Ao Domingo chove sempre!
Diz, desanimado, o amigo a Antonio (Lamberto Maggiorani)
enquanto o ajuda a procurar partes da sua Fides entre os milhares de bicicletas
que se revendem no mercado. Ao filho, Bruno (Enzo Staiola), fica a tarefa de
espreitar bombas e campainhas.
O título diz tudo. Antonio precisa da sua bicicleta senão
perde o emprego. Nada mais necessário. Nada mais simples. A história é essa.
Apenas essa.
Cinema que poderia ser mudo e expressionista. As cenas de multidão apressada circulando numa cidade podre e
pobre lembram vagamente as de «Couraçado Potemkine» de Serguei Eisenstein (1925).
As cenas de solidão e desespero lembram «O Garoto de Charlot» de Charlie
Chaplin (1921). Mas já lá vão os anos 20. Estamos em 1948 e a cidade move-se
sobre os escombros socias do pós-guerra. É preciso valer os novos modos de
filmar.
E, quase sem orçamento e com enorme esforço do realizador, este
filme torna-se símbolo, mito, exemplo, razão e coração, para uma legião de
espectadores de um certo neo-realismo! Há que mudar empenhadamente a Arte para que
a Sociedade mude!
Mas «Ladrões de Bicicletas», que se inicia com uma pungente
ida à loja de penhores para reaver a bicicleta por troca com uma trouxa de
lençóis, colocada no topo da impressionante pilha de outros haveres
penhorados, afinal e acima de tudo, é um filme sobre a comunhão amorosa
de um filho miúdo e determinado e de um pai a circular sem norte no interior do
desespero. Quem protege quem? Quem precisa de quem? Não é a mão pequenina que
vai no final segurar a mão maior e desistente? A mão que antes bateu mas que
depois procura desvairada por um miúdo que poderá ter-se afogado.
E o famoso interregno no desvario, essa cena fora de cena,
no restaurante onde só há dinheiro para pão com queijo mas onde há lugar ainda para confidências e sorrisos.
E o imenso conjunto de não actores, quase mascarados quase
palhaços, ridículos, divertidos, a envolver de comédia o pânico de António, valorizando-o, circulando circense em torno da tragédia, reinventado o dia
seguinte, não será prova fundamental de um expressionismo artístico que faz
guindar o filme a um estatuto que há muito escapou do léxico parco e malquisto
dos críticos do Neo-Realismo.
«Ladrões de Bicicletas» é um aviso importante. Um aviso de
que a Arte é eterna quando preenche esse modo comovente de sublinhar
a consciência e sublimar a estética.
«Ladrões de Bicicletas» é um filme exemplar.
jef, agosto 2017
«Ladrões
de Bicicletas» (Ladri di biciclette) de Vittorio De Sica. Com Lamberto
Maggiorani, Enzo Staiola, Lianella Carell, Giulio Chiari, Vittorio Antonucci,
Elena Altieri, Michele Sakara, Fausto Guerzoni, Carlo Jachino. Argumento:
Vittorio De Sica e Cesare Zavattini segundo o romance de Luigi Bartolini.
Música: Alessandro Cicognini. Fotografia: Carlo Montuori. Produção: Giuseppe
Amato e Vittorio De Sica Itália, 1948.
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