Um filme de pormenores, de intimidade, de cenas sincopadas como, em memória, sempre
nos surge aquela zona cinzenta e híbrida, iniciática, da passagem da
adolescência para a vida adulta. O acesso doloroso à realidade adulta e o confronto bruto com o
sacrifício.
São
José, Costa Rica. As duas irmãs estarão de férias. Os pais, a divorciar-se. A
mãe (Vivian Rodríguez), ex-balarina, muda-se para uma casa melhor por conta de
uma herança recebida. O gato urina pela casa, desaustinado com a mudança. A
irmã mais nova urina-se quando vê os pais zangados. Eva (Daniela Marin Navarro)
odeia a mãe e deseja ir viver com o pai (Reinaldo Amien Guttierez), tradutor,
poeta, artista, mas que permanece em desequilíbrio directo entre o afecto, a
timidez e a mais pura violência. Numa sessão de leitura de poesia, este declama
um poema seu que começa “Tenho sonhos eléctricos” e que parece falar do seu
próprio pai.
Um
belo poema que só ouviremos na integra bem perto do final, quando percebemos,
afinal, que todo o filme não descambará numa torpe tragédia de sangue, faca e
alguidar, e assistimos a uma das mais belas cenas vistas no cinema recente: a
troca de risos contidos mas cúmplices e de uma intimidade sublime entre pai e
filha, apartados que vão já em dois carros diferentes da polícia.
Um
filme social, intenso e realista que, para além de tudo o mais, contém no genérico
final a maravilhosa canção de Françoise Hardy “Le Premier Bonheur du Jour” (1963)
na versão suprema dos Mutantes (e da nossa única querida Rita Lee!), editada no
seu primeiro álbum de 1968.
jef,
maio 2023
«Tenho
Sonhos Eléctricos» (Tengo sueños electricos) de Valentina Maurel. Com Daniela
Marin Navarro, Reinaldo Amien Guttierez, Vivian Rodríguez, Adriana Castro
Garcia, José Pablo Segreda Johanning, Maité Ortega Floris, Jennifer Fernández.
Argumento: Valentina Maurel. Produção: Grégoire Debailly, Benoit
Roland. Fotografia: Nicolás Wong Diaz. Bélgica / França / Costa Rica, 2022, Cores,
102 min.
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