terça-feira, 23 de maio de 2023

Sobre o livro «Um Circo Que Passa» de Patrick Modiano. Dom Quixote, 2014. Tradução de Ana Cristina Costa.










A Paris luminosa dos amantes e dos pintores de boina ao lado na Place du Tertre talvez seja uma alegoria romântica para consumo turístico. Antes de mais existe a cidade dos segredos, da perseguição, dos confrontos. Uma Paris suspeita e inquieta, a mover-se em silêncio mas sempre a conviver com essa aura vinda da luminosidade dos cafés e das artes. Assim foi no tempo da Comuna, de Bismark e do impressionismo. Assim foi no Maio de 68 e da Nouvelle Vague. Assim terá sido ainda, um pouco mais tarde, com os confrontos entre os grupos rivais vindos do trotskismo e do maoismo, relatados em «Tigre de Papel» por Olivier Rolin (Asa, 2002). Sim, Paris sempre foi uma cidade romântica, sempre foi uma cidade violenta e sob vigilância. Principalmente durante e após a Grande Guerra.

Patrick Modiano lança-nos assim e de imediato para o meio de dois interrogatórios policiais que nunca iremos conhecer o motivo mas que irão unir na história das duas personagens principais: Lucien, de dezoito anos, e Gisèle, de vinte e um. Estes não serão os seus verdadeiros nomes, Encontram-se dentro da cidade sem progenitores, defensores, sem rede. Dizem-se irmãos. Devem esconder tudo um do outro porque é o modo de melhor se protegerem de quem os vigia, defendendo secretamente um amor que não pode ser explícito, um amor iniciático. Existe um cão que os acarinha. Ele lê Às Almas Sensíveis de Stendhal. Ela carrega duas malas pesadas. Pretendem fugir para Roma…

Patrick Modiano não esbanja os advérbios de modo ou outras partículas adjectivantes, trata Paris como um roteiro de viagem célere, conhecemos-lhe as esquinas, as ruas, os cafés, o reflexo luminoso dos bateaus-mouche nas paredes ao longo do Sena. Temos de correr sob o perigo e a ansiedade, mas também atrás de um futuro sonhado, livre de amarras e da suspeição do passado e de todos os perseguidores.

Existe no livro um clima de infância desperdiçada que me faz lembrar um outro livro magnífico: «A Luz da Guerra» de Michael Ondaatje (Relógio D’Água, 2018). Lembro-me ainda de George Simenon e de «Bando à Parte» de Jean-Luc Godard (1964).

Os livros são mesmo como as cerejas!


jef, maio 2023

sábado, 20 de maio de 2023

Sobre o filme «Viver Mal» de João Canijo, 2023







Neste filme, Piedade (e a sua Alma, a cadelinha) surge em voz off, ou reflectida nos vidros, ou à distância. Ela compõe ainda a única réstia de alívio dramático dos dois filmes, por oposição quase humorística, ao expor aos clientes a melhor escolha de vinho proposta para cada refeição, secundada por Raquel (Cleia Almeida) que dita as sugestões gastronómicas da chefe, Ângela (Vera Barreto).

Os três capítulos do filme com os títulos retirados das peças de Strindberg nas quais são livremente baseados, deixam as fatídicas qualidades de mãe sob o tenso mas ocioso cenário de lazer, quase fim-de-estação, no hotel de Ofir, por oposição ao incessante trabalho daquela unidade que é o sustento do filme «Mal Viver».

Revisitamos os reflexos da história de Piedade, mas igualmente as sombras e as vozes das outras duas histórias, num complexíssimo mas deslumbrante trabalho de jogos de espelhos, de escuta de portas, de janelas indiscretas. Ao contrário, de «Mal Viver», o espectador não tem tempo de demorar-se sobre os tão especiais planos arquitetónicos e fotográficos. Devemos seguir rápido a fúria obsessiva e possessiva de Judite (Beatriz Batarda) sobre a vida e o futuro de Júlia (Leonor Vasconcelos); ou a demencial anulação de Graça (Lia Carvalho) perante a estratégia familiar e económica de sua mãe, Elisa (Leonor Silveira); ou a subjugação de Jaime (Nuno Lopes) face ao domínio de sua mãe que, pelos seus telefonemas, vamos sabendo a história do seu melhor amigo, Vitorino.

Aliás, o diálogo, construído durante os longos meses da pandemia em sistemático conluio com as actrizes, é talvez um dos pontos mais requintados do filme. (Li ainda que este teve a colaboração do grande Rui Cardoso Martins). Um trabalho extraordinário, pois todas as diversas e profundas tramas emocionais do filme desenvolvem-se através de diálogos onde é raro, senão mesmo inexistente, um vocábulo mais difícil retirado filosoficamente do dicionário. Afinal, o poder definhador de uma mãe pode ser transmitido pela pronúncia do mais banal vocábulo.

Uma obra magistral que coloca João Canijo como um dos grandes realizadores das mulheres, juntamente com Ingmar Bergman, George Cukor, Michelangelo Antonioni ou Woddy Allen.

Duas obras-primas que, afinal, são apenas uma e o seu reflexo.


jef, maio 2023

«Viver Mal» de João Canijo. Com Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Vera Barreto, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos. Argumento: João Canijo segundo três peças de August Strindberg (“Brincar com o Fogo”, “O Pelicano” e “Amor de Mãe”). Produção: Pedro Borges, François d'Artemare. Fotografia: Leonor Teles. Som: Tiago Raposinho. Guarda-roupa: Nádia Santos Henriques. Portugal, França, 2023, Cores, 124 min.

Sobre o filme «Mal Viver» de João Canijo, 2023








Como se escreve (pensa) sobre um filme que, afinal, são dois que, afinal, é apenas um?

Contudo, distintos.

Através de um magistral trabalho de sapa que os liga pelo diálogo de um dos filmes que aparece como reflexo reflectido e cruzado em voz off no outro (Tiago Raposinho). Um trabalho magnífico de anotação (quem foi?); de gestos, olhares e silêncios; de guarda-roupa (Nádia Santos Henriques), acção de “janela indiscreta” que provoca a penetração das três histórias sequenciais de «Viver Mal» na história de Piedade que, como reflexo fotográfico (Leonor Teles), a vai definindo e até algumas vezes provocando.

Em «Mal Viver» o realizador dá-nos tempo de olhar e consagrar uma arquitectura parada, suspensa, diabolicamente suspensa, na violência dos silêncios que vão ostentando em cascata a oprimida repulsa de ser mãe.

E esse é o ponto vital deste filme. É a demonstração de que a maternidade também acarreta o obediente obrigação de ser mãe, que lhe é conferido pela sociedade, mas que nunca olha para o facto de que, ser mãe, é igualmente, o desconsolo da solidão, o sofrimento doloroso de dar à luz uma espécie de órgão vital que, logo após o nascimento e de tudo exigir, partirá mais tarde para a indiferença, senão para a hostilidade e confrontação violenta de quem lhe ofereceu a aquosa vida amniótica.

Piedade (Anabela Moreira) é o centro da impossibilidade maternal. É a consequência e a causa de uma rede genealógica de egocentrismo possessivo e ciumento. É a não-mãe. (Todas as  outras o são também). Ela que concentra o poder de todo o mal, como aquela árvore doente deixada na floresta para que seja ela o pasto de insectos xilófagos e fungos predadores.

Piedade é o seu nome para que o espectador lhe renda homenagem como a uma santa martirizada. A sua Alma é a cadelinha que a protege da turba e que todos podem ostensivamente e verbalmente odiar. Conhecer-lhe-emos o seu fim?

Este filme demostra que nem sempre é possível santificar a palavra mãe e que este vocábulo acarreta desde o início o princípio do inelutável fim.

«Mal Viver», um dos painéis de um retábulo duplo que ficará para a história do cinema.


jef, maio 2023

«Mal Viver» de João Canijo. Com Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Vera Barreto, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos. Argumento: João Canijo. Produção: Pedro Borges, François d'Artemare. Fotografia: Leonor Teles. Som: Tiago Raposinho. Guarda-roupa: Nádia Santos Henriques. Portugal, França, 2023, Cores, 127 min.

 


quinta-feira, 18 de maio de 2023

Sobre o livro «O Homem Ilustrado» de Ray Bradbury. Cavalo de Ferro, 2022 (1951). Tradução de Paulo Tavares.










Ray Bradbury não é propriamente um cronista do futuro. Ele move-se no seu-nosso presente-passado com a alegria e a consciência de quem intui que a imaginação, o humor, a tolerância, a melancolia, o medo ou o sarcasmo são as fórmulas da humanidade onde se deve apoiar para poder escrever, escrever, escrever e não morrer. Tal como o empregado de mesa parisiense Laurent lhe explicou que dançava, dançava, dançava pela noite fora e não morria. A explicação é dada por Ray Bradbury no início destes contos maravilhosos.

Há uma sensação de humana vitalidade nas narrativas, uma quase declaração apologética sobre a política, a sociedade, a tecnologia, a família ou o amor. É aqui que talvez se afaste da imaginação frenética de Júlio Verne ou Edgar Allan Poe. A sua, talvez ainda mais frenética e delirante, derive de uma generosa capacidade de olhar o interior de cada uma das pessoas (à John Streinbeck). Nesse exercício, o mundo cenográfico de feiras de aberrações, circos, galáxias, sistemas planetários, foguetões, comandos à distância e inteligência artificial transforma a fantasia num certo romantismo quase “neo-realista” ou "para-realista".

Como resumo ou epígrafe, existe no livro uma frase que, ao referir-se à relação dos adultos com o mundo infantil, poderá também definir a vocação literária de Ray Bradbury.

«A civilização adulta passava e voltava a passar pelas crianças atarefadas, invejosa daquela energia furiosa e selvagem, tolerantemente divertida com a sua desenvoltura, desejosa de se juntar a elas.»

(só que o conto não acaba lá muito bem…)

 

jef, abril 2023

terça-feira, 16 de maio de 2023

Sobre o filme «Têm de Vir Vê-la» de Jonás Trueba, 2022



 


























Jonás Trueba parece rejeitar a inevitável comparação do seu filme com os de Éric Rohmer. Compreensível a comparação, bem como a sua rejeição. Também neste, as personagens vogam num mundo sem sistema, apenas levados por uma história sem aparente importância, entre o camião do lixo que está a chegar e o engano numa estação de comboios, pelas palavras de um livro, por um dia sem trabalho a passear no campo dos arredores de Madrid. Ao espectador é-lhe oferecido de bandeja o tempo para ouvir a banda sonora tocada por Chano Domínguez, Bill Frisell ou Bill Callahan enquanto contempla os olhares, ora velados ora cristalinos, dos dois casais que se encontram, finalmente, num qualquer dia durante a pandemia. É nesses olhares que reside toca a história do filme.

A grande diferença entre os dois realizadores está no modo enciclopédico com que o francês filma, por ordem e método, expondo directamente o final como tese definitiva, e o subjectivo elo cinematográfico de Trueba que nunca conta a história por inteiro, deixando a infelicidade ou a desconstrução da vida comum nos interstícios de um suave almoço de borrego assado ou no jogo a pares de pingue-pongue. Ou na hipotética análise de um torço de Apolo cuja perfeição estética e dialogante reside exactamente na ausência do rosto e dos membros.

Se Rohmer faz tese nos seus magníficos filmes, Trueba apenas lança a brilhante hipótese num possível sorriso, numa provável melancolia, na dúvida terna de um improvável recomeço. Rohmer surge com super-narrador. Trueba, como intra-observador.

Já agora, lembrei-me ainda, ao sair do cinema, dos filmes incompletos e musicais de Kelly Reichardt


jef, fevereiro 2023

«Têm de Vir Vê-la» (Tenéis que venir a verla) de Jonás Trueba. Com Itsaso Arana, Francesco Carril, Irene Escolar, Vito Sanz, Chano Domínguez, Jonás Trueba. Argumento: Jonás Trueba. Produção: Javier Lafuente e Jonás Trueba. Fotografia: Santiago Racaj. Música: Chano Domínguez, Bill Frisell, Bill Callahan. Espanha, 2022, Cores, 64 min.

 

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Sobre o filme «Tenho Sonhos Eléctricos» de Valentina Maurel, 2022
















Um filme de pormenores, de intimidade, de cenas sincopadas como, em memória, sempre nos surge aquela zona cinzenta e híbrida, iniciática, da passagem da adolescência para a vida adulta. O acesso doloroso à realidade adulta e o confronto bruto com o sacrifício.

São José, Costa Rica. As duas irmãs estarão de férias. Os pais, a divorciar-se. A mãe (Vivian Rodríguez), ex-balarina, muda-se para uma casa melhor por conta de uma herança recebida. O gato urina pela casa, desaustinado com a mudança. A irmã mais nova urina-se quando vê os pais zangados. Eva (Daniela Marin Navarro) odeia a mãe e deseja ir viver com o pai (Reinaldo Amien Guttierez), tradutor, poeta, artista, mas que permanece em desequilíbrio directo entre o afecto, a timidez e a mais pura violência. Numa sessão de leitura de poesia, este declama um poema seu que começa “Tenho sonhos eléctricos” e que parece falar do seu próprio pai.

Um belo poema que só ouviremos na integra bem perto do final, quando percebemos, afinal, que todo o filme não descambará numa torpe tragédia de sangue, faca e alguidar, e assistimos a uma das mais belas cenas vistas no cinema recente: a troca de risos contidos mas cúmplices e de uma intimidade sublime entre pai e filha, apartados que vão já em dois carros diferentes da polícia.

Um filme social, intenso e realista que, para além de tudo o mais, contém no genérico final a maravilhosa canção de Françoise Hardy “Le Premier Bonheur du Jour” (1963) na versão suprema dos Mutantes (e da nossa única querida Rita Lee!), editada no seu primeiro álbum de 1968.


jef, maio 2023

«Tenho Sonhos Eléctricos» (Tengo sueños electricos) de Valentina Maurel. Com Daniela Marin Navarro, Reinaldo Amien Guttierez, Vivian Rodríguez, Adriana Castro Garcia, José Pablo Segreda Johanning, Maité Ortega Floris, Jennifer Fernández. Argumento: Valentina Maurel. Produção: Grégoire Debailly, Benoit Roland. Fotografia: Nicolás Wong Diaz. Bélgica / França / Costa Rica, 2022, Cores, 102 min.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Sobre o filme «O Rei Perdido» de Stephen Frears, 2022



















Este, seguramente, não é um dos bons filmes de Stephen Frears. Se calhar, até nem será de todo um bom filme, totalmente obliterado pela figura da historiadora amadora Philippa Langley (Sally Hawkins), mal vestida, meio-aparvalhada, híper-activa, entre a depressão e a obsessão, sofrendo de cansaço extremo, que adopta a figura Ricardo III (1452-1485) (Harry Lloyd) como filho adoptivo e que lhe aparece (vezes demais) na sua frente, em corpo, espírito, sonho ou fantasma. Bem mais sustentada e credível é, sem dúvida, a figura do seu marido-ex-marido John Langley (Steve Coogan).

Contudo, e a descrédito da Universidade de Leicester (e dos seus hipócritas financiamentos), para lá de todas as entidades oficiais descrentes, Philippa, teimosa que nem um burro, leva a sua avante e consegue desenterrar o corpo do rei maldito para que este tenha umas exéquias dignas, ostentando as armas da sua casa real.

Apesar do filme insistir numa série de gags apalermados, Stephen Frears tem um impagável dom cinematográfico e uma vocação irreprimível para denunciar injustiças e vai buscar o livro que a própria Philippa Langley escreveu para expor a sua obsessão vencedora, contra tudo, contra todos, contra o Reino de Sua Majestade, contra a peça de William Shakespeare, obviamente pago para dizer mal de Ricardo III, o último da dinastia Plantageneta, morto na Batalha de Bosworth, dito usurpador do trono aos Tudor, e por isso mal enterrado e perdido (até 2012) numa desaparecida abadia em Leicester. Enfim, a complicação da Guerra das Rosas!

Um filme que vale a pena ver apenas para constatar que a verdade e o teatro, a realidade e o cinema, são coisas que valem muito mais que certos tiques universitários e outros tantos truques monárquicos.

Viva a República!


jef, maio 2023

«O Rei Perdido» (The Lost King) de Stephen Frears. Com Steve Coogan, Sally Hawkins, Shonagh Price, Helen Katamba, Lewis Macleod, Jenny Douglas, Benjamin Scanlan, Adam Robb, Harry Lloyd, Robert Jack, Sarah MacGillivray, John-Paul Hurley, James Rottger, Jessica Hardwick, Bruce Fummey. Argumento: Steve Coogan, Jeff Pope, Michael Jones, Philippa Langley baseado no livro “A Procura de Ricardo III”. Produção: Steve Coogan, Christine Langan, Dan Winch, Philippa Langley. Fotografia: Zac Nicholson. Música: Alexandre Desplat. Guarda-roupa: Rhona Russell. Grã-Bretanha, 2022, Cores, 108 min.