sábado, 20 de maio de 2023

Sobre o filme «Viver Mal» de João Canijo, 2023







Neste filme, Piedade (e a sua Alma, a cadelinha) surge em voz off, ou reflectida nos vidros, ou à distância. Ela compõe ainda a única réstia de alívio dramático dos dois filmes, por oposição quase humorística, ao expor aos clientes a melhor escolha de vinho proposta para cada refeição, secundada por Raquel (Cleia Almeida) que dita as sugestões gastronómicas da chefe, Ângela (Vera Barreto).

Os três capítulos do filme com os títulos retirados das peças de Strindberg nas quais são livremente baseados, deixam as fatídicas qualidades de mãe sob o tenso mas ocioso cenário de lazer, quase fim-de-estação, no hotel de Ofir, por oposição ao incessante trabalho daquela unidade que é o sustento do filme «Mal Viver».

Revisitamos os reflexos da história de Piedade, mas igualmente as sombras e as vozes das outras duas histórias, num complexíssimo mas deslumbrante trabalho de jogos de espelhos, de escuta de portas, de janelas indiscretas. Ao contrário, de «Mal Viver», o espectador não tem tempo de demorar-se sobre os tão especiais planos arquitetónicos e fotográficos. Devemos seguir rápido a fúria obsessiva e possessiva de Judite (Beatriz Batarda) sobre a vida e o futuro de Júlia (Leonor Vasconcelos); ou a demencial anulação de Graça (Lia Carvalho) perante a estratégia familiar e económica de sua mãe, Elisa (Leonor Silveira); ou a subjugação de Jaime (Nuno Lopes) face ao domínio de sua mãe que, pelos seus telefonemas, vamos sabendo a história do seu melhor amigo, Vitorino.

Aliás, o diálogo, construído durante os longos meses da pandemia em sistemático conluio com as actrizes, é talvez um dos pontos mais requintados do filme. (Li ainda que este teve a colaboração do grande Rui Cardoso Martins). Um trabalho extraordinário, pois todas as diversas e profundas tramas emocionais do filme desenvolvem-se através de diálogos onde é raro, senão mesmo inexistente, um vocábulo mais difícil retirado filosoficamente do dicionário. Afinal, o poder definhador de uma mãe pode ser transmitido pela pronúncia do mais banal vocábulo.

Uma obra magistral que coloca João Canijo como um dos grandes realizadores das mulheres, juntamente com Ingmar Bergman, George Cukor, Michelangelo Antonioni ou Woddy Allen.

Duas obras-primas que, afinal, são apenas uma e o seu reflexo.


jef, maio 2023

«Viver Mal» de João Canijo. Com Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Vera Barreto, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos. Argumento: João Canijo segundo três peças de August Strindberg (“Brincar com o Fogo”, “O Pelicano” e “Amor de Mãe”). Produção: Pedro Borges, François d'Artemare. Fotografia: Leonor Teles. Som: Tiago Raposinho. Guarda-roupa: Nádia Santos Henriques. Portugal, França, 2023, Cores, 124 min.

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