Neste
filme, Piedade (e a sua Alma, a cadelinha) surge em voz off, ou reflectida nos vidros, ou à distância. Ela compõe ainda a
única réstia de alívio dramático dos dois filmes, por oposição quase
humorística, ao expor aos clientes a melhor escolha de vinho proposta para cada
refeição, secundada por Raquel (Cleia Almeida) que dita as sugestões
gastronómicas da chefe, Ângela (Vera Barreto).
Os três capítulos do filme com os títulos retirados das peças de Strindberg nas
quais são livremente baseados, deixam as fatídicas qualidades de mãe sob o
tenso mas ocioso cenário de lazer, quase fim-de-estação, no hotel de Ofir, por oposição ao incessante trabalho daquela unidade que é o
sustento do filme «Mal Viver».
Revisitamos
os reflexos da história de Piedade, mas igualmente as sombras e as vozes das
outras duas histórias, num complexíssimo mas deslumbrante trabalho de jogos de
espelhos, de escuta de portas, de janelas indiscretas. Ao contrário, de «Mal
Viver», o espectador não tem tempo de demorar-se sobre os tão especiais planos arquitetónicos
e fotográficos. Devemos seguir rápido a fúria obsessiva e possessiva
de Judite (Beatriz Batarda) sobre a vida e o futuro de Júlia (Leonor
Vasconcelos); ou a demencial anulação de Graça (Lia Carvalho) perante a
estratégia familiar e económica de sua mãe, Elisa (Leonor Silveira); ou a subjugação
de Jaime (Nuno Lopes) face ao domínio de sua mãe que, pelos seus telefonemas,
vamos sabendo a história do seu melhor amigo, Vitorino.
Aliás,
o diálogo, construído durante os longos meses da pandemia em sistemático conluio
com as actrizes, é talvez um dos pontos mais requintados do filme. (Li ainda
que este teve a colaboração do grande Rui Cardoso Martins). Um trabalho extraordinário,
pois todas as diversas e profundas tramas emocionais do filme desenvolvem-se através
de diálogos onde é raro, senão mesmo inexistente, um vocábulo mais difícil retirado
filosoficamente do dicionário. Afinal, o poder definhador de uma mãe pode ser
transmitido pela pronúncia do mais banal vocábulo.
Uma
obra magistral que coloca João Canijo como um dos grandes realizadores das
mulheres, juntamente com Ingmar Bergman, George Cukor, Michelangelo Antonioni
ou Woddy Allen.
Duas
obras-primas que, afinal, são apenas uma e o seu reflexo.
jef,
maio 2023
«Viver
Mal» de João Canijo. Com Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia
Almeida, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Vera Barreto, Rafael
Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos.
Argumento: João Canijo segundo três peças de August Strindberg (“Brincar com o
Fogo”, “O Pelicano” e “Amor de Mãe”). Produção: Pedro Borges,
François d'Artemare. Fotografia: Leonor Teles. Som: Tiago Raposinho. Guarda-roupa:
Nádia Santos Henriques. Portugal, França, 2023, Cores, 124 min.
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