A
Paris luminosa dos amantes e dos pintores de boina ao lado na Place du Tertre talvez
seja uma alegoria romântica para consumo turístico. Antes de mais existe a
cidade dos segredos, da perseguição, dos confrontos. Uma Paris suspeita e inquieta,
a mover-se em silêncio mas sempre a conviver com essa aura vinda da luminosidade dos
cafés e das artes. Assim foi no tempo da Comuna, de Bismark e do
impressionismo. Assim foi no Maio de 68 e da Nouvelle Vague. Assim terá sido
ainda, um pouco mais tarde, com os confrontos entre os grupos rivais vindos do
trotskismo e do maoismo, relatados em «Tigre de Papel» por Olivier Rolin (Asa, 2002).
Sim, Paris sempre foi uma cidade romântica, sempre foi uma cidade violenta e sob
vigilância. Principalmente durante e após a Grande Guerra.
Patrick
Modiano lança-nos assim e de imediato para o meio de dois interrogatórios
policiais que nunca iremos conhecer o motivo mas que irão unir na história das
duas personagens principais: Lucien, de dezoito anos, e Gisèle, de vinte e um. Estes
não serão os seus verdadeiros nomes, Encontram-se dentro da cidade sem
progenitores, defensores, sem rede. Dizem-se irmãos. Devem esconder tudo um do
outro porque é o modo de melhor se protegerem de quem os vigia, defendendo
secretamente um amor que não pode ser explícito, um amor iniciático. Existe um
cão que os acarinha. Ele lê Às Almas
Sensíveis de Stendhal. Ela carrega duas malas pesadas. Pretendem fugir para
Roma…
Patrick
Modiano não esbanja os advérbios de modo ou outras partículas adjectivantes,
trata Paris como um roteiro de viagem célere, conhecemos-lhe as esquinas, as
ruas, os cafés, o reflexo luminoso dos bateaus-mouche nas paredes ao longo do
Sena. Temos de correr sob o perigo e a ansiedade, mas também atrás de um futuro
sonhado, livre de amarras e da suspeição do passado e de todos os
perseguidores.
Existe
no livro um clima de infância desperdiçada que me faz lembrar um outro livro
magnífico: «A Luz da Guerra» de Michael Ondaatje (Relógio D’Água, 2018). Lembro-me
ainda de George Simenon e de «Bando à Parte» de Jean-Luc Godard (1964).
Os
livros são mesmo como as cerejas!
jef,
maio 2023
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