sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Sobre o filme «Estranha Forma de Vida» de Pedro Almodóvar, 2023












O filme gira em torno da figura de Jake, xerife respeitado, metódico, de espírito reservado, talvez taciturno, que logo no segundo minuto da curta-metragem, em conversa com um correligionário, ficamos a saber que tem um grave homicídio entre mãos por resolver. Entretanto, chega um velho amigo, Silva que lhe coloca dois graves dilemas. O do passado, de há 25 anos, uma paixão fulminante entre os dois que terá durado poucos meses e que o xerife deseja esquecer. E o do presente, o desse crime, que Jake deve sancionar e Silva, absolver.

Tudo perfeito, o maravilhoso Ethan Hawke (Jake), sempre de negro, nunca esboça um sorriso contra Pedro Pascal (Silva) luminoso, colorido, sem sombras de um passado que pretende transportar para o presente. Entre os dois, os dois dilemas. O tradicional inconciliável que traduz toda a génese do filme de cowboys deixando-os frequentemente presos ao seu cavalo, caminhando para um horizonte empoeirado e solitário.

Num filme de cowboys “americanos” a masculinidade está sempre presente e a homossexualidade é frequentemente subliminar. Aqui é o cerne do drama. E aqui é justa, parcimoniosamente contida e bela.

Só que um filme de cowboys levam muito tempo a percorrer a rua, a chegar ao deserto, a encontrar o mau, a preparar o duelo, a delinear a intriga, o dilema, a solidão e o saloon, o posto do xerife e o espírito do verdadeiro homem bom. E aqui, tudo está certo, mas em meia hora. Eu precisava de mais uns minutos para compreender e apreciar a paisagem.

E por que me explicaram no fim (em entrevista com Pedro Almodóvar) cada segundo de um filme que está explicado por si próprio! Pois quando saí do cinema já tinha perdido o fio da meada do “meu” filme!


jef, outubro 2023

«Estranha Forma de Vida» (Extraña forma de vida / Strange way of life) de Pedro Almodóvar. Com Ethan Hawke, Pedro Pascal, Pedro Casablanc, Manu Ríos, George Steane, José Condessa, Jason Fernández, Sara Sálamo, Oihana Cueto, Daniela Medina. Argumento: Pedro Almodóvar. Produção: Agustín Almodóvar. Fotografia: José Luis Alcaine. Música: Alberto Iglesias. Guarda-roupa: Anthony Vaccarello. Espanha, 2023, Cores, 31 min.

          

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Sobre o filme «O Sol do Futuro» de Nanni Moretti, 2023


 





















Este filme ensina-nos a conviver com o passado, um passado que, quando o recordamos, ele próprio nos demonstra que o futuro é uma coisa efémera.

Não há volta a dar, os dias esgotam-se. E o passado resultou nisto.

Contudo, Giovanni/Moretti, nesse seu modo de realizador em crise dentro do pretérito de um partido comunista obsoleto; dentro de um cenário que nunca está suficientemente anotado; de actores criativos e actrizes de usam feias chinelas; de produtores falidos e circos húngaros em exílio; de um casamento na cadeira de psiquiatra; de uma esposa que produz um filme de falsa violência; irá reverter a existência numa espécie de relatório final. Ou num rascunho, pois aquela até ao fim pode vir sempre a ser alterada.

Contudo, Giovanni/Moretti olha a câmara de frente e nega para si próprio o campo-contracampo. Fala-nos nos olhos e diz-nos que se quer ir embora, esconder-se debaixo dos lençóis, tapar-se com o cobertor e ver na televisão um filme de Fellini a comer um gelado. Em família. Ele é impositivo mas não se consegue impor a ninguém. Nem à própria vida, ao próprio rascunho do futuro breve.

Fellini já tinha falado desse futuro final em «Fellini 8 ½» (1963). Wim Wenders em «O Estado das Coisas» (1982).

Contudo, Moretti/Giovanni propõe alterar-lhe o fim, torná-lo mais ligeiro, talvez mais dançável, por isso, mais consciente (como diria David Byrne).

Acrescentar-lhe a ternura, ou um sorriso, ou uma palavra, ou uma ideia.

Ou um filme fundamental.

Colocar o futuro em pausa.


 jef, outubro 2023

«O Sol do Futuro» (Il sol dell'avvenire) de Nanni Moretti. Com Nanni Moretti, Margherita Buy, Silvio Orlando, Barbora Bobulova, Mathieu Amalric, Zsolt Anger, Jerzy Stuhr, Arianna Pozzoli, Valentina Romani, Teco Celio, Elena Lietti, Flavio Furno, Francesco Brandi, Michele Eburnea, Laura Nardi, Giuseppe Scoditti, Arianna Serrao, Blu Yoshimi. Argumento: Francesca Marciano, Nanni Moretti, Federica Pontremoli, Valia Santella. Produção: Nanni Moretti e Domenico Procacci. Fotografia: Michele D’Attanasio. Música: Franco Piersanti. Guarda-roupa: Silvia Segoloni. Itália / França, 2023, Cores, 95 min.

 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Sobre o filme «Orlando, A Minha Biografia Política» de Paul B. Preciado, 2023






















Nem documentário. Nem reportagem. Nem ficção. Esclarecedor sem ser didáctico, paternalista. Acima de tudo, este filme traduz através do teatro, da sobriedade, do humor e da poesia construída em torno da personagem de Orlando de Virginia Woolf (1928), o complexo mundo contemporâneo da transsexualidade e das pessoas que assumem serem não-binárias, ou seja, que não se vêem como homem ou como mulher, géneros opostos e exclusivos, mas integrados numa escala ou gradiente entre um sexo e o outro. Sem dogmas esclarece. Sem rodriguinhos expõe a questão social. Sem lamechices ouvimos na primeira pessoa, neste caso, pelos diversos Orlandos vestidos (ou travestidos) de actores-reais que se consideram não-binários e, actualmente, percorrem no seu interior o caminho de transformação e descoberta de um novo ser nos seus próprios corpo e mente. A dificuldade de definição sexual; o processo de transformação a partir da puberdade; o papel da toma de hormonas sintéticas e das cirurgias; como se estipulará administrativamente a continuidade do número fiscal a uma pessoa cuja identidade já não corresponde aos dados iniciais.

É um filme que não tem contemplações, nem exibicionismo, nem autocomiseração como forma de política de conquistar adeptos para a causa. Nada disso. É mesmo um filme político que usa o princípio estético e a ternura para levar a água ao seu moinho e afirmar a necessidade de se criarem estatutos e compreensão para um mundo em afirmação que não será assim tão novo quanto o pintam.


jef, outubro 2023

«Orlando, A Minha Biografia Política» (Orlando, ma biographie politique) de Paul B. Preciado. Com Arthur, Emma Avena, Amir Baylly, Jenny Bel'Air, La Bourette, Nathan Callot, Kori Ceballos, Liz Christin, Iris Crosnier, Naëlle Dariya, Tom Dekel, Clara Deshayes, Virginie Despentes, Eleonore, Castiel Emery, Le Filip, Pierre et Gilles, Noam Iroual, Vanasay Khamphommala, Lillie, Elios Lévy, Tristana Gray Martyr, Victor Marzouk, Frédéric Pierrot. Argumento: Paul B. Preciado. Produção: Yaël Fogiel e Laetitia Gonzalez. Fotografia: Victor Zébo. Música: Clara Deshayes. França, 2023, Cores, 98 min.

 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Sobre o livro «O Corsário Negro» de Emilio Salgari. Círculo de Leitores, 1997 (1898). Tradução de António J. Pinto Ribeiro.










Emilio de Roccanera, nobre italiano e senhor de Ventimiglia, lidera o leme e as aventuras marítimas do grande navio “Relâmpago” pelos mares das Caraíbas, mares que circulam entre as riquezas das colónias espanholas, Cuba, Golfo do México, Venazuela... Mas o Corsário Negro não pretende as riquezas que rouba e que vai distribuindo pelos flibusteiros e bucaneiros que servem a equipagem do navio. Ele apenas quer recuperar o corpo enforcado do seu irmão o Corsário Verde, exposto na praça de Maracaíbo a mando do seu inimigo figadal, o flamengo a soldo dos espanhóis, Wan Guld. Esse sim, o arqui-inimigo e traidor para quem deseja a vingança suprema. A operação é coroada de êxito apesar de tão arriscada como aventurosa, secundada pelos companheiros de armas Carmaux e Wan Stiller, dois piratas que até então navegavam com um terceiro irmão assassinado, o Corsário Vermelho, e ainda pelo forte e leal negro Moko.

Claro que nenhum dos heróis morre! Claro que ninguém sequer fica ferido! Estejam descansados. E ainda aparece o amor misterioso e contido, talvez mesmo condenado, pela belíssima duquesa Honorata, feita prisioneira para servir um chorudo resgate. E ainda temos a eterna, lenta e sofrida progressão pelos mangais tropicais de Maracaíbo, onde as plantas, animais, feras e invertebrados são descritos com minucia, por vezes debaixo de violentas tempestades tropicais sob a luz de relâmpagos e fortes trovões comparados a carros e comboios apesar de estar em pleno século XVII.

Mas isso pouco importa, nem Salgari terá conhecido de perto as tropelias náuticas que narra e descreve. O que é bom reconhecer é que o autor italiano tem o jeito espantoso de alongar a narrativa ou de apressá-la a seu belo prazer, sem olhar a meios, tantas vezes sem coerência, mas dando-lhe um ritmo infatigável que, juntamente com a mestria de encher a história de apontamentos misteriosos que se desenvolverão mais além, torna-o um dos grandes mestres literários das leituras oníricas e novelescas dos adolescentes de antanho.

A seguir, pois claro, lerei «A Rainha das Caraíbas» para saber como a história continua.


jef, outubro 2023

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Sobre o filme «No Verão Passado» de Catherine Breillat, 2023














Este filme tem a pretensão de ser um filme “fracturante” (como agora se usa dizer) sobre o tema dos amores além-convenção. A história de Anne (Léa Drucker) uma advogada de sucesso, que opera na causa adolescente perante a lei e a sociedade, recebe em casa o filho do primeiro casamento do marido, Pierre (Olivier Rabourdin). Um adolescente provocador, irado e irreverente, Théo (Samuel Kircher), que a vem perturbar emocional e sexualmente revelando-lhe a rotina enfadonha que o atarefado casal levará. Uma proposta interessante. Contudo falhada

Théo parece ser uma cópia falsificada de Björn Andrésen, o Tadzio de «Morte em Veneza» (1971) e por falar em filmes falhados sobre amores “ilícitos”, ao ver este filme, para além de devermos esquecer o citado Visconti, também teremos de o fazer para «Ensina-me a Viver» (Harold and Maude) que Hal Ashby realizou no mesmo ano. Devemos igualmente esquecer alguns livros como «Lolita» de Nobokov (1955) ou «O Amante de Lady Chatterley» de D. H. Lawrence (1928). Tudo obras belas que, na altura, foram realmente instigadoras de discussão e mudança na pública consciência.

Agora, «No Verão Passado» não passará de uma sequência de cenas de sexo supostamente “explícito” mas que duram mais do que o necessário (se é que são mesmo necessárias) entrecortadas por belos copos de vinho branco a serem bebidos.

O que safará o filme é a esplêndida actriz Léa Drucker que infelizmente só perto do final se revela quando sustém a mentira perante a perplexidade do marido e do enteado.

A “imoral” moralidade do fim do filme não é suficiente para o salvar.

 

jef, outubro 2023

«No Verão Passado» (L'Été Dernier) de Catherine Breillat. Com Léa Drucker, Samuel Kircher, Olivier Rabourdin, Clotilde Courau, Serena Hu, Angela Chen, Romain Maricau, Romane Violeau, Marie Lucas, Nelia Da Costa, Lila-Rose Gilberti, Jean-Christophe Pilloix, Karim Achoui. Argumento: Catherine Breillat. Produção: Saïd Ben Saïd. França, 2023, Cores, 104 min.

         

sábado, 14 de outubro de 2023

Sobre o filme «Golpe de Sorte» de Woody Allen, 2023















Woody Allen, nos seus últimos filmes, tem-se dedicado a plagiar deliciosamente o seus argumentos, a refazer as próprias histórias caricaturando livremente a intriga, o crime, o adultério, a riqueza e a presunção da alta sociedade. Longínquo vai o tempo da psicanálise e do trauma judaico. Aqui, tudo faz recordar a obra-prima «Match Point» (2005) mas em vez de se ler o «Crime e Castigo» de Dostoiévski, lê-se «Anna Karérina» de Tolstói.

A personagem feminina Fanny (Lou de Laâge) muito bem casada com um homem que se ocupa de fazer enriquecer ainda mais os já muito ricos, Jean (Melvil Poupaud) encontra por golpe de sorte (ou de azar) um antigo apaixonado colega de faculdade, livre-pensador e escritor a terminar um romance, instalado numa romântica mansarda de Paris, Alain (Niels Schneider). Tudo muda de figura, o casal maravilha vê-se a braços com a inquietude de uma nova paixão e o dedicado marido contrata um detective para seguir a mulher. A coisa, como é evidente, não acaba bem.

Tudo parece aqui (muito bem) exagerado à boa maneira delirante de Woody Allen: os esgares suspeitosos de Melvil Poupaud; a desenvolta sogra que vai pondo tudo em causa, Camille (Valérie Lemercier); os capangas pugilistas contratados; a extraordinária figura da ajudante de detective que tem a missão de registar as provas do adultério, Delphine (Anne Loiret). Até o filtro ocre-vermelho-quente e a lente olho-de-peixe com que é filmada a mansarda de Alain; ou as golas altas intelectuais que Fanny volta a usar após o reencontro; ou o tom azulado e frio que envolve o marido enganado ou até o final com a devota prostração bíblica dos caçadores perante o cadáver.

Pode não ser a melhor re-comédia de Woddy Allen mas que o realizador é um génio em oferecer boas tardes de divertimento, suspense, belas actrizes e belos actores, a melhor fotografia de Paris, em pouco mais de uma hora e meia, lá isso é!


jef, outubro 2023

«Golpe de Sorte» (Coup de chance) de Woody Allen. Com Lou de Laâge, Valérie Lemercier, Melvil Poupaud, Niels Schneider, Anna Laik, Yannick Choirat, Guillaume de Tonquédec, William Nadylam, Elsa Zylberstein, Arnaud Viard, Jeanne Bournaud, Anne Loiret, Sara Martins, Alan Risbac, Éric Frey, Samantha Fuller, Valérie Lemercier. Argumento: Woody Allen. Produção: Erika Aronson e Letty Aronson. Fotografia: Vittorio Storaro. Guarda-roupa: Sonia Grande. EUA / França, 2023, Cores, 93 min.