«Não raras são as ocasiões em que os sentimentos surgem
dentro da cabeça ou debaixo das unhas, bem no centro do sabugo, formas
impalpáveis, anjos brancos sem asas, negros andorinhões. Não os tocamos, não os
vemos, quase não os sentimos. São objectos que ultrapassam o nosso coração para,
rapidamente, se irem instalar no peito de outro alguém. São volúveis e insanos.
Apesar de estarem dentro do crânio ou na génese das unhas que terminam os nossos
dedos, eles partem para um lugar que não nos pertence, quantas vezes não nos
entende e, pior, de que desconhecemos o paradeiro, o endereço, o código de
acesso, a palavra passe. Tal e qual as células, as moléculas, os átomos que nos
formam e estruturam, nos põem em pé e a andar, mas de que nunca questionamos a existência.
Sentimentos inatos, genéticos, oferecidos, não adquiridos. Atingem-nos como
balas por circunscrever, disparadas por armas impróprias, apontadas por mãos
assassinas, rostos mascarados, provocando crimes imperdoáveis. tanto mais
imperdoáveis quando no fim de penetrarem, rasgarem, dilacerarem a carne das unhas, as reviravoltas do crânio, o sabujo sujo do nosso querer, anjos negros,
andorinhões invisíveis de tão brancos, o corpo permanece vivo apenas pela
perversa alegria de nos ver de pé e a andar, obrigando-nos a constatar quão
insuportável é existir sem ter segurado o sentimento que partiu mesmo agora. Para sempre.»
Naquela tarde, sem saber bem porquê, sentara-se num banco
diferente do jardim. D. Aurora Figueiredo, a D. Aurita como era conhecida no
bairro, sentia-se sentimental, o que a todos os níveis era considerado um
pleonasmo. Tal facto incomodava-a, apesar de estar bom tempo, nem calor nem
frio, céu azul, os patos mudos a nadar tranquilos no lago, e, poisado no banco a
seu lado, um saco de ameixas maduras, fruta da época, compradas a menos de um
euro. Um preço mesmo extraordinário!
...um preço extraordinário de facto!
ResponderEliminarNão se encontra em qualquer lado, não!
EliminarAfeiçoei-me à D. Aurita, assim sentimental!
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