando, talvez por me não ser possível plantar negrilhos e mimosas no chão cimentado das cidades onde tenho vivido, a fúria arborícola esmoreceu. Mas vejo-me e desejo-me para lhe quebrar o ímpeto com que renasce agora no quintal que meu Pai me deixou. Coalhei-o de caules, sem conseguir fartar o apetite recalcado. E visto que seria absurdo tornar mais denso o bosque, meto garfos a torto e a direito nos ramos vitalícios. Além da íntima compensação que tiro, como amputador profissional de órgãos humanos doentes, da lúdica transplantação de órgãos vegetais sãos, é a maneira engenhosa que a imaginação me sugeriu de multiplicar a floresta na menina dos olhos…»

Miguel Torga, Diário IX

 

Onze anos antes, Miguel Torga escrevia: “a paisagem é, realmente, um estado de alma…”. Nessa altura, não se sentia tranquilo. Visitava o Minho e a monotonia do verde entediava-o. Pior, exasperava-o. Tanta folha impedia o olhar de alcançar o horizonte. Deixava-o melancólico. Ao aproximar-se do berço da nacionalidade só lhe apetecia ruminar. “O vinho é verde, o caldo é verde…” gracejava. Sobejavam quilómetros para chegar ao seu reino maravilhoso: Trás-os-Montes. Entre o folhame escondiam-se os substantivos fraga ou granito da vista de quem criara telúrico, o adjectivo.

Já instalado no interior do Reino Maravilhoso, era São Martinho de Anta o seu jardim, a paisagem da memória de seu Pai, o núcleo da alma como lugar próprio. A republicana Festa da Árvore, o infantil plantio das arvorezinhas, o olhar protector do senhor Botelho. Tudo passado e condensado num quintal (coisa portuguesa, entre o logradouro, o jardim e a horta) que se revoltaria, mais tarde, transformando o Éden paterno em Floresta Negra de impenetrável rebeldia. O remorso do cirurgião competente, o ímpeto do silvicultor desajeitado lançando raízes de arvoredo farfalhudo e este, por vingança, a cobrir de sarcasmo verde a telúrica paisagem do escritor.

Desconheço se a fúria esvaída do arboricultor urbano o terá levado realmente a povoar o quintal do amarelo invasor das acácias florescidas ou das plântulas esguias de negrilho, ulmeiro, olmo ou mosqueiro, de sua copiosa identidade.

Estas últimas, caducifólias, que se fariam de copa aristocrática e tronco robusto, atingindo os 30 metros de altura, caso os animais domésticos ou selvagens não lhes fizessem poda natural, já que as folhas possuem alto teor nutritivo, refreando-lhes o incansável apetite.

Ou se ao bicho-homem não lhe der para aproveitar a madeira escura e resistente na construção de utensílios e alfaias, ou desviar o ritidoma pelos taninos e outros compostos de utilidade terapêutica.

Ou se os escaravelhos curculionídeos Scolytus scolytus, parentes de gorgulhos e carunchos, com as suas patinhas, não transportarem para as galerias escavadas uma das estirpes do Ophiostoma novo-ulmi. O fungo que traz essa doença devastadora – a grafiose.

Se, porventura, resistisse à voracidade de escritores, agricultores e demais criaturas vivas, as densas copas encontrariam espaço para medrar em praticamente todo o território continental, nas matas ribeirinhas e nos solos frescos e profundos das várzeas. O seu pendor trémulo vem-lhe das bastas folhas de curto pecíolo que são sustentadas sem transição dos ramos finos e estes logo para os mais grossos. Um pendor de paisagem quase impressionista. Folhas muito nervadas, alternas, orladas de dupla serrilha, ovaladas e pontiagudas, ostentando na sua base nítida assimetria.

Tal como as flores, os frutos, de curto pedúnculo, nascem quase diretamente dos ramos. Sâmaras achatadas e com uma asa periférica paleácea, precoces, amadurecendo antes das folhas concluírem a sua formação.

É muito provável a sobrevivência de Miguel Torga perante o verde selvático de S. Martinho de Anta, mas já duvidamos que os seus negrilhos tenham resistido à grafiose. Sorte igual a da enorme árvore que presidia, impante, à entrada da Fundação Calouste Gulbenkian e que se despediu de Lisboa, em 2017; ou à da clássica Livraria Ulmeiro, em Benfica, que fechou portas por 2018 quando do assalto voraz de distinto escaravelho económico.

Que nos fique, então, a esperança da chegada de alguma variedade resistente que faça vingar a existência desta árvore quase símbolo, tão importante na compartimentação da alma da paisagem, e que há milénios projecta a sombra homérica sobre os túmulos dos heróis nas epopeias da velha Grécia.


jef, maio 2021

escrito no âmbito do projeto Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental

https://ielt.fcsh.unl.pt/Projetos/atlas-das-paisagens-literarias-de-portugal-continental/

* botânica

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