quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Sobre o filme «Dias Perfeitos» de Wim Wenders, 2023





















Ao Correr do Tempo. Parece que Wim Wenders reencontrou o seu tempo, ou o tempo da sua poesia, com «Dias Perfeitos». Voltou a sussurrar-nos que o silêncio é de ouro e o tempo é de prata numa obra que já fazia falta aos dias que hoje correm, ansiosos e perturbados, contrariando a desdita destes.

Um filme que pela beleza circunspecta nos obriga a olhar para dentro de nós. Afinal, o despojamento e a contemplação serão os alicerces de uma vida que ainda se deseja futura.

Ao seu melhor e velho estilo, Wim Wenders conta-nos a história de Hirayama, o empregado de limpeza das ultra-modernas casas de banho em Tokyo (não é de estranhar que o realizador se tenha apaixonado pela respectiva arquitectura) através de episódios singulares que, aos poucos, se justapõem dando corpo ao silêncio interpretado pelo magnífico actor Koji Yakusho. Toda a narrativa se dirige para e pela sua expressão, dando talvez azo a um neo-expressionismo alemão que, não fossem as maravilhosas canções que saem das (agora tão modernas) velhas cassetes áudio (além do ruído suburbano), poderia ser contemplado como um filme mudo.

Afinal, a história da estoica rotina e do ascetismo silencioso de Hirayama está contida nessa determinação, onde a tonalidade moral, aqui ora cómica ora trágica, acompanha a das velhas parábolas espirituais – os pobres-ricos Job ou Sidarta que o digam.

O filme acarinha o desejo e a necessidade urgentes de mudança do paradigma das depressivas sociedades contemporâneas.

Um filme maravilhoso para terminar em grande 2023!


jef, dezembro 2023

«Dias Perfeitos» (Perfect Days) de Wim Wenders. Com Koji Yakusho, Min Tanaka, Arisa Nakano, Tokio Emoto, Aoi Yamada, Yumi Aso, Sayuri Ishikawa, Tomokazu Miura. Argumento: Takuma Takasaki e Wim Wenders. Produção: Wim Wenders, Takuma Takasaki, Koji Yanai. Fotografia: Franz Lustig. Alemanha / Japão, 2023, Cores, 123 min.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Sobre o filme «Maestro» de Bradley Cooper, 2023


 









O filme parece assentar em diversos paradoxos (apesar de no cinema ser difícil imaginar paradoxos).

Há muito que as salas não se enchiam para ver um filme aplaudido pelos críticos. Um filme produzido para ou por uma empresa que não é propriamente a rainha das ditas salas, mais vocacionada para o remanso do sofá e da mantinha nas pernas.

Um filme expressamente musical, com bailados no palco à Broadway e tudo, mas que privilegia muito em especial os silêncios, quando a câmara parada sobre estes dá o tempo necessário ao espectador para reconhecer os momentos de tensão, de suspense ou clivagem na história dos personagens.

Um filme inteiramente dirigido para o genial músico Leonard Bernstein (Bradley Cooper) mas onde a figura central, por oposição, parece não ser ele mas a sua mulher Felicia Montealegre (Carey Mulligan).

(Não me esqueço de como, em modo compenetrado, assistíamos em família aos programas televisivos de Leonard Bernstein nos seus concertos populares e comentados.)

Um filme de óscares à antiga, a transbordar de produção e publicidade, granjeador de entusiasmo hollywoodesco, mas onde a exposição da “versatilidade” do amor musical, afectivo e erótico do compositor e maestro chega, felizmente, de uma visão muito recente e universal sobre a aceitação de “género” (seja lá isto o que for).

Onde o exagero de algumas cenas, dos gestos ou da verve, da sua rapidez contrastando com os momentos de “pausa”, serve de modo candente o próprio espetáculo exuberante, ligando o filme ao drama ficcional e afastando-o da intenção documentarista.

Depois existe o guarda-roupa, ou cenário e a música.

E na beleza da música, aí é que não há paradoxos.


jef, dezembro 2023

«Maestro» de Bradley Cooper. Com Carey Mulligan, Bradley Cooper, Matt Bomer, Vincenzo Amato, Greg Hildreth, Michael Urie, Brian Klugman, Nick Blaemire, Mallory Portnoy, Alexandra Santini, Sarah Silverman, Kate Eastman, William Hill, Valéry Lessard, Renée Stork, Tim Rogan, Sara Sanderson. Argumento: Bradley Cooper e Josh Singer. Produção: Bradley Cooper, Martin Scorsese, Steven Spielberg / Netflix. Fotografia: Matthew Libatique. Guarda-roupa: Mark Bridges. EUA, 2023, Cores, 129 min.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Sobre o filme «História de um Proprietário Rural» de Yasujiro Ozu, 1947



 












Um filme que vem de um mundo distante e tão próximo. Um mundo expressionista, quase do cinema mudo onde as expressões são a sua própria história. Quase a dispensar as palavras. A história do Japão derrotado, destroçado e pobre, angustiado e em busca de uma centelha de estima e conforto. Um filme que, pelo lado neorrealista da infância perdida, fez-me lembrar «Aniki Bóbó» (Manoel de Oliveira, 1942) ou «Ladrões de Bicicletas» (Vittorio De Sica, 1948). Acima de tudo, pelo lado comovedor de uma ternura ofendida e sem tecto.

A história da viúva Otane (Choko Iida) que recebe contrariada uma criança órfã de guerra, Kohei (Hohi Aoki), que se perdeu do pai nos arredores de Tóquio. Acolhe-a como um cão que não deseja, depois sente-lhe a falta porque deixa de estar só. Depois ama-o e quero-o. Mas o pai aparece. E ela chora, não pela solidão reencontrada mas de alegria porque o pai, afinal, é bom homem, não o abandonou, fez tudo para encontrar o filho e ama-o. É a cena mais dilacerante do filme associada, no final, como denúncia fortíssima, à cena de um grupo de crianças pobres que brincam e fumam no parque, sozinhas, aparentemente também elas órfãs de guerra.

É impossível não nos emocionarmos com a mestria teatral da composição das personagens girando num espaço cénico de palcos sobrepostos. E não nos comovermos mais ainda lembrando os milhares de órfãos que ficarão no mundo saídos desta nova e medonha guerra, tão próxima de nós.

Um filme imprescidínvel!

 

jef, dezembro 2023

«História de um Proprietário Rural» (Nagaya shinshiroku) de Yasujiro Ozu. Com Choko Iida, Hohi Aoki, Eitaro Ozawa, Mitsuko Yoshikawa, Reikichi Kawamura, Hideko Mimura, Chishu Ryu, Takeshi Sakamoto, Eiko Takamatsu, Taiji Tonoyama. Argumento: Tadao Ikeda e Yasujiro Ozu. Produção: Mitsuzô Kubo. Fotografia: Yuharu Atsuta. Música: Ichiro Saito. Japão, 1947, Preto e Branco, 81 min.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Sobre o filme «Fechar os Olhos» de Víctor Erice, 2023



 
















Este filme é estranho. Realizado mais de 30 anos depois de «O Sol do Marmeleiro» (1992), um dos filmes que jamais esquecerei pela genial candura como Víctor Erice oferece ao pintor Antonio Lopez, o tempo, a beleza e o silêncio da espera. E nos ensina a contemplar a vida como se disfruta de uma natureza-morta exemplar.

Por isso, preparei-me para um novo deslumbramento que logo aconteceu na pausa inicial em que nos são dadas ver as cenas iniciais de um filme que está a ser realizado por Miguel Garay (Manolo Solo) e onde nos é apresentado o pedido de um velho aristocrata judeu em fim de vida, Mr. Levy (Josep Maria Pou), a um investigador privado para que encontre e traga à sua presença a filha que terá deixado no Extremo Oriente. Porém, tudo fica interrompido pois o actor e amigo de longa data do realizador, Julio Arenas (José Coronado), desaparece sem deixar rasto antes de serem concluídas as filmagens.

Uma investigação televisiva vem reacender o mistério e devolve a Miguel Garay a vontade de tentar desvendar o desaparecimento do seu amigo e cúmplice de amores e desamores.

Estão lançados os dados através de uma tranquila mas profunda reflexão sobre o tempo que passa sem deixar rasto, o fim do cinema, a busca da identidade e a liberdade de desaparecer. Tudo se move em torno de uma ausência e da perspectiva do final de linha. Para que servirá continuar a tentar se nos é dada a liberdade de mudar de estação e fugir? Se também temos a opção de obliterarmos a memória?

Tudo é interrogado através de uma história extraordinariamente bem contada e por personagens profundamente construídos e bem caracterizados. Tudo é nostálgico e belo.

Contudo, à medida que o filme caminha para o fim, a narrativa parece começar a ficar presa em pormenores cada vez mais factuais, digamos novelescos para não dizer televisivos, e fui perdendo a poesia que no início me entregaram como fulcro do enredo. E a cena final, em jeito de «Cinema Paraíso» (Giuseppe Tornatore, 1988), é lenta, muito lenta, e desfaz um pouco a aura misteriosa que desde o início fora prometida.

Mas ainda é uma grande filme, uma bela tarde de cinema.


jef, dezembro 2023

«Fechar os Olhos» (Cerrar los ojos) de Víctor Erice. Com Manolo Solo, José Coronado, Ana Torrent, Petra Martínez, María León, Mario Pardo, Helena Miquel, Antonio Dechent, Josep Maria Pou, Soledad Villamil, Juan Margallo, Dani Téllez, Alejandro Caballero Ramis, Rocío Molina, Ana María, José Manuel Mansilla, Kao Chenmin, Venecia Franco, Fulgencio Javier, Natalia Llorens. Argumento: Víctor Erice e Michel Gaztambide. Produção: Víctor Erice, José Alba, Odile Antonio-Baez, Agustin Bossi e Pablo Bossi. Fotografia: Valentín Álvarez. Música: Federico Jusid. Espanha / Argentina, 2023, Cores, 169 min.

 

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Sobre o filme «Crepúsculo em Tóquio» de Yasujiro Ozu, 1957



 












É difícil imaginar um filme de Yasujiro Ozu que não termine com uma centelha de esperança no interior da eterna questão familiar, no confronto de gerações, na modernização da sociedade ou na aceitação e fuga das ancestral tradição japonesa. Mas existe. Este.

Porém, «Crepúsculo em Tóquio», para além de ser uma obra-prima formal e na gestão do melodrama, possui alguns factores que o tornam ainda mais denso e trágico, sem fornecer às personagens um ponto de fuga ao destino declarado.

O mistério que faz com que o pai, bancário, Setsuko Hara (Takako Numata), vive só com a rebelde filha solteira Akiko Sugiyama (Ineko Arima) e a filha mais velha Shukichi Sugiyama (Chishu Ryu), em desavença com o marido alcoólico, é o cerne do drama e sabemo-lo logo de início. Enquanto a irmã mais velha, Sugiyama, cumpre a formalidade doméstica de servir com reverência o pai enquanto trata do seu pequeno filho, Akiko vestida de modo ocidental, não cumpre nenhum ritual oriental, dá-se com a ralé de bares e salões de majongue e chega sempre tarde a casa sem grandes explicações. A suspeita por Akiko da causa de ter vivido sem a mãe e a busca da sua identidade vai colocar toda a família em conflito. Akiko tenta confrontar o pai, Shukichi impede-a, e aquela vai em busca da verdade. Naquela altura, Akiko está só e foi abandonada pelo namorado de quem engravidou.

Akiko parece ser a vítima de todo o descontrolo familiar e quando ouve o pai repreendê-la definitivamente com a frase trágica “Já não és minha filha”, leva-a à letra e corre a tirar explicações. A irmã já havia tentado impedir que o drama não tivesse consequências mas sem sucesso.

Entretanto, ouvimos nós, espectadores, um grupo de jogadores de majongue a contar a história anedótica da gravidez de Akiko, por interposta personagem, entre risos e chacota, na cena mais sombria, quase tétrica, de todo o filme. Sabemos que a partir dali não haverá volta a dar. A tragédia consumar-se-á.

Um filme verdadeiramente inesquecível.

 

jef, dezembro 2023

«Crepúsculo em Tóquio» (Tokyo Twilight / Tokyo boshoku) de Yasujiro Ozu. Com Ineko Arima, Setsuko Hara, Isuzu Yamada, Chishu Ryu, Teiji Takahashi, Masami Taura, Haruko Sugimura, Sô Yamamura, Kinzô Shin, Kamatari Fujiwara, Nobuo Nakamura. Argumento: Kôgo Noda e Yasujiro Ozu. Produção: Shochiku-Ofuna. Fotografia: Yuharu Atsuta. Música: Takanobu Saitô. Japão, 1957, Preto e Branco, 140 min.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Sobre o filme «Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois» de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, 2022



















Passados alguns minutos, começamos a entender a estratégia dos realizadores; a dar tempo ao nosso tempo presente enquanto vemos o filme; a abstrairmo-nos do que esperávamos, essa homenagem documentarista ao filme «Os Verdes Anos» de Paulo Rocha. 

Nada disso. Durante a pandemia e respectivo confinamento, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata tiveram mais que tempo para contemplar demoradamente os cenários que viam da sua janela. Ali por baixo, sessenta anos antes, andaria Paulo Rocha a filmar Isabel Ruth, Rui Gomes, Ruy Furtado ou Paulo Renato. Lisboa, cruzamento da Avenida de Roma com Avenida Estados Unidos da América, entre cafés, o Vá-Vá, o Suprema ou o Luanda.

De tal contemplação emerge um objecto ímpar e inusitado. Um objecto que obriga a parar, a olhar não propriamente com o olhar nostálgico de uma reportagem passadista, nem para o futuro inexistente desse mundo que desapareceu.

«Os Verdes Anos» de Paulo Rocha são irrepetíveis e uma reportagem sobre o que se passou nos meses de rodagem seria importante para, principalmente, os ratos de cinemateca. Além disso, em plena pandemia a circulação das pessoas, se existente, era para poucos!

Então, qual a estratégia?

«Os Verdes Anos» e «Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois» coincidem exactamente na metragem, nos planos e decores, nos ângulos captados, também na duração e na sequência das cenas. Somente, no segundo caso, ninguém pode aparecer, não existem personagens narrativas, apenas figurantes (ou pseudo-figurantes… Tomar atenção à saída do morador com medo de tocar em algum objecto contaminado com o vírus! Aliás o humor, sub-reptício, vai passando pelo filme quase sem darmos por ele. Esse é um dos seus trunfos!)

É um filme que nos dá tempo para observar, nos ensina a ver lentamente enquanto pensamos no seu esqueleto e músculos e órgãos filmado em 1963. «Os Verdes Anos» está lá mas como fantasma etéreo e futurista de uma obra-prima.

Quem não tem antes ou depois não gostará do filme, mas tem de reconhecer que haverá poucos cineastas que nos colocam o relógio em pausa e concedem o espaço apenas para olhar, sem julgar, sem entristecer, simplesmente para reflectir no modo imprescindível que é a arte cénica e visual (e auditiva, também, quantas acções passam para lá da câmara!)

Muito especiais são as canções interpretadas por Isabel Ruth, principalmente na cena final, oferendo a marcha popular em honra à cidade de Lisboa em troca de, no original, a fuga e sequestro de Júlio pelos faróis dos automóveis.

Resumindo, um filme para quem gosta dos filmes de Paulo Rocha e tem tempo para contemplar.


jef, novembro 2023

«Onde Fica Esta Rua? ou Sem Antes Nem Depois» de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata. Com Isabel Ruth, João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata. Produção: João Matos, Vicent Wang, João Pedro Rodrigues. Fotografia: Rui Poças e Lisa Persson. Música: Isabel Ruth, Séverine Ballon e Carlos Paredes. Portugal / França, 2022, Cores, 88 min.

 

Sobre o filme «Os Verdes Anos» de Paulo Rocha, 1963

















Nada mais há a dizer quando passam 60 anos sobre o mais arquitectónico filme realizado sobre a melancolia (ou o fado) ancestral de se ser português, de se viver permanentemente no interior da nostalgia de um passado rural e no desconforto pela inevitabilidade do futuro que chega para alterar as regras urbanas e morais de uma cidade que ainda espera o nevoeiro de um tal Dom Sebastião.

O primeiro filme realizado por Paulo Rocha e produzido por António da Cunha Telles, protagonizado pela novíssima Isabel Ruth (Ilda) e pelo novíssimo Rui Gomes (Júlio), busca os mais directos e sintécticos diálogos de Nuno Bragança e coloca-os numa história tão simples quanto fulcral – o namoro quase pueril entre a alegre Ilda e o tímido Júlio, que mais tarde descobrirá os simulacros da traição e do ciúme, e termina na desmedida apoteose que o destino sempre oferece às grandes tragédias clássicas.

É a estratégia dos longos planos, da falsa linearidade dos decores e das esquadrias perfeitas, dos ângulos rectos, dos pontos de fuga infinitos. O correr da câmara junto das paredes olhando as velhas janelas ou os tectos desvalidos. A estratégia de colocar frente a frente a moderna Lisboa “fascista” e a velha baixa lisboeta ou o além-tejo monárquicos. A travessia do Tejo como salvaguarda do presente ou culpa do que está para vir.

Esse lento desmoronar do desejo, o declínio das expectativas.

O assassínio da esperança num novo lugar numa nova urbe desde o início anunciado pelos acordes de Carlos Paredes, ineludíveis.

Intocada a beleza de um futuro nascido para o Novo Cinema Português. Presente e eterna.

 

jef, novembro 2023

«Os Verdes Anos» de Paulo Rocha. Com Rui Gomes, Isabel Ruth, Ruy Furtado, Paulo Renato, Alberto Ghira, Cândida Lacerda, Carlos José Teixeira, Harry Wheeland, Irene Dyne, Júlio Cleto, Óscar Acúrcio, Manoel de Oliveira, Carlos Jesus Alfonso, Olga De Campos, Ruy Castelar, Manuel Bento, Victor Dias , Henriqueta Domingues, Joaquim Antonio Mendes. Argumento: Paulo Rocha e Nuno Bragança (diálogos). Produção: António da Cunha Telles. Fotografia: Luc Mirot. Música: Carlos Paredes. Guarda-roupa: Rafael Calado e Ada Cruz. Portugal, 1963, Preto e Branco, 84 min.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Sobre o filme «O Som do Nevoeiro» de Hiroshi Shimizu, 1956

















A Força do Destino.

Um precioso melodrama que toma a poética japonesa como ponto de partida para contar uma história que se inicia com a fuga do professor de botânica, Kazuhiko Onuma (Ken Uehara), para as montanhas alpinas japonesas, sendo aí acompanhado por Tsuruko (Michiyo Kogure), sua secretária e depois amante. Kazuhiko refugia-se do tumulto citadino, da derrota do Japão e do violento pós-guerra, da invasão avassaladora de uma nova cultura “americana” que vai tentar pôr termo aos ancestrais modos culturais nipónicos. De certo modo, o professor foge também da sua mulher que vem para o confrontar com a sua relação extra-cionjugal e a decisão própria em participar activamente na nova sociedade japonesa.

Tudo se passa na sucessão dos equinócios de Outono e das suas luas e nevoeiros, numa série de episódios em flashback. A utilização do ciclo anual da natureza florestal e da contida poesia japonesa, a linearidade dos decores, a fulcral síntese dos diálogos, a fixação da câmara frente à expressão dos actores que devolve ao espectador a proximidade insolúvel do futuro e a colocação ao longo da narrativa dos sinais inevitáveis de um drama absoluto, deixam este belíssimo filme na esfera da ópera verdiana, das histórias de Stefan Zweig e, acima de tudo, do respeito carinhoso mas tenso entre gerações que marca a cinematografia do enorme Yasujiro Ozu.

Um drama sem mácula nem tempo.


jef, novembro 2023

«O Som do Nevoeiro» (Kiri no oto) de Hiroshi Shimizu. Com Michiyo Kogure, Ken Uehara, Keizô Kawasaki, Keiko Fujita, Chieko Naniwa, Takeshi Sakamoto, Bontarô Miake, Kumeko Urabe, Eijirô Yanagi. Argumento: Yoshikata Yoda, segundo o romance de Hideji Hôjô. Produção: Masaichi Nagata. Fotografia: Sôichi Aisaka. Música: Akira Ifukube. Japão, 1956, Preto e Branco, 84 min.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Sobre o filme «As Mãos Sobre a Cidade» de Francesco Rosi, 1963




















O filme trouxe-me de imediato à memória visual (e talvez não apenas a essa particular memória) três dos filmes que pertencem à minha colecção de filmes emocionalmente inesquecíveis. Falo de «O Milagre de Milão» (Vittorio De Sica, 1951), «La Dolce Vita» (Federico Fellini, 1960) e «A Noite» (Michelangelo Antonioni, 1961). Todos estes são construídos em torno das definições de urbanismo, arquitectura, memória, nostalgia, decadência e necessidade de futuro. São filmes visionários, revolucionários e, nestes dois sentidos, modernistas. Também, os três, são ultra-românticos.

«As Mãos Sobre a Cidade» faz agora parte deste pequeno grupo acrescentando, contudo, a inflamação visual, a intrépida rapidez narrativa, a cenografia hiper-realista, o som brutal da argumentação e a dimensão operática da movimentação de actores e figurantes.

Essa urgência cinematográfica está baseada na ansiedade exacerbada, talvez mesmo na angústia do presente ser impotente para impedir o livre curso dos jogos políticos camarários e da especulação imobiliária. Os bairros novos e requintados têm de ser construídos junto aos bairros praticamente em ruínas onde vivem milhares de paupérrimas famílias napolitanas.

Edoardo Nottola (Rod Steiger) especulador imobiliário tem de sacrificar o seu filho engenheiro quando ocorre um desmoronamento fatal devido ao avanço da construção dos novos bairros para ricos. O inquérito do edil não chega a conclusão alguma – a lapiseira do desenhador não faz distinção nas plantas da dupla parede de suporte de uma parede simples. As casas ameaçam ruir a qualquer momento, as famílias pobres têm de ser retirados pelo perigo de desmoronamento. A nova cidade deve conquistar o espaço. A composição camarária ameaça as recentres construções mas eleições estão aí.

Nottola entra na campanha eleitoral. Deve ser eleito para que Nápoles mude de rosto. O Centro e a Direita entram em confronto com a Esquerda. O tráfico de influências move-se sem descanso para assegurar o negócio da construção civil do pós-guerra.

Francesco Rosi filma tudo com a urgência de uma denúncia fulcral e, nesse aspecto, o filme torna-se mais actual do que nunca, também político, logo igualmente futurista. Mas afasta-se peremptoriamente da nostalgia romântica .

Contudo, o espectador não pode esquecer que no interior da exaltação narrativa desta denúncia, existe o magistral brilho da fotografia (Gianni Di Venanzo) e uma inesquecível beleza cenográfica.

 

jef, novembro 2023

«As Mãos Sobre a Cidade» (Le mani sulla città) de Francesco Rosi. Com Rod Steiger, Salvo Randone, Guido Alberti, Angelo D'Alessandro, Carlo Fermariello, Marcello Cannavale, Dante Di Pinto, Alberto Conocchia, Terenzio Cordova, Gaetano Grimaldi Filioli, Vincenzo Metafora, Dany París. Argumento: Francesco Rosi, Raffaele La Capria, Enzo Provenzale e Enzo Forcella. Produção: Lionello Santi. Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Piero Piccioni. Itália, 1963, Preto e Branco, 101 min.