Como
se escreve (pensa) sobre um filme que, afinal, são dois que, afinal, é apenas
um?
Contudo, distintos.
Através de um magistral trabalho de sapa que os liga pelo diálogo de um dos filmes
que aparece como reflexo reflectido e cruzado em voz off no outro (Tiago Raposinho).
Um trabalho magnífico de anotação (quem foi?); de gestos, olhares e silêncios; de guarda-roupa
(Nádia Santos Henriques), acção de “janela indiscreta” que provoca
a penetração das três histórias sequenciais de «Viver Mal» na história de
Piedade que, como reflexo fotográfico (Leonor Teles), a vai definindo e até
algumas vezes provocando.
Em
«Mal Viver» o realizador dá-nos tempo de olhar e consagrar uma arquitectura parada, suspensa, diabolicamente suspensa, na violência dos
silêncios que vão ostentando em cascata a oprimida repulsa de ser mãe.
E
esse é o ponto vital deste filme. É a demonstração de que a maternidade também
acarreta o obediente obrigação de ser mãe, que lhe é conferido pela sociedade, mas que
nunca olha para o facto de que, ser mãe, é igualmente, o desconsolo da solidão,
o sofrimento doloroso de dar à luz uma espécie de órgão vital que, logo após o
nascimento e de tudo exigir, partirá mais tarde para a indiferença, senão para
a hostilidade e confrontação violenta de quem lhe ofereceu a aquosa vida
amniótica.
Piedade
(Anabela Moreira) é o centro da impossibilidade maternal. É a consequência e a
causa de uma rede genealógica de egocentrismo possessivo e ciumento. É a
não-mãe. (Todas as outras o são também). Ela que concentra o poder de todo o mal, como aquela árvore doente
deixada na floresta para que seja ela o pasto de insectos xilófagos e fungos
predadores.
Piedade
é o seu nome para que o espectador lhe renda homenagem como a uma santa
martirizada. A sua Alma é a cadelinha que a protege da turba e que todos podem
ostensivamente e verbalmente odiar. Conhecer-lhe-emos o seu fim?
Este
filme demostra que nem sempre é possível santificar a palavra mãe e que este
vocábulo acarreta desde o início o princípio do inelutável fim.
«Mal Viver», um dos painéis de um retábulo duplo que ficará para a história do cinema.
jef,
maio 2023
«Mal Viver» de João Canijo. Com Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia
Almeida, Nuno Lopes, Filipa Areosa, Leonor Silveira, Vera Barreto, Rafael
Morais, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Carolina Amaral, Leonor Vasconcelos.
Argumento: João Canijo. Produção: Pedro Borges, François
d'Artemare. Fotografia: Leonor Teles. Som: Tiago Raposinho. Guarda-roupa: Nádia
Santos Henriques. Portugal, França, 2023, Cores, 127 min.
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