quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Abrigo









diz-me já
não pararei
onde busco
por que procuro

fala
vou já para aí
não espero
porque busco
e aguardo
o que me dirás.

conta lá
já aqui estou
como vês

busca-me
que eu te procuro
dá-me a tua mão
ouve os meus dedos

diz-me
eu dir-te-ei
a espera por exílio
a busca como abrigo
o encontro como causa


jef, agosto 2017

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Sobre o filme «O Guarda-Costas e o Assassino» de Patrick Hughes, 2017















Hard Silly Season
Imagine-se que a Warner Bros vende os direitos do Coiote e do Bip-Bip à Disney. (Não! Não estou a falar do intocável «Quem Tramou Roger Rabbit» de Robert Zemeckis, 1988, com os extraordinários Bob Hoskins e Jessica Rabbit.) Falo em colocar um filme de pancadaria e acção nas mãos do lacrimejante Bambi e este dentro do humor à «Scary Movie». Contudo, o Coiote nunca ficaria soterrado por mais rochedos que lhe caíssem em cima. São toneladas de balas disparadas; centenas de automóveis passados a ferro; murros que estalam como facadas; facas que saem dos músculos sem deixar marca. Apenas, um ligeiro coxear. Amsterdão, Haia e Manchester, desfeitas a lança-morteiro; sangue-vivo-Viarco que salta do corpo de um exército maléfico de bielorussos que pensam estar nos Balcãs ou em Alepo; um sem fim de videoclipes ao nível dos isrealitas «Gelado de Limão I, II, III», onde as declarações de amor são espontaneamente interrompidas pela violência dos mais viciosos e corruptos funcionários da Interpol!

Por que será que Joaquim de Almeida tem de ser tão canastrão e estar tão mal vestido?
Como consegue Ryan Reynolds manter a cara de parvo durante quase duas horas?
Estarão Samuel L. Jackson e Gary Oldman assim tão necessitados de dinheiro?
Por que é que a belíssima Salma Hayek faz um papel tão estúpido?

Enfim, felizmente a silly season cinematográfica continua a ser o que era.

jef, agosto 2017

«O Guarda-Costas e o Assassino» (The Hitman's Bodyguard) de Patrick Hughes. Com Ryan Reynolds, Samuel L. Jackson, Salma Hayek, Gary Oldman, Joaquim de Almeida, Élodie Yung, Richard E. Grant. EUA, 2017, Cores, 118 min.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Sobre o filme «Uma Vida de Cão» de Todd Solondz, 2016















Este filme é uma comédia desagradável sobre loosers, desamparados, desequilibrados. Humor sisudo, cáustico, a pontuar os momentos de tragédia comum a tantos norte-americanos, comuns aos nossos semelhantes. Porém, não deixa de ser desagradável, quase indesejável lançar, de modo aberto, quase desabrido, o humor negro sobre histórias falhadas. Talvez seja uma questão pessoal, mas constrange o gosto que eu tenho pelo cinema…
Contudo, é o universo permanente de Todd Solondz após «Hapiness» (1998), o seu filme consistente. Um grande filme sobre falhados. Depois, a fórmula esmoreceu, perdeu o fulgor. Tornou-se, simplesmente, desagradável.
E o povo americano continua a ser um grande povo apesar de ter eleito democraticamente Donald Trump (que aguarda com ansiedade a derrota final e a destituição através da intricada teia de senados e senadores… assim o espero…). Talvez Trump venha a ser, ele próprio, um falhado à Todd Solondz. Ficaria bem a passear um cãozinho salsicha vestido de menina, a única personagem simpática do filme.
A América sempre possuiu a melhor autocrítica cinematográfica. Não precisa de lições!
Claro que eu fui ver o filme pela Julie Delpy. Magnífica! E depois por Danny DeVito e as excelentes Greta Gerwig e Ellen Burstyn. Grandes actores que brilham sobre a ausência de futuro e o mundo desagradável de um realizador que amodorrou dentro do próprio léxico.
Mas atenção: o filme tem intervalo para pipocas e coca-cola e até para respirar um pouco e ouvir a boa canção ao estilo western: «The Ballad of Wiener-Dog» (Eric William Morris e Marc Shaiman). Um cão-cowboy. Afinal, nem tudo é sarcasmo serôdio.

jef, agosto 2017


 «Uma Vida de Cão» (Wiener-Dog) de Todd Solondz. Com Greta Gerwig, Keaton Nigel Cooke, Ellen Burstyn,Tracy Letts, Julie Delpy, Danny DeVito, Kieran Culkin, Zosia Mamet, Danny DeVito. EUA, 2016, Cores, 88 min.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Sobre o disco «The Night Is Young» The 2 Bears, Southern Fried Record 2014


















Na realidade, a música não é uma ciência, muito menos a música «de dança» (haverá música impedida teoricamente de fazer dançar?). E a «música de dança» deve ser tudo menos científica, dogmática, académica, conclusiva.

«The Night Is Young» teria tudo para não dar certo: intuitivamente fora de moda, melodicamente antiquada quase infantil quase tola, no género descentrada por sexualmente integradora. Politicamente correcta, socialmente consciente, alegremente amigável. Descaradamente amorosa, divertida, universal. À antiga. À velha Londres.

«Love is lovely / War is ugly»! Nada mais simples.

Na sequência natural do extraordinário álbum de 2012 «Be Strong» (este ainda mais ‘démodé’, temo dizer), The 2 Bears (Joe Goddard, Raf Rundell) permanecem na lateralidade, são ambidestros, desejam o centro da pista.
E como devemos proceder quando nos encontramos no meio da pista de dança?
«The Night Is Young» teria tudo para errar. Porém, acerta.

Let it free your Body & Soul! Move your bones and have fun and conscience!

jef, Outubro 2014

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Bairro












Um bairro que se preze…
um bairro para ser bairro
tem de ter as janelas próximas
os azulejos a reflectir nos azulejos
as vozes
dos gatos e dos canários
a cirandar na corda da roupa da frente
varanda com varanda
sardinha a enjoar e nesga de sol.
Sem a invasão da privacidade
a intimidade desaparece
o rádio do lado cala-se
a palavra dita não é escutada
as pessoas fogem
as casas caem
o bairro desmorona-se.

jef, agosto 2017

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Sobre o filme «Ladrões de Bicicletas» de Vittorio De Sica, 1948.















Ao Domingo chove sempre!
Diz, desanimado, o amigo a Antonio (Lamberto Maggiorani) enquanto o ajuda a procurar partes da sua Fides entre os milhares de bicicletas que se revendem no mercado. Ao filho, Bruno (Enzo Staiola), fica a tarefa de espreitar bombas e campainhas.
O título diz tudo. Antonio precisa da sua bicicleta senão perde o emprego. Nada mais necessário. Nada mais simples. A história é essa. Apenas essa.

Cinema que poderia ser mudo e expressionista. As cenas de multidão apressada circulando numa cidade podre e pobre lembram vagamente as de «Couraçado Potemkine» de Serguei Eisenstein (1925). As cenas de solidão e desespero lembram «O Garoto de Charlot» de Charlie Chaplin (1921). Mas já lá vão os anos 20. Estamos em 1948 e a cidade move-se sobre os escombros socias do pós-guerra. É preciso valer os novos modos de filmar.
E, quase sem orçamento e com enorme esforço do realizador, este filme torna-se símbolo, mito, exemplo, razão e coração, para uma legião de espectadores de um certo neo-realismo! Há que mudar empenhadamente a Arte para que a Sociedade mude!

Mas «Ladrões de Bicicletas», que se inicia com uma pungente ida à loja de penhores para reaver a bicicleta por troca com uma trouxa de lençóis, colocada no topo da impressionante pilha de outros haveres penhorados, afinal e acima de tudo, é um filme sobre a comunhão amorosa de um filho miúdo e determinado e de um pai a circular sem norte no interior do desespero. Quem protege quem? Quem precisa de quem? Não é a mão pequenina que vai no final segurar a mão maior e desistente? A mão que antes bateu mas que depois procura desvairada por um miúdo que poderá ter-se afogado.
E o famoso interregno no desvario, essa cena fora de cena, no restaurante onde só há dinheiro para pão com queijo mas onde há lugar ainda para confidências e sorrisos.
E o imenso conjunto de não actores, quase mascarados quase palhaços, ridículos, divertidos, a envolver de comédia o pânico de António, valorizando-o, circulando circense em torno da tragédia, reinventado o dia seguinte, não será prova fundamental de um expressionismo artístico que faz guindar o filme a um estatuto que há muito escapou do léxico parco e malquisto dos críticos do Neo-Realismo.

«Ladrões de Bicicletas» é um aviso importante. Um aviso de que a Arte é eterna quando preenche esse modo comovente de sublinhar a consciência e sublimar a estética.

«Ladrões de Bicicletas» é um filme exemplar.


jef, agosto 2017

«Ladrões de Bicicletas» (Ladri di biciclette) de Vittorio De Sica. Com Lamberto Maggiorani, Enzo Staiola, Lianella Carell, Giulio Chiari, Vittorio Antonucci, Elena Altieri, Michele Sakara, Fausto Guerzoni, Carlo Jachino. Argumento: Vittorio De Sica e Cesare Zavattini segundo o romance de Luigi Bartolini. Música: Alessandro Cicognini. Fotografia: Carlo Montuori. Produção: Giuseppe Amato e Vittorio De Sica Itália, 1948.

 

Partir


Somos donos de ninguém,
muito menos do tempo.

Quem quiser pode partir,
é livre.
A porta está sempre aberta.

Já o regresso será mais difícil.
Nessa altura, o tempo será outro…
A porta encontrar-se-á
num lugar desconhecido.

O tempo desloca o espaço, as portas
e os restantes meteoros.


jef, agosto 2017

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Sobre o filme «Atomic Blonde - Agente Especial» de David Leitch, 2017


















Esqueçam James Bond! Ignorem Jason Bourne! Pobres homenzinhos!
Eis que o MI6 contrata Lorraine Broughton: a Mulher! Determinada, implacável, fatal! Linda! E tal como nas novelas de espionagem, nos filmes de animação ou na banda desenhada de onde a heroína sai («The Coldest City» de Antony Johnston & Sam Hart), a agente secreta nunca morre por mais porrada que leve ou sofra.
Estamos em Berlim no final de 1989, de um e de outro lado do muro, alguns momentos antes alguns momentos depois do seu derrube.
Entrecruzado por flashbacks, o realizador coloca-nos dentro do interrogatório envidraçado de Atomic Blonde para que os seus dirigentes entendam quem é agente duplo, espião triplo, traidor, russo, alemão, inglês, francês. Claro que não percebem tantas são as reviravoltas do argumento, tanto o Vodka on ice bebido de um trago, tantos os cigarros sorvidos até ao filtro.
Mas Charlize Theron é realmente uma actriz soberba e de uma beleza inesquecível. Se não a esquecemos em «Monstro» (2003) de Patty Jenkins, «Terra Fria» (2005) de Niki Caro ou mesmo em «Mad Max – Estrada da Fúria» (2015) de George Miller, também não a esqueceremos como Lorraine Broughton. Charlize Theron encarna esta agente que maltrata brutamontes de todas as latitudes como encarnou os outros papéis, entregando-lhes o corpo, a alma, o sangue, o cérebro e os músculos. E quanta escatologia existe neste filme de acção…
E temos a paisagem pintada a cinzento brilhante e uma cidade de Berlim em tons de passado mal tratado.
Temos a tela rasgada onde vai passando «Stalker» de Andrei Tarkovky. 
Temos a banda sonora com temas «vintage» da época.
Temos uma cena nas escadas e patamares de um prédio verdadeiramente única.
Temos carros maravilhosos acabando infelizmente muitos deles na sucata.
Temos o guarda-roupa e os adereços.
Mas temos acima de tudo Charlize Theron, a bela.

Viva Charlize Theron!

jef, agosto 2017

Sobre o filme «Atomic Blonde - Agente Especial” de David Leitch, David “Atomic Blonde). Charlize Theron, Sofia Boutella, James McAvoy, John Goodman, Til Schweiger, Eddie Marsan e Toby Jones. EUA, 2017, Cores, 115 min.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Sobre o filme «A Vida de Uma Mulher» de Stéphane Brizé, 2016















Em 2015, de Stéphane Brizé, tinha-nos chegado «A Lei do Mercado», essa composição fechada sobre o individuo que se vê manietado, agredido, pela fúria económica da sociedade. Assim, a mesma sociedade, cento e tal anos antes, vem enclausurar Jeanne (Judith Chemla) em «A Vida de Uma Mulher». O mesmo realismo, a mesma opressão, neste caso, a resignação de uma mulher que tenta a todo o custo preservar a imagem de uma felicidade adolescente que ficou encerrada três décadas antes.

A bela Normandia, a folhagem do belo arvoredo, ficam de fora dos enquadramentos. Estão de volta os planos fechados sobre a figura delicada de Jeanne que se afasta lentamente da suavidade alegre e despreocupada da juventude. O realizador avisa que a história teve um início feliz, em alegres e ensolaradas analepses (os tais flashbacks), mas que o fim será sombrio, insistindo em toldar o futuro com sombrias prolepses (digamos, flashforwards). Avisos estes que se sobrepõem às palavras do romance inicial de Guy de Maupassant.

A criação aristocrática de Jeanne por Judith Chemla pode ser comparada a Vincent Lindon em «A Lei do Mercado», tal o expressionismo corporal dos actores ultrapassando bem o rigor do close-up. Mais nada interessa que o realismo romântico da tristeza ditado pelo inclinar da nuca ou pelo tactear instável dos dedos no tampo de uma mesa.

A beleza do movimento, da textura do tecido, do cravo tocado em fundo quando se ouvem passos, o ladrar dos cães ou o relógio, em primeiro plano, descrevem a deliberada aproximação do espectador aos objectos desejada pelo realizador.

Um bom exercício de estilo, estética e moralidade, será confrontar «A Vida de Uma Mulher» com o mais recente filme «Lady Macbeth» de William Oldroyd (2017).

jef, agosto 2017

Sobre o filme «A Vida de Uma Mulher» (Une Vie) de Stéphane Brizé. Com Judith Chemla, Jean-Pierre Darroussin, Yolande Moreau, Olivier Perrier, Swann Arlaud, Clotilde Hesme, Nina Meurisse, Alain Beigel, Jalil Lespert. Sobre o romance de Guy de Maupassant. Bélgica / França,  2016, Cores, 119 min.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Imersão



Cuidado!
Não meta o pé na banheira!
A água escalda e está muito turva.
Quantos serão os seres vivos que nela espreitam?

Pegajoso! O pensamento anda muito pegajoso, desliza incólume na turbidez clástica do sabão e vai deixando um vinco amarelo na felicidade do esmalte.
O sarro da sobrevivência!
Os pêlos do tédio rodam na acumulação da espera. No ralo escondido é que reside a perspectiva do futuro,
mas o presente fica pela válvula suja que o prende.

Um fastio!


jef, agosto 2017

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Do verbo Procrastinar















Jeremias não conseguia não copiar. Para ele copiar era viver porque tinha consciência de que o que mais gostava era não viver ou, pelo contrário, e que fique bem claro, tinha uma certa vocação para adiar para depois poder melhor copiar a vida. Não lhe interessava a originalidade. Interessava-lhe a perfeição. E adiar era atingi-la!

Para além de copiar, Jeremias gostava muito de coleccionar caricas e o que mais o satisfazia era seleccionar as tampinhas por estados e estilos, cores e origens. Procurava-as no chão, junto à leitaria ou à tasca do bairro. Seriava-las por refrigerante ou cerveja, pelo seu estado de conservação. Gostava de as juntar acima de tudo pelas repetições, admirava-se como elas se copiavam sem copiar. Todas iguais mas diferentes nas imperfeições.

Jeremias tinha na cave 10 estantes. Cada uma com 10 prateleiras. Cada uma com 10 caixas de sapatos, das grandes. Quase cheias de caricas diversas iguais.

Quando as caixas estivessem cheias, passaria a coleccionar as tampinhas de plástico transparente, aquelas parecidas com pequenos chapeuzinhos transparentes que selam as garrafas de 1 litro de mau vinho. Garrafas com estrelinhas pelo gargalo, cobertas no topo por alumínio colorido. Cabiam mesmo bem no interior da carica, davam-lhes estilo, ossatura, peso. E depois ainda podia ir para a rua jogar à carica. Os amigos ficariam cheios de inveja.

Ou, então, instalava na cave mais 1 estante com 10 prateleiras. Pois as 10 caixas de sapatos, das melhores, já ele as tinha guardado.


jef, agosto 2017

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Feelings



«Não raras são as ocasiões em que os sentimentos surgem dentro da cabeça ou debaixo das unhas, bem no centro do sabugo, formas impalpáveis, anjos brancos sem asas, negros andorinhões. Não os tocamos, não os vemos, quase não os sentimos. São objectos que ultrapassam o nosso coração para, rapidamente, se irem instalar no peito de outro alguém. São volúveis e insanos. Apesar de estarem dentro do crânio ou na génese das unhas que terminam os nossos dedos, eles partem para um lugar que não nos pertence, quantas vezes não nos entende e, pior, de que desconhecemos o paradeiro, o endereço, o código de acesso, a palavra passe. Tal e qual as células, as moléculas, os átomos que nos formam e estruturam, nos põem em pé e a andar, mas de que nunca questionamos a existência. Sentimentos inatos, genéticos, oferecidos, não adquiridos. Atingem-nos como balas por circunscrever, disparadas por armas impróprias, apontadas por mãos assassinas, rostos mascarados, provocando crimes imperdoáveis. tanto mais imperdoáveis quando no fim de penetrarem, rasgarem, dilacerarem a carne das unhas, as reviravoltas do crânio, o sabujo sujo do nosso querer, anjos negros, andorinhões invisíveis de tão brancos, o corpo permanece vivo apenas pela perversa alegria de nos ver de pé e a andar, obrigando-nos a constatar quão insuportável é existir sem ter segurado o sentimento que partiu mesmo agora. Para sempre.»

Naquela tarde, sem saber bem porquê, sentara-se num banco diferente do jardim. D. Aurora Figueiredo, a D. Aurita como era conhecida no bairro, sentia-se sentimental, o que a todos os níveis era considerado um pleonasmo. Tal facto incomodava-a, apesar de estar bom tempo, nem calor nem frio, céu azul, os patos mudos a nadar tranquilos no lago, e, poisado no banco a seu lado, um saco de ameixas maduras, fruta da época, compradas a menos de um euro. Um preço mesmo extraordinário!

jef, agosto 2017

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Sobre os discos «Wallflower» (2015) e «Turn Up The Quiet» (2017) de Diana Krall, Verve.













Distante vai o tempo de «Stepping Out». Era o ano de 1993 e o produtor, Jim West. (Ou talvez não irá assim tão distante…)
Longe também a incursão da cantora nos movediços terrenos na bossa nova. Para a cantar só poucos. Muito poucos o conseguem sem atingir aquele tropicalismo vão-de-escada-desesperado / fundo-de-hotel-meloso. Afinal, Diana Krall foi atrás da moda e tropeçou.
Depois veio Elvis Costello.
Depois fui-lhe perdendo o rasto na certeza de que ela se perdia por plateias platinadas, decotes sexagenários, sandálias douradas a condizer com os botões e o pink martini a tilintar na azeitona ou o ginger dry gin a refrescar as noites sem destino. A cabeça a dar-a-dar acompanhando a perna traçada.
Estou a ser mau… (Ou talvez não tanto assim…)
Depois veio Wallflower e eu torci logo o nariz à capa. Fui ver ao dicionário. «Wallflower: pessoa tímida, introvertida, anti-social; planta ruderal que cresce de encontro aos muros ou nos interstícios das paredes.» A medo, comprei-o. Tinha lá dentro duas canções da minha vida. «Alone Again (Naturally)» de Gilbert O'Sullivan e «Sorry Seems to Be the Hardest Word» de Elton John e Bernard Taupin. Não quis gostar do disco mas ele, à segunda rodada, derrotou-me. A tristeza e a memória fizeram o trabalho escavando na alma. Não resisti a tamanha capacidade de realçar a popularidade das composições revelando-lhes todos os genes emocionais sem as transformar com pirosos e inapropriados volteios jazzísticos. Por traz está o produtor David Foster, aturado trabalhador de tudo quanto é Grammy.
Dois anos mais tarde chega «Turn Up The Quiet». 11 standards re-re-regravados ad aeternum ad infinitum. «Night and Day» de Cole Porter ou «Like Someone in Love» de Johnny Burke e James Van Heusen. De novo o softjazz (ou talvez não tanto…). Para mim, o disco teria tudo para correr mal. Mas não correu. De volta à produção de Tommy LiPuma (e da própria cantora) são faixas que vibram na extraordinária base musical reinventando esse álbum único «All For You» de tributo ao trio de Nat King Cole (Impulse!, 1995). Reencontrada a simplicidade, a delicadeza, o respeito e o swing. Ufa!
Quem souber ouvir o que é uma gravação de qualidade que se dedique a separar a estrutura das orquestrações e arranjos sem perder o deleite de um belo álbum de Verão. [John Clapton Jr. Ou Christian McBride –  contrabaixo, Jeff Hamilton – percussão, Antony Wilson ou Marc Ribot – guitarra (…), fazem toda a diferença.]
Só as melhores canções são repetíveis. Logo, basta colocar em modo o disco em modo «repeat» e aumentar o volume da aparelhagem!


jef, abril 2017

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Salvo erro









Salvo o erro que está no centro do dia plano.

Um cardume no mar chão
Um veio de quartzo no interior do xisto
Uma dedada no fotograma
Uma pincelada afinal certeira
Um lírio no deserto
Um balão no céu de maio
Uma gralha na tipografia
Uma palavra difícil
A cor diferente no tubo de ensaio
Uma supernova a eclodir entre um buraco negro e um neutrino
A página que o vento abriu no livro por ler
Um aguaceiro inesperado (sem guarda-chuva)
Uma peripécia no autocarro
Uma conversa despropositada
A citosina trocada no cromossoma
A pena nova na asa de um pisco
A evolução das espécies
A viagem imprevista
Um viaduto desconhecido
O carro por demais apressado
Um bilhete cinema
Um sorriso trocado
E a pele
E o beijo, um quase engano

Salvo erro meu, o centro deseja o dia plano.


jef, 4 de agosto de 2017

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Sobre o filme «Um Dia Inesquecível» de Ettore Scola, 1977




















Se existe um filme que parece definir a palavra «intimidade» é este. Porque a intimidade compreende-se melhor quando concedida ao outro. Uma dádiva recíproca sem contraponto.

Rosmunda, um mainá de voz estridente que Antonietta (Sohia Loren) deixa escapar quando limpa a gaiola, vai poisar no patamar das traseiras onde mora Gabriele (Marcello Mastroianni). Antonietta pede a Gabriele que a ajude a capturá-lo. Antonietta é mulher, mãe e dona de casa assoberbada. Gabriele, locutor de rádio sem trabalho. Assim começa o filme. Ou talvez não…

Estamos em maio de 1938, quando Hitler (secundado pela guarda avançada Hess, Goebbels, Himmler, Ribbentrop…) chega a Roma para uma visita de estado e estadão a Mussolini. O povo fascista rejubila com a festa e a fanfarra, os estandartes e os pendões, e parte engalanado para assistir à apresentação dos ditadores. As imagens são de época e mostram os dirigentes tão aprumados e sorridentes quanto ridículos e presunçosos.

Quase todos partem bem-dispostos e fardados de preto para o estádio e a vigiar o condomínio apenas fica o relato radiofónico do espectáculo que a porteira coloca para que oiçam no exterior.

É nesse espaço vazio, arquitecturalmente extraordinário mas vigiado pelo som da rádio e pelo olhar da porteira, que Antonietta e Gabriele se encontram, revelando a intimidade um ao outro. Mais por privação afectiva que por desejo consubstanciado, as duas personagens vão necessitando cada vez mais um do outro. Necessidade do olhar, das mãos, das histórias, do carinho. O carinho é, certamente, bonito, as histórias menos.

Ettora Scola entrega esta dramaturgia esclarecedora de uma época inábil a dois actores únicos que transformam Antonietta e Gabriele em monumentos de impossibilidade e ternura.
Gabrielle refere ao telefone que rir só se consegue com o outro, enquanto chorar… Antonietta fica resignada a ler à janela «Os Três Mosqueteiros».

Um filme onde também a arquitectura e o guarda-roupa contracenam e dão a deixa perfeita a um filme inesquecível.

jef, agosto 2017


«Um Dia Inesquecível» (Una Giorrnatta Particulare) de Ettore Scola. Com Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Tiziano de Persio, Alessandra Mussolini, Françoise Berd, John Vernon, Patrizia Basso. Itália, 1977, Cores, 103 min.