sábado, 20 de maio de 2023

Sobre o filme «Mal Viver» de João Canijo, 2023








Como se escreve (pensa) sobre um filme que, afinal, são dois que, afinal, é apenas um?

Contudo, distintos.

Através de um magistral trabalho de sapa que os liga pelo diálogo de um dos filmes que aparece como reflexo reflectido e cruzado em voz off no outro (Tiago Raposinho). Um trabalho magnífico de anotação (quem foi?); de gestos, olhares e silêncios; de guarda-roupa (Nádia Santos Henriques), acção de “janela indiscreta” que provoca a penetração das três histórias sequenciais de «Viver Mal» na história de Piedade que, como reflexo fotográfico (Leonor Teles), a vai definindo e até algumas vezes provocando.

Em «Mal Viver» o realizador dá-nos tempo de olhar e consagrar uma arquitectura parada, suspensa, diabolicamente suspensa, na violência dos silêncios que vão ostentando em cascata a oprimida repulsa de ser mãe.

E esse é o ponto vital deste filme. É a demonstração de que a maternidade também acarreta o obediente obrigação de ser mãe, que lhe é conferido pela sociedade, mas que nunca olha para o facto de que, ser mãe, é igualmente, o desconsolo da solidão, o sofrimento doloroso de dar à luz uma espécie de órgão vital que, logo após o nascimento e de tudo exigir, partirá mais tarde para a indiferença, senão para a hostilidade e confrontação violenta de quem lhe ofereceu a aquosa vida amniótica.

Piedade (Anabela Moreira) é o centro da impossibilidade maternal. É a consequência e a causa de uma rede genealógica de egocentrismo possessivo e ciumento. É a não-mãe. (Todas as  outras o são também). Ela que concentra o poder de todo o mal, como aquela árvore doente deixada na floresta para que seja ela o pasto de insectos xilófagos e fungos predadores.

Piedade é o seu nome para que o espectador lhe renda homenagem como a uma santa martirizada. A sua Alma é a cadelinha que a protege da turba e que todos podem ostensivamente e verbalmente odiar. Conhecer-lhe-emos o seu fim?

Este filme demostra que nem sempre é possível santificar a palavra mãe e que este vocábulo acarreta desde o início o princípio do inelutável fim.

«Mal Viver», um dos painéis de um retábulo duplo que ficará para a história do cinema.


jef, maio 2023

«Mal Viver» de João Canijo. Com Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Vera Barreto, Rafael Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos. Argumento: João Canijo. Produção: Pedro Borges, François d'Artemare. Fotografia: Leonor Teles. Som: Tiago Raposinho. Guarda-roupa: Nádia Santos Henriques. Portugal, França, 2023, Cores, 127 min.

 


Sem comentários:

Enviar um comentário